A história de Rote Zora e as Células Revolucionárias. Grupo de Guerrilha Urbana feminista dos 70′

12362697_1724057691147748_6718018665156552408_oTradução e edição em livreto de texto com a história do grupo de guerrilha urbana feminista alemão que atuou nos anos 70 e 80 com ações diretas, colocação de artefatos explosivos em companhias médicas, bancos, empresas, sabotagens, ataques a responsáveis, etc. O livreto editado por Herética edições lésbicas e feministas independentes vem com a história do grupo + uma entrevista com integrantes, onde elas falam sobre radicalidade, autonomia, feminismo, movimento de mulheres, táticas, uso de viiolência revolucionária por parte das mulheres, dentre outras coisas. Uma reflexão importantíssima que vai além da inspiração insurgente, nos convoca a pensar o movimento feminista em uma perspectiva radical, revolucionária, anti-Estado, aliado à luta anticapitalista, anti-racismo, anti-imperialismo, anti-ecocídio internacionalista e indaga o feminismo sobre o alcance real das estratégias institucionais e demandistas no qual este se vê enredado, com marchas pacifistas rotineiras que não obtêm muito resultado.

 

“Sabemos que este ‘estado normal’ vai acompanhado de uma falta de resistência militante. A opressão se faz visível pela resistência. Por isso sabotamos, nos vingamos pela violência sofrida e pela situação humilhante, por meio dos ataques contra os responsáveis”. “Por quê não tem um efeito intimidatório o tráfico de mulheres, mas sim colocar fogo no carro do traficante? No fundo, pensar assim é ter aceitado que a violência exercida pela sociedade é legítima, enquanto que uma resistência adequada seria intimidadora! É possível que intimide, que assuste a muito/as que questionamos o que parece natural, que estejam assustadas também muitas mulheres que desde pequenas a quem lhes foi ensinadas um comportamento passivo, de vítima, ao se verem confrontadas com o fato de que AS MULHERES NÃO SÃO VÍTIMAS NEM PACIFISTAS. Isso é um fato, convida a pensar algo. As mulheres que com raiva sofrem com sua incapacidade individual se identificam com nossas ações. Da mesma maneira que um ato violento contra uma única mulher cria um clima de ameaça contra todas, nossas ações – embora estejam dirigidas contra alguns responsáveis específicos – contribuem para criar o clima de uma consciência: A RESISTÊNCIA É POSSÍVEL!” (…) “Nosso sonho é que em todos lados se formem pequenos bandos; que em cada cidade o estuprador, o negociante de pornografia, o ginecólogo repugnante, etc, tenham medo ante seu desmascaramento, ante um ataque, ante a denúncia pública, etc”.

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Fazer Limpeza

texto sobre gestão de violência em movimento social, extraído del períodico de Barcelona “Antisistema” número 15, junho de 2008.

No marco do movimiento libertário existe uma tendência unificadora que fortalece a coesão interna de um grupo já suficientemente isolado e rejeitado pelo exterior para que possa por em dúvida sua própria coerência desde dentro. Desta maneira, apesar das múltiplas diferenças ideológicas, as richas entre organizações e as disputas pessoais, sempre será arriscado pôr em dúvida a Correção política de um companheiro sobretudo no que se refere a tratamento desigual ou vexatório às mulheres. No caso das mulheres é diferente já que ao não vir acompanhada sua militância com uma auréola de entrega e heroísmo comparável a dos caras, tampouco sua falta de coerência é um feito grave ao considerarse que é de esperar sua falta de madurez política e sua debilidade ante as adversidades.

Acusar um “militante destacado” de agressão física, sexual ou psicológica a uma mulher (seja ou não sua companheira) supôe, em geral submeter-se a um interrogatório por parte de um entorno que atuará judicialmente, contrapesando a validez e a gravidade dos feitos, assim como os possíveis atenuantes do agressor para sua conduta (atitude e modo de vestir da menina, uso de alcool ou drogas…). A dúvida e a desconfiança será o primeiro com que se encontrará uma companheira ao denunciar públicamente uma situação de abuso, em parte por causa da busca de coesão interna para prevení-la des-membração de um grupo suficientemente ameaçado pelos perigos externos (isolamento social, repressão policial ,… ) mas sobretudo pela desvalorização da palavra da mulher em um movimento altamente masculino e masculinizante e pela percepção de “assuntos privados” que ainda pervive respeito às problemáticas de violência contra as mulheres.

