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Tráfico de Mulheres, Emma Goldman
tradução: Margareth Rago
Emma Goldman (1869-1940), anarquista, feminista, e autora de importantes ensaios sobre a condição da mulher e a condição proletária no mundo. A melhor introdução à sua vida e obra em português, é Emma Goldman – a vida como revolução, de Elisabeth Souza Lobo, publicada pela Editora Brasiliense, na coleção Encanto Radical em 1983.
Nossos reformadores de repente fizeram uma grande descoberta – o tráfico de escravas brancas. Os jornais estão repletos dessa “condição de que nunca se ouviu falar” e os legisladores já estão planejando uma nova batelada de leis para conter o horror.
É interessante que quando se quer afastar o interesse público de algum problema social importante, se inaugure uma cruzada contra a indecência, o jogo, os bares, etc. E o que resulta de tais cruzadas? O jogo está crescendo, os bares estão ampliando seu negócio por baixo do pano, a prostituição está em alta, e o sistema de gigolôs só está aumentando.
Como é que uma instituição, conhecida por qualquer criança, teria sido descoberta assim tão de repente? Como é que esse mal, sabido por todos os sociólogos, torna-se agora uma questão tão interessante?
Supor que as pesquisas recentes sobre o tráfico de escravas brancas (e, diga-se de passagem, pesquisas muito superficiais) tenham descoberto algo de novo, é, para dizer o mínimo, fútil. A prostituição tem sido, e é, um mal bastante espalhado, e, não obstante, os humanos têm continuado a seguir adiante, inteiramente indiferentes aos sofrimentos e aflições das vítimas da prostituição. De fato, tão indiferente quanto os humanos têm sido em relação ao nosso sistema industrial, ou em relação à prostituição econômica.
Somente quando os sofrimentos humanos se tornam brinquedos de cores brilhantes é que o povo-bebê se interessa – pelo menos por algum tempo. O povo é um bebê muito instável, que precisa de brinquedos novos todos os dias. Esse grito “correto” contra o tráfico de escravas brancas é um desses brinquedos que serve para divertir o povo por um tempo curto, e que vai ajudar a criar mais alguns gordos trabalhos políticos – parasitas que perambulam empertigados pelo mundo como inspetores, investigadores, detetives e assim por diante.
Qual é realmente a causa do comércio de mulheres? Não apenas de mulheres brancas, mas também mulheres amarelas e negras! Exploração, é claro, o impiedoso Molloch do capitalismo que engorda com o trabalho mal pago, levando assim milhares de mulheres e garotas à prostituição. Como a senhora Warren, essas garotas pensam – “Porque desperdiçar sua vida trabalhando por alguns centavos por semana na lavagem de pratos e panelas, dezoito horas por dia?”1
Nossos reformadores, naturalmente, nada dizem a respeito dessa causa. Eles a conhecem bastante bem, mas não vale a pena dizer algo a respeito disso. É mais lucrativo bancar o fariseu, fingir uma moralidade ultrajada, do que ir à raiz das coisas.
Existe, no entanto, uma exceção louvável entre os jovens escritores: Reginald Wright Kauffman, cujo trabalho The House of Bondage (A Casa da Servidão) é a primeira tentativa séria de tratar do mal social – e não de uma perspectiva sentimental filistina. Um jornalista com ampla experiência, o senhor Kauffman prova que nosso sistema industrial não oferece para a maioria das mulheres qualquer alternativa a não ser a prostituição. As mulheres retratadas em The House of Bondage pertencem à classe trabalhadora. Se o autor tivesse retratado a vida de mulheres em outras esferas, ele teria encontrado o mesmo tipo de situação.
Em nenhum lugar a mulher é tratada de acordo com o mérito de seu trabalho, mas apenas como sexo. Portanto, é quase inevitável que ela deva pagar por seu direito a existir, a manter uma posição seja onde for, com favores sexuais. Assim, é apenas uma questão de grau se ela vende a si mesma a apenas um homem, dentro ou fora do matrimônio, ou a vários homens. Quer os nossos reformadores o admitam ou não, a inferioridade econômica e social da mulher é a responsável pela prostituição.