Mas a dúvida sobre se os acontecimentos ocorreram realmente não será a única coisa com que terá que se enfrentar uma mulher que denuncia públicamente, no marco do políticamente correto, uma agressão por parte de um militante ou de um homem do entorno político. As mulheres que militam em organizações, grupos ou centros sociais de cariz libertário ou alternativo se auto-impôem, em muitas ocasiões, uma férrea dureza emocional para poder igualar-se com os homens que dificultará a própria percepção como mulher abusada ou agredida. Uma mulher feminista ou não sexista deve ser uma mulher autônoma e forte, imagem que se contrapôe no imaginário coletivo com a vítima de abusos ou de violência que se percebe como uma mercadoria defeituosa; uma mulher com baixa auto-estima, vulnerável e inclusive com desequilíbrios emocionais ou psicológicos derivados da agressão. Quê mulher feminista gostaria de identificar-se com esses parâmetros? E mais: da onde nasce essa percepção moralizante e vitimista das agressões físicas, psicológicas ou sexuais às mulheres?

Se partimos da base de que as mulheres que devem resolver e combater as agressões de nosso entorno, mediante a solidariedade e o apoio por uma parte e mediante a dureza e a violência por outra, então também devemos nós mesmas refletir sobre a violência e de nossa cumplicidade quanto a algumas condutas ou crenças que podem conduzir a ela.

A confissão por parte de uma mulher feminista OU “não sexista” de ser vítima de abusos, ou ter sido vítima de agressão sexual ou qualquer outra forma de violência genérica, corre o risco de converter-se em um talk-show mórbido e lacrimógeno e, no melhor dos casos, quer dizer, naqueles casos em que a mulher disponha de um grupo de mulheres de apoio, é muito provável que apesar de partir das melhores intenções, se acabe vitimizando à mulher fazendo ela se sentir ainda mais vulnerável. A reflexão, o apoio e a afetuosidade devem ser primordiais ao abordar uma problemática de violência contra uma companheira mas isso não nos livra de ter em conta que nenhuma característica define especialmente as mulheres agredidas, todas e cada uma de nós estamos em perigo, uma de nós está em perigo, partir de essa premissa nos afasta do vitimismo.

Vamos lá amigal! Quê você esperava? Isso podia acontecer com você, vamos combater juntAs!

O mito do “isso aqui não acontece” que se faz evidente na dúvida ante a denúncia pública de uma mulher vítima de abusos ou agressão por parte de um homem do entorno
político, nega a realidade e prejudica as mulheres. A ninguém lhes ocorreria duvidar de um companheiro que afirma ter sido vítima de violência policial ou de ter sofrido uma agressão por parte de um grupo fascista e muito menos se exigiria a este explicar detalhadamente como ocorreram os acontecimentos de tortura para verificar sua autenticidade. Porém ante uma agressão sexista a uma mulher muitos homens e mulheres se dotam da legitimidade para duvidar o interrogar a agredida e inclusive minimizar os fatos ou relegá-los à categoría de “assunto privado”. Posto que o pertencer a um movimento político não é garantia nem de pureza nem de retitude moral ou política ao não existir mais condição de pertinência que a própria iniciativa e posto que os assuntos relacionados com a luta das mulheres são minimizados, ridicuralizados ou diretamente rejeitados, podemos supôr que em nosso entorno hajam muitos homens com escasso compromisso com os valores anti-patriarcais e que alguns deles podem exercer como agressores ante um entorno que justificaria ou minimizaria sua ação. A crença de que as agressões às mulheres sucedem mais além de nosso entorno político, entorno que se mostra desde esta perspectiva, limpo e distante dos valores morais patriarcais, nos deixa indefesas ao negar uma realidade que se impôe de maneira brutal uma vez atrás da outra.

Por outro lado, alguns feminismos estiveram alimentando a idéia de que as mulheres devem permanecer distantes e protegidas do risco que supôe viver em um corpo sexuado de mulher e que deve ser a proteção estatal, a compreensão institucional e as medidas positivas as responsáveis de salvaguardar nossa integridade. Esta crença que se corresponde com um feminismo institucional e anti-revolucionário impregnando as crenças de muitos outros movimentos de mulheres anti-sexistas que se escandalizam ante os sucessos de violência de gênero ao comprovar que a via dialogada, mixta e apaziguadora não provocou mudança alguma nos homens de nosso entorno político ou no melhor dos casos há gerado um espaço de tolerância restrita aos preceitos feministas. O feminismo deve esvaziar-se da correção casposa que vem arrastando há décadas, as mulheres feministas devemos afastar-nos de uma vez por todas da comodidade da correção política e as pretensões de “intocabilidade” e aceitar que enquanto isto não mude (e não parece que isso vá ocorrer tão breve) em qualquer espaço público ou privado, político ou corrente corremos um risco. Agora, esse risco não deve perceber-se desde o medo e a aceitação passiva senão que desde o combate; assumir que o risco forma parte intrínseca de nossa existência como mulheres é aprender a combatê-lo e sobretudo é não derrubar-se quando o risco se converte em agressão: assim é a guerra!

A percepção da luta anti-patriarcal desde uma perspectiva mixta elude o componente do risco. Os ambientes mixtos geram um falso ambiente conciliador o qual faz parecer que os homens compartem nossas mesmas estratégias e finalidades, des-legitimando o uso da violência por parte das mulheres ao considerar que esta é uma medida extremista quando a mediação parece dar bons resultados. Bons resultados que desvanecem quando as exigências por parte das mulheres aumentam e quando estas já não estão dispostas a viver ou militar sob o jugo masculino.

Desta maneira, quando surgem iniciativas separatistas e excludentes que defendem o uso da violência contra os homens que se proclamem em guerra aberta contra as mulheres, o resto não será capaz de unir-se por cumplicidade ideológica senão que o farão por solidariedade de gênero. Ou seja, a tendência marjoritariamente masculina
será a de outros homens fazendo filas em torno a outros homens (incluindo em torno aos agressores) antes de mostrarem-se solidários com as mulheres, como exigiria uma lógica coerência, já que isso colocaria em entredito sua masculinidade e seria uma falta grave de incumprimento da normativa hegemônica de gênero segundo a qual, a irmandade masculina deve permanecer unida.

Assumindo os riscos intrínsecos de nossa própria condição o logro de nossa autonomia virá condicionado a nossa capacidade de combatê-los. O uso da violência e a prática agressiva será primordial para nos defender ante uma agressão mas a des-vitimização e des-categorização das mulheres agredidas também vai supôr uma prática libertadora, ao minimizar o poder e o domínio masculino e nos situar em igualdade de forças combativas. Supôr por exemplo que uma mulher que tenha sido agredida não poderá superar este fato traumático, ou ainda que este ocorrido condicionará suas atividades, será mais frágil ou vulnerável, dota ao homem agressor de um poder extra-limitado e ao mesmo tempo, infantiliza a mulher agredida. Razão pela qual muitas mulheres omitem o fato de terem sido vítimas de agressões ao não querer apresentar-se perante as demais deste modo – ocorrência que invisibiliza muitos casos de violência.

Quantas de nós conhecemos a homens com altas doses de sexismo, homens de tratamento pejorativo com relação às mulheres, homens que consideram as mulheres como objetos e que em troca gozam de uma consideração e de uma valorização excelente por parte do restante? Um homem prototípicamente revolucionário, um cretino e caricaturesco macho enérgico e ousado com capuz negro e pedra na mão que adora os ambientes mixtos que lhe permitem pavonear-se e mostrar seus dotes mas que detesta os grupos de mulheres que o excluem ao mesmo tempo que prescindem de seus encantos de sedutor. Este ou qualquer outro prototipo que nos venha à mente, capaz de criticar a uma mulher ou considerá-la menos inteligente por vestir-se demasiadamente feminina, e inclusive mulheres que reproduzem estes mesmos padrões, são comuns em nossos entornos políticos.

A surpresa e desconcerto que geram os episódios de violência contra as mulheres em nossos entornos politizados se nutrem do desconhecimento e da hipocrisia. A negação, a aceitação e inclusive a falta de contundência nas respostas ante os mais mínimos indícios são covardes cúmplices da violência contra as mulheres, e neste caso, em todas nós há algo que em maior ou menor medida cheira a podridão.

Façamos limpeza!