No momento atual, nosso bom povo está chocado com a revelação de que, apenas na cidade de Nova York, uma entre cada dez mulheres trabalha numa fábrica, que a média do salário recebido pelas mulheres seja de seis dólares por semana, por 48 a 60 horas de trabalho, e que a maioria das trabalhadoras enfrentem vários meses de inatividade, o que faz com que a média salarial seja de 280 dólares por ano. Em vista desses horrores econômicos, é de se admirar que a prostituição e o tráfico de escravas brancas tenham se tornado fatores tão dominantes?
Para que os números acima não pareçam exagerados, é bom examinar o que alguns especialistas sobre prostituição têm a dizer:
Uma causa fértil da depravação feminina pode ser encontrada em várias tabelas que mostram a descrição dos empregos buscados, e dos salários recebidos, pelas mulheres antes de sua queda, e é uma questão para os economistas políticos decidirem o quanto meras considerações de negócios devam ser uma desculpa – de parte dos empregadores – para uma redução de seus índices de remuneração, e se a economia de uma pequena porcentagem de salários não é mais do que contrabalançada pela enorme quantia de taxas impostas ao público mais amplo para compensar as despesas feitas graças a um sistema de vício que é, em muitos casos, o resultado direto de uma compensação insuficiente pelo trabalho honesto.2
Nossos reformadores contemporâneos fariam bem em ler o livro do Dr. Sanger. Lá eles descobrirão que entre os dois mil casos observados por ele, apenas uns poucos se originaram da classe média, com condições estáveis, ou lares agradáveis. A ampla maioria era de garotas e mulheres trabalhadoras, algumas levadas à prostituição pela penúria, outras por causa de uma vida cruel e arruinada em casa, e mais outras ainda por causa de uma natureza física frustrada e aleijada (da qual falarei adiante). Seria bom também que vigilantes da pureza e da moralidade aprendessem que entre os dois mil casos, 490 eram de mulheres casadas, mulheres que viviam com seus maridos. Evidentemente, não havia muita garantia para sua “segurança e pureza” na santidade do casamento.3
O Dr. Alfred Blaschko, em Prostitution in the Nineteenth Century (A Prostituição no Século XIX), é ainda mais enfático na caracterização das condições econômicas como um dos fatores mais importantes da prostituição.
Embora a prostituição tenha existido em todas as épocas, foi no século 19 que ela se tornou uma instituição social gigantesca. O desenvolvimento da indústria, com vastas massas de pessoas no mercado competitivo, o crescimento e congestionamento das grandes cidades, a insegurança e incerteza do emprego, deram à prostituição um impulso nunca antes sonhado em nenhum período da história humana.
E Havelock Ellis, embora não tão definitivo ao tratar do fator econômico, é ainda assim levado a admitir que ele é, direta e indiretamente, sua causa principal. Ele descobriu assim que uma ampla porcentagem de prostitutas é recrutada na classe das empregadas domésticas, ainda que elas tenham menos problemas e maior segurança. Por outro lado, o senhor Ellis não nega que a rotina diária, o trabalho pesado, a monotonia da vida da moça empregada doméstica, e especialmente o fato de que ela poderá nunca ter o companheirismo e a alegria de um lar, não é um fator a ser negligenciado no impulso para que ela busque lazer e esquecimento na alegria e no brilho da prostituição. Em outras palavras, a empregada doméstica, sendo tratada como uma faz tudo, nunca tendo direito sobre si mesma, e esgotada pelos caprichos de sua patroa, pode encontrar uma saída, assim como a garota vendedora de loja, ou trabalhadora fabril, apenas na prostituição.
O aspecto mais interessante da questão posta agora frente ao público é a indignação de nosso “bom e respeitável público”, particularmente os variados cavalheiros cristãos, sempre nas fileiras de frente de qualquer cruzada. Será porque sejam absolutamente ignorantes a respeito da história da religião, e, especialmente, da religião cristã? Ou será que esperam tornar a geração atual cega em relação ao papel representado pela Igreja, no passado, na prostituição? Seja qual for a sua razão, eles deveriam ser os últimos a gritar contra as infortunadas vítimas de hoje, já que qualquer estudioso inteligente sabe que a prostituição tem uma origem religiosa, mantida e expandida durante vários séculos, não como uma vergonha, mas como uma virtude, exaltada como tal pelos próprios deuses.
Parece que a origem da prostituição deve ser encontrada primeiramente num costume religioso, a religião, grande mantenedora da tradição social preservando-a de maneira transformada como uma liberdade primitiva que estava se perdendo na vida social em geral. O exemplo típico é registrado por Heródoto, no quinto século antes de Cristo, no Templo de Lylitta, a Vênus babilônica, no qual todas as mulheres, uma vez na sua vida, deveriam visitar e entregar-se ao primeiro estranho que atirasse uma moeda em seu colo, em honra da deusa. Costumes semelhantes existiam em outras partes da Ásia ocidental, no Norte da África, em Chipre, e em outras ilhas do leste do Mediterrâneo, e também na Grécia, onde o templo de Afrodite, no forte de Corinto, contava com mais de mil servas sagradas, dedicadas ao serviço da deusa.
A teoria de que a prostituição religiosa desenvolveu-se, de maneira geral, a partir da crença de que a atividade gerativa dos seres humanos tinha uma influência misteriosa sagrada na promoção da fertilidade da natureza, é mantida por todos os escritores especialistas sobre o assunto. No entanto, gradualmente, e a partir de quando a prostituição se tornou uma instituição organizada, sob a influência dos sacerdotes, a prostituição religiosa desenvolveu aspectos utilitários, ajudando a ampliar a renda pública.
O crescimento do cristianismo como um poder político pouco alterou tal política. Os sacerdotes líderes da Igreja toleravam a prostituição. Bordéis com proteção municipal foram encontrados no século 13. Eles eram uma espécie de serviço público, seus diretores sendo considerados quase como servidores públicos.4
Deve-se acrescentar a isso o seguinte, vindo do trabalho do Dr. Sanger:
O Papa Clemente II editou uma bula pela qual as prostitutas seriam toleradas se pagassem uma certa quantia de seus ganhos para a Igreja.
O Papa Sixtus IV foi mais prático – de um único bordel, que ele mesmo havia construído, recebeu uma renda de vinte mil ducados.
Nos tempos modernos, a Igreja é um pouco mais cuidadosa em relação a isso. Pelo menos, não pede abertamente o tributo de prostitutas. Parece achar mais lucrativo investir em terras, como a Trinity Church, por exemplo, que aluga armadilhas fatais a preços exorbitantes para os que vivem da prostituição.
Ainda que eu quisesse, teria pouco espaço para falar da prostituição no Egito, na Grécia, em Roma, e na Idade Média. A situação nesse último período é particularmente interessante, já que a prostituição era organizada em guildas, chefiadas por uma rainha dos bordéis. Essas guildas usavam greves como um modo de melhorar suas condições e de manter um preço fixo. Com certeza, esse é um método mais prático do que o usado pela sociedade moderna, escrava do salário.
Seria unilateral e extremamente superficial afirmar que o fator econômico é a única causa da prostituição. Há outros, não menos importantes e vitais. Esses também são conhecidos dos nossos reformadores, que ousam ainda menos discuti-los do que discutir a instituição que sabota a própria vida tanto de homens quanto de mulheres. Refiro-me à questão sexual, cuja mera menção causa espasmos morais na maioria das pessoas.
É um fato sabido que a mulher é criada como uma mercadoria, ainda que seja mantida em absoluta ignorância sobre o significado e a importância do sexo. Tudo o que diz respeito a esse assunto é suprimido e as pessoas que tentam iluminar essa terrível escuridão são perseguidas e atiradas na prisão. No entanto, apesar de tudo, é verdade que se uma garota é mantida na ignorância sobre como cuidar de si mesma, desconhecendo a função da parte mais importante de sua vida, não deveríamos nos surpreender se ela se torna uma presa fácil da prostituição, ou de qualquer outra forma de relação que a degrade à posição de objeto de mera gratificação sexual.