Laura

 

Uma discussão sobre o problema da Hostilidade Horizontal

Texto que fala sobre a violência, agressividade e destrutividade que ocorre entre feministas. Faz um análise do fenomeno e propôe que tenhamos condutas e auto-crítica que dêem conta desse problema para cuidar as nossas comunidades e lutar os verdadeiros inimigos.
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Denise Thompson
– Novembro 2003

Este artigo não foi oferecido para publicação ou apresentado verbalmente. Foi escrito em resposta ao pedido de uma amiga sobre minhas próprias idéias sobre a hostilidade horizontal, em um momento em que ela sentia a si mesma lutando com o tipo de coisas discutidas aqui. Eu sei cuando terminei de escrever – março de 1993 – porque eu pûs data.

O termo, ‘hostilidade horizontal’, foi cunhada por Florynce Kennedy, em seu artigo de 1970, ‘Opressão Institucionalizada vs. a Fêmea’, impresso na antologia editada por Robin Morgan, “Sisterhood is Powerful” (“A Sororidade é Poderosa” 1, Penelope, 1992: 60). É um termo que data bem desde o começo da Liberação das Mulheres (seja em US ou onde quer que seu artigo haja sido lido). E se o nome é tão velho quanto a Liberação das Mulheres, o problema é ao menos tão velho, senão mais velho que este.

A Hostilidade Horizontal é uma forma de poder-como-dominação entre e em meio às mulheres. Por isso o melhor contexto a discutir isso é em termos de relações de poder entre mulheres.

O projeto feminista de identificar e desafiar a dominação masculina não significa que somente homens oprimen mulheres, e que mulheres são automaticamente isentas de valores, atitudes e comportamentos supremacistas masculinos, e nunca se comportem mal com outras mulheres. É importante manter em mente o principal inimigo, isto é, a dominação masculina. Mas porque a opressão é institucionalizada, e porque ela constitui o status quo e supostamente o mundo, é sempre muito fácil cair em maneiras impensadas de comportar-se que reforçam padrões de dominação.

De qualquer maneira, porque as mulheres são subordinadas e os homens são dominantes sob condições de supremacia masculina, os padrões de dominação típicos das mulheres são sistematicamente diferentes daqueles de homens, ou seja: são menos diretos, dissimulados, menos visíveis e ativos. O comportamento feminino que reproduz sentidos e valores supremacistas masculinos vai tender também a dar evidência da posição subordinada desde a qual as mulheres estão atuando, muito embora as as ações mesmas envolvam auto-agrandecimento as expensas de outra. Por isso hostilidade horizontal entre e em meio a mulheres tipicamente involve formas de poder-sobre que vêm desde uma posição de debilidade, não de força.

Hostilidade Horizontal pode envolver bullying para submeter alguém que é mais privilegiado em uma hierarquia das relações sociais supremacistas masculinas antes que aquela que acossa. Pode envolver tentativas de destruir a boa reputação de alguém que tem mais acesso aos níveis mais elevados de poder que aquelx que está espalhando o escândalo. Pode envolver tornar alguém responsável da opressão de outra pessoa, mesmo que ela também seja oprimida. Pode envolver demandas invejosas de que outra mulher pare de usar suas próprias habilidades, porque o sucesso de alguém melhor colocado que você mesma ‘faz’ você se sentir inadequada e sem valor. Ou pode envolver tentativas de silenciar criticismo por atacar aquela percebida como fazendo o criticismo. Em termos gerais, envolve percepções confundidas da fonte da dominação, localizando esta em mulheres que não estão comportando-se opressivamente (na medida de que não estão, claro). E isso é inspirado por ódio, aquela primeira força motivadora que mantém o motor da supremacia masculina rodando.

Florynce Kennedy foi direto ao coração da questão quando ela colocou sua discussão da hostilidade horizontal no contexto de consentir na opressão de uma mesma. Ela não estava argumentando que esse ‘consentimento’ era a causa da opressão. Muito embora ela disesse que “não pode haver um sistema realmente tão pervasivo de opressão, como aquele dos Estados Unidos, sem o consentimento d* oprimid*’ (p.492), ela não queria dizer que se parassemos de consentir o mesmo simplesmente desapareceria. Mulheres não consentem estupro, por exemplo, mas isso não há marcadamente diminuido sua ocorrência. Ela estava consciente de que mulheres não eram responsáveis por sua própria subordinação. Ela porém quis apontar que aquela opressão não era somente coagida ou violentamente forçada, mas que uma ordem social opressiva requeria um certo degrau de cumplicidade para sua continuada existência.