É devido a essa ignorância que toda a vida e natureza da garota são frustradas e aleijadas. Faz muito tempo que aceitamos como auto-evidente que o jovem pode seguir o chamado natural, isto é, que o jovem pode, tão logo sua natureza sexual se afirme, satisfazer essa natureza, mas nossos moralistas ficam escandalizados com a mera ideia de que a natureza de uma garota possa afirmar-se. Para o moralista, a prostituição não consiste tanto no fato de que a mulher venda seu corpo, mas antes, que ela o venda fora do casamento. Que isso não é uma mera suposição é comprovado pelo fato de que o casamento baseado em considerações monetárias é perfeitamente legítimo, santificado pela lei e pela opinião pública, ao passo que qualquer outra união é condenada e repudiada. No entanto, uma prostituta, adequadamente definida, é nada mais do que “qualquer pessoa para a qual a relação sexual esteja subordinada ao ganho”.5
“São prostitutas as mulheres que vendem seus corpos para o exercício do ato sexual e fazem disso sua profissão”.6
De fato, Banger vai além, e mantém que o ato de prostituição é “intrinsecamente igual ao de um homem ou uma mulher que contrate um casamento por razões econômicas.”
O casamento, é claro, é o objetivo de qualquer garota, mas já que milhares de garotas não podem se casar, nossos costumes sociais estúpidos as condenam ou a uma vida de celibatária ou à prostituição. A natureza humana afirma-se independente de todas as leis, e não há qualquer razão plausível pela qual a natureza devesse se adaptar a uma concepção pervertida de moralidade.
A sociedade considera as experiências sexuais de um homem como atributos de seu desenvolvimento geral, ao passo que experiências similares na vida de uma mulher são vistas como uma terrível calamidade, a perda da honra e de tudo o que é nobre e bom num ser humano. Esse duplo padrão de moralidade teve uma não pequena parte na criação e perpetuação da prostituição. Ele implica na manutenção da ignorância absoluta dos jovens a respeito de questões sexuais, cuja alegada “inocência”, acoplada a uma natureza sexual exacerbada e sufocada, ajuda a criar uma situação que nossos puritanos estão tão ansiosos para evitar ou prevenir.
Não que a gratificação do sexo deva levar à prostituição; é a perseguição criminal, cruel, desalmada, daqueles que ousam se afastar do caminho conhecido que é a responsável por ela.
Garotas, meras crianças, trabalham em salas super aquecidas e lotadas, de dez a doze horas por dia, numa máquina, o que tende a mantê-las num estado constante de super excitação sexual. Muitas dessas garotas não têm lar ou confortos de qualquer espécie; assim, a rua, ou qualquer lugar de diversão barata são as únicas maneiras de esquecer sua rotina diária. Isso naturalmente as põe em contato íntimo com o sexo oposto. É difícil dizer qual desses dois fatores causam um clímax na condição de super excitação sexual das garotas, mas é certamente a coisa mais natural que se atinja um clímax. Esse é o primeiro passo em direção à prostituição. A garota não deve ser vista como responsável por isso. Ao contrário, isso é em geral culpa da sociedade, culpa da nossa falta de compreensão, de nossa falta de avaliação sobre a criação da vida; é culpa, especialmente, de nossos moralistas, que condenam uma garota por toda a eternidade porque ela se afastou do “caminho da virtude”; isto é, porque sua primeira experiência sexual ocorreu sem a sanção da igreja.
A garota se sente como uma marginal, com as portas do lar e da sociedade fechadas na sua cara. Sua socialização e tradição é tal que ela própria se sente depravada e decaída, e assim não tem terreno para se por de pé, ou qualquer apoio que a levante, ao invés de empurrá-la para baixo. Assim, a sociedade cria as vítimas das quais depois se esforça em vão por se livrar. O homem mais mesquinho, depravado e decrépito, ainda se considera bom demais para tomar por esposa a mulher cujas graças ele estava perfeitamente disposto a comprar, mesmo que ele pudesse assim salvá-la de uma vida de horror. Ela tampouco pode recorrer à sua própria irmã por ajuda. Em sua estupidez, essa se auto-avalia como muito pura e muito casta, sem perceber que sua posição é, em vários aspectos, até mesmo mais deplorável do que a da sua irmã da sarjeta.
A esposa que se casa por dinheiro, comparada com a prostituta diz Havelock Ellis é a verdadeira praga. Ela é mais mal paga, dá muito mais em troco, com seu trabalho e cuidados, e é absolutamente dependente de seu senhor. A prostituta nunca abdica de seus direitos sobre si mesma, mantém sua liberdade e direitos pessoais, e tampouco submete-se sempre aos abraços de um homem.