A cumplicidade requerida de nós sob condições de supremacia masculina é cumplicidade na ideologia da debilidade feminina. Mulheres devem ser ‘fracas’ para que então homens possam ser ‘fortes’. A força de homens é adquirida às expensas das mulheres. Esse requermento ideológico da fraqueza feminina não vá incontetada mesmo sob as condições do dia-a-dia da realidade falocrática.

Mulheres constantemente resistem a subordinação à homens de maneira a sacar alguma liberdade de ação e influencia própria. Maneiras convencionais de resistir, porém, reinforçam antes de desafiar o status quo. Derrotar o opressor em seu próprio jogo, por exemplo, deixa as regras do mesmo intactas, mesmo quando uma mulher ocupa a posição mais alta na hierarquia. As perspicácias e seduções femininas inflam o ego masculino ao mesmo tempo em que elas conferem as mulheres benefícios a curto-prazo. Lágrimas e tantras, ou frieza e afastamento, podem fazer ele ser mantido sob controle temporariamente, mas ele usualmente possui algum lugar mais para ir uma vez que o mundo é construído em sua própria imagem e semelhança. Mesmo quando uma muher individual maneja derrotar um homem individual ou homens, o que surge não é um relacionamento de igualdade. O papel da mulher ‘dominadora’ é permitido por dentro da forma falocrática de vida, seja como uma maneira de intimidar mulheres a subordinação – a ‘vadia’, a ‘histérica’, a ‘enchedora de saco’, a ‘fêmea castradora’ – ou como uma form de erotizar culpa masculina, por exemplo a ‘dominatrix’ no encontro sexual sadomasoquista. Paradoxicalmente a ideologia da fraqueza feminina requere uma grande quantidade de violência para ser mantida. Hostilidade Horizontal é o uso em meio às mulheres dessas técnicas desenvolvidas no contexto de resistencia ao poder masculino. A intenção é induzir a submissão a outra que é percebida como enormemente poderosa, enquanto que, ao mesmo tempo, reforçar a idéia de que mulheres não podem ter poder.

Kennedy mencionava como ‘mulheres sendo utilizadas como agentes para opressores’ (p.493), mas sua discussão sobre hostilidade horizontal, que ela também chamava como ‘descarte’2, era tentadoramente breve. Ela não dava exemploss da ocorrência disso entre feministas. Ela tinha mais a dizer sobre o controle do self, que sobre as maneiras nas quais tentamos controlar umas às outras. ‘Mulher’, ela diz, ‘em sua condição consentual cabeço-lavada frequentemente atuam fora de seu papel de mãe rondante sem nenhuma pressão notada de ninguém. Observe ’notada’ (p. 494). Ela, de qualquer forma, se referia à parte jogada pela ‘hostilidade horizontal’ na ‘demolição … de alguns grupos políticos radicais, e é triste dizer, alguns grupos de liberação de mulheres’ (p.495). Ela sigue adiante para dizer que isso é parte das ‘Técnicas de dividir-e-conquistar do Establishment’:

“Pessoas oprimidas são frequentemente bem opressivas quando primeiramente liberadas. E porque não deveriam ser? Elas sabem bem ambas posições. A bota de alguém no seu pescoço ou a bota del*s no pescoço de alguém… mesmo se est*s se agrupam juntos na atmosfera fria, úmida da sua recém descoberta libertação… mulheres… muitas vezes se chocam umas com as outras antes de aprender a compartir e disfrutar sua recém descoberta liberdade (pp. 495-6).”

Suas sugestões sugeridas são também breve e não-elaboradas. Ela diz:

“Para evitar esses efeitos destrutivos da hostilidade horizontal, as mulheres necessitam um despertar político e/ou social da patologia do oprimido quando confrontadas pelos expertos do ‘dividir-e-conquistar’” (p.495).

Ela também sugere abster-nos de enfuriar-nos com individualidades, e ao invés disso, dirigir nossa raiva a alvos mais apropriados, isto é, sistemas e instituições ao invés de pessoas.

“Chutar o balde” – ela diz, “deveria ser apenas para onde há um balde protegendo o Sistema” (p.499). Esse comentário mostra que ela estava consciente que suas soluções sugeridas eram menos que perfeitas, uma vez que as instituições funcionam por meio de ações, atitudes e compromisso de individualidades. Contudo, suas recomendações servem como um alerta para nós para manter em mente o inimigo principal. E a despeito da brevidade de sua explicação, está claro que ela considerava a hostilidade horizontal como uma forma de ‘poder sobre’ recriado por mulheres contra mulheres, e que essa invariabilidade servia aos interesses do opressor e trabalhava contra os interesses das mulheres. Neste sentido, era uma re-elaboração dos padrões de comportamento dominantes adquiridos como um resultado da participação na realidade falocrática.