A mulher melhor-do-que-você também não entende a observação apologética de Lecky de que
embora ela possa ser o supremo tipo de vício, ela é também a mais eficiente guardiã da virtude. Se não fosse por ela, os lares felizes seriam poluídos e práticas não naturais e perigosas seriam abundantes.
Os moralistas estão sempre prontos para sacrificar metade da espécie humana em nome de alguma instituição miserável da qual não podem escapar. Na verdade, a prostituição não é a salvaguarda da pureza do lar, nem as rígidas leis são uma salvaguarda contra a prostituição. Cerca de cinquenta por cento dos homens casados são clientes de bordéis. É pela via desse elemento virtuoso que as mulheres casadas – e até as crianças – são infectadas com doenças venéreas. No entanto, a sociedade não tem uma palavra de condenação para o homem, ao passo que nenhuma lei é tão monstruosa que não possa ser posta em ação contra a vítima indefesa. Ela não é apenas a presa daqueles que a usam, mas também está inteiramente à mercê de qualquer policial ou detetive miserável que a persiga, dos policiais nas delegacias, e das autoridades em qualquer prisão.
Num livro recente, de uma mulher que foi durante doze anos a dona de uma “casa”, constam os números seguintes: “As autoridades me obrigavam a pagar todos os meses uma multa entre 14,70 e 29,70 dólares; as garotas pagavam entre 5,70 e 9,70 dólares para a polícia.” Considerando-se que a autora exercia seu negócio numa cidade pequena, que o montante que ela registra não inclui multas e subornos extras, pode-se observar com clareza os enormes ganhos que o departamento de polícia extrai do dinheiro sangrento de suas vítimas, as quais nem sequer protege. E ai de quem recuse pagar pedágio; elas serão arrebanhadas como gado
nem que seja para mostrar serviço para os bons cidadãos da cidade, ou caso os poderosos precisem de dinheiro ilegal extra. Para as mentes deformadas que acreditam que uma mulher decaída é incapaz de emoção humana, seria impossível perceber a tristeza, a desgraça, as lágrimas, o orgulho ferido, que nos acometia cada vez que éramos recolhidas.
Não é estranho que uma mulher que foi dona de uma “casa” possa sentir-se assim? Mais estranho ainda que um bom mundo cristão sangre e tosquie tais mulheres e nada lhes dê em troca a não ser calúnias e perseguição. Ah! A caridade do mundo cristão!
Muita ênfase tem sido posta sobre a importação de escravas brancas pela América. Como a América poderia jamais manter sua virtude se a Europa não a ajudasse? Não vou negar que isso ocorra em alguns casos, nem que existam emissários da Alemanha e de outros países atraindo escravas econômicas para a América; mas nego peremptoriamente que a prostituição seja recrutada na Europa de modo significativo. Pode ser verdade que a maioria das prostitutas na cidade de New York seja estrangeira, mas isso é porque a maioria da população é estrangeira. Se formos a outras cidades americanas, a Chicago ou ao Meio-Oeste, descobriremos que o número de prostitutas estrangeiras é de longe uma minoria.
Igualmente exagerada é a crença de que a maioria das garotas de rua dessa cidade estivesse engajada nesse negócio antes de vir para a América. A maior parte das garotas fala um excelente inglês, são americanizadas nos hábitos e na aparência – algo absolutamente impossível, a menos que tenham vivido nesse país por muitos anos. Isto é, elas foram levadas à prostituição pelas condições americanas, pelo costume inteiramente americano de exibição excessiva de elegância e de roupas, o que, é claro, demanda dinheiro – dinheiro que não pode ser ganho em lojas ou em fábricas.
Em outras palavras, não há razão para crer que algum grupo de homens corresse riscos e incorresse em gastos para obter produtos estrangeiros quando as condições americanas estão inundando o mercado com milhares de garotas. Por outro lado, há evidência suficiente para provar que a exportação de garotas americanas para se prostituírem não é de modo nenhum um fator irrelevante.