Julia Penelope está de acordo substancial com Florynce Kennedy. Ela também vê isso como uma forma de consentimento para opressão. Ela se refere a isso como ‘opressão internalizada’, e descreve como:

“Hostilidade Horizontal é o melhor método do heteropatriarcado para nos manter em ‘nossos devidos lugares’; nós fazemos o trabalho dos homens e suas instituições por eles… (…) ela nos faz direcionar nossa raiva – que surge de nosso estatuto marginal e subordinado no heteropatriarcado e que deveria ser dirigida à nossos opressores – à outras Lésbicas e mulheres, porque sabemos que é mais seguro… Elafunciona para garatir nossa continuada vitimização dentro dos nossos próprios grupos, e nos mantêm silenciadas quando a maioria queremos falar; nos mantêm passivas quando a maiora queria desafiar, porque não queremos ser o alvo da raiva de outra Lésbica.” (Penelope, 1992: 60).

Insultos

Uma das formas de hostilidade horizontal discutidas por Penelope é o ‘chamar de’. Ela diz que o insulto é ‘um substituto medíocre à análise reflexiva’ (p65). Ela pontua que o chamar alguém de algo é fácil. Fácil de fazer, fácil de acreditar e fácil de lembrar, porque, como ela diz, ‘requere absolutamente nenhuma reflexão, nenhuma análise, e nenhuma justificação’ (p.69). Rotular outros com nomes como ‘Nazi’, ‘facista’, ‘racista’, ‘etarista’, ‘classista’, ‘polícia sexual’ 3, ‘puritanas’, ‘moralistas’, etc. é também perigoso se é bem sucedido em conseguir o que isso pretende, isto é, intimidar aquelas etiquetadas em silêncio e parar qualquer desafio ou debate. Aquelas que acreditam que estes nomes dizem algo certo sobre aquelas que foram rotuladas, sem pensar sobre o que essas palavras significam, ou sem perguntar por substância ou evidência, também participam em hostilidade horizontal, mesmo se estas pessoas não são as originais rotuladoras. O xingamento busca destruir a boa reputação daquelas pessoas rotuladas, controlar seus pensamentos e ações, e aterrorizar elas ao silêncio. Trivializa os verdadeiros horrores do facismo, racismo, opressão classista e supremacia masculina, e diminui as agonias daquelas e aqueles que hajam sofrido mais sob esses regimes. Embaça distinções importantes entre, por um lado, aquel*s que, como supremacistas brancos, neo-Nazis, ideológos supremacistas masculinos, violadores, etc., que advogam, glorificam e praticam violência e comportamento desumanizante sobre aqueles que estes definem como ‘inferiores’, e aquelas de nós que, por outro lado, podem reter atitudes racistas, etc., atitudes a despeito as nossas melhores intenções. E estabelece distinções preconceituosas entre nós mesmas por meio de enfatizar aquelas opressões que nos dividem, às expensas de e para a exclusão da opressão que temos em comum como mulheres e lésbicas

Sentimentos não são o suficiente

Outro tipo de hostilidade horizontal que Penelope discute é o uso de ‘declarações psicológicas’ (psych-predicates). Essas são formas de uso de linguagem que descrevem como nos sentimos sobre e reacionamos às demais, de uma maneira que atribui uma fonte desses sentimentos a alguém. Dizer de alguém que ela é ‘intimidante’ por exemplo, Penelope diz, ‘requere a experiência do sentimento específico nomeado pelo verbo para descrever a ela mesma como um objeto a ser atuado sobre pelo comportamento ou atitude de alguém’ (p. 73). O uso de predicados psicológicos permite àquela que o diz a evitar responsabilidade pelos seus sentimentos, e pôr essa responsabilidade em alguém. Também permite atribuir intenções à suposta ‘intimidadora’ que esta pode não ter, e acusar ela do desejo de dominar que ela pode não querer, e assertar que a visão daquela que denuncia como a única interpretação possível. Falar sobre este processo em termos de uso de linguagem, Penelope diz, não é negar a realidade de nossos sentimentos. É, ao invés disso, alertar-nos de que é sempre fácil culpar a outras