Clifford G. Roe, ex-promotor assistente do Condado de Cook, Illinois, faz a acusação explícita de que garotas da Nova Inglaterra são embarcadas para o Panamá para serem expressamente usadas pelos homens empregados pelo Tio Sam. O senhor Roe acrescenta que “parece haver uma estrada de ferro alternativa entre Boston e Washington pela qual viajam muitas garotas.” Não é significativo que a estrada de ferro leve ao próprio núcleo das autoridades federais? Que o senhor Roscoe tenha dito mais do que fosse desejado em certos setores fica provado pelo fato de que ele perdeu sua posição. Não é conveniente que homens em posições oficiais contem histórias infantis.
A desculpa dada para as condições no Panamá é que não há bordéis na Zona do Canal. Essa é a escusa usual para um mundo hipócrita que não ousa enfrentar a verdade. Não há na Zona do Canal, nem nos limites da cidade – portanto, a prostituição não existe.
Além do senhor Roe, há James Bronson Reynolds, que fez um estudo amplo do tráfico de escravas brancas na Ásia. Como um cidadão americano leal e amigo do futuro Napoleão da América, Theodore Roosevelt, ele é certamente o último a desacreditar a virtude de seu país. No entanto, ele nos informa que em Hong Kong, Shangai e Yokohama, estão localizados os estábulos de Augeas do vício nas Américas. As garotas americanas de lá se tornaram tão conhecidas que, no Oriente, “garota americana” é sinônimo de prostituta. O senhor Reynolds lembra seus compatriotas que enquanto os americanos na China estão sob a proteção de seus representantes consulares, os chineses na América não têm qualquer proteção. Quem quer que saiba das bárbaras e brutais perseguições que os chineses e japoneses sofrem na Costa do Pacífico concordará com o senhor Reynolds.
Em vista desses fatos, é um absurdo apontar para a Europa como o pântano de onde provêm todas as doenças sociais da América. Tão absurdo como publicitar o mito de que os judeus entram com o maior contingente de objetos voluntários de prazer. Estou certa de que ninguém me acusará de tendências nacionalistas. Fico feliz em dizer que as superei, assim como superei muitos outros preconceitos. Portanto, se me ressinto com a afirmação de que as prostitutas judias são importadas, não é graças a nenhuma simpatia judaizante, mas por causa dos fatos inerentes nas vidas desse povo. Ninguém, a não ser os mais superficiais, afirmará que as garotas judias emigram para terras estranhas, a menos que tenham algum laço ou relação que as leve até lá. A garota judia não é aventureira. Até anos recentes, ela nunca deixava sua casa, sequer indo até a vila ou cidade vizinha, exceto para visitar algum parente. É crível que garotas judias deixem seus pais ou famílias, viajem milhares de milhas até terras estranhas, pela influência e promessas de forças estranhas? Visite qualquer um dos grandes navios que chegam e veja por você mesmo se essas garotas não chegam com os pais, irmãos, tias ou outros parentes. Pode haver exceções, é claro, mas afirmar que grandes números de garotas judias são importadas para a prostituição, ou para qualquer outro propósito, é simplesmente desconhecer a psicologia judia.
Quem tem telhado de vidro faz mal em atirar pedras nos dos outros; além disso, o telhado de vidro americano é muito fino, pode quebrar facilmente, e o interior é uma bela vista.
Atribuir o aumento da prostituição a uma alegada importação, ao crescimento do sistema de gigolôs, ou causas semelhantes, é muito superficial. Já tratei da primeira. Quanto ao sistema de gigolôs, por detestável que seja, não devemos ignorar o fato de que é uma fase da prostituição moderna – uma fase acentuada pela supressão e pela corrupção, resultando das cruzadas esporádicas contra o mal social.
O gigolô é sem dúvida um pobre espécime da família humana, mas de que modo ele é mais desprezível que o policial que toma o último centavo da prostituta de rua e depois a prende na delegacia? Por que o gigolô mais criminoso, ou uma maior ameaça à sociedade, do que os donos de lojas de departamentos e de fábricas, que engordam graças ao suor de suas vítimas, apenas para levá-las à sarjeta? Não estou fazendo um apelo a favor do gigolô, mas falho em perceber porque ele é impiedosamente perseguido, ao passo que os que realmente perpetram todas as iniquidades sociais gozam de imunidade e respeito. Além disso, é bom lembrar que não é o gigolô que faz a prostituta. É nossa falsidade e hipocrisia que cria ambos, o gigolô e a prostituta.
Até 1894 pouco se sabia na America sobre o gigolô. Fomos então atacados por uma epidemia de virtude. O vício devia ser abolido, o país purificado a qualquer preço. O câncer social foi então tirado de vista, mas penetrou mais fundo no corpo. Os donos de bordéis, bem como suas vítimas infelizes, foram entregues à delicada piedade da polícia. A consequência inevitável de subornos exorbitantes, e a penitenciária, se seguiram a isso.
Enquanto que eram comparativamente protegidas nos bordéis, nos quais representavam um certo valor monetário, as garotas encontravam-se agora nas ruas, absolutamente à mercê da polícia, sedenta por suborno. Desesperadas, precisando de proteção e desejosas de afeto, essas garotas naturalmente se tornaram presas fáceis de gigolôs, eles mesmos resultado do espírito de nossa época comercial. Assim, o sistema de gigolagem foi uma consequência direta da perseguição policial, do suborno e da tentativa de supressão da prostituição. Era uma completa bobagem confundir essa fase moderna do mal social com as suas causas.
A mera supressão e bárbaros decretos só servem para amargurar, e degradar ainda mais, as vítimas da ignorância e da estupidez. Essa última atingiu sua expressão mais alta na lei proposta de transformar o tratamento humano de prostitutas em crime, punindo qualquer um que desse abrigo a prostitutas com cinco anos de prisão e dez mil dólares de multa. Tal atitude apenas expõe a terrível falta de compreensão das verdadeiras causas da prostituição, como um fator social, tornando também manifesto o espírito puritano dos dias da Scarlet Letter (Letra Escarlate).7
Não há um único escritor moderno sobre o assunto que não mencione a enorme futilidade de métodos legislativos no tratamento da questão. O Dr. Blaschko mostra que a supressão governamental e as cruzadas morais não obtêm nada a não ser empurrar o mal para canais secretos, multiplicando seus perigos para a sociedade. Havelock Ellis, o mais completo e humano pesquisador da prostituição, prova com riqueza de dados que quanto mais rigorosos são os métodos de perseguição, piores se tornam as condições. Entre outros dados, aprendemos que
em 1560, Charles IX aboliu os bordéis através de um édito, mas o número de prostitutas só aumentou e muitos novos bordéis surgiram em formas insuspeitas e eram mais perigosos. A despeito de tal legislação, ou por causa dela, não houve região na qual a prostituição tenha tido um papel mais evidente.8
Uma opinião pública educada, livre da perseguição legal e moral das prostitutas, é só o que pode ajudar a melhorar as condições atuais. Fechar os olhos obstinadamente e ignorar o mal como um fator social da vida moderna, só pode agravar a situação. Devemos superar nossas ideias bobas de “melhor-do–que-você” e aprender a reconhecer na prostituta um produto da condição social. Tal percepção afastará a atitude de hipocrisia e assegurará uma maior compreensão e um tratamento mais humano. Quanto à erradicação completa da prostituição, nada pode levar a isso, com exceção da inteira mudança de todos os valores aceitos, especialmente os morais – acoplada à abolição da escravidão industrial.
- “The Traffick in Women”, 1909 Tradução: Mariza Corrêa.
1 NT Mrs Warren’s Profession (A profissão da Senhora Warren), peça de George Bernard Shaw sobre a prostituição que foi inicialmente proibida na Inglaterra e interrompida pela polícia quando encenada em New York em 1905.
2 Dr.Sanger, The History of Prostitution.
3 É significativo que o livro do Dr. Sanger tenha sido excluído do correio dos Estados Unidos. Evidentemente, as autoridades não estão ansiosas para que o público seja informado sobre a verdadeira causa da prostituição.
4 Havelock Ellis, Sex and Society.
5 Guyot, La Prostitution.
6 Banger, Criminalité et Condition Economique.
7 NT The Scarlet Letter (A Letra Escarlate), romance de Nathaniel Hawthorne, tematiza a obrigatoriedade do uso da letra A, de adúltera, nas vestes, para estigmatizar mulheres na Nova Inglaterra colonial.
8 Sex and Society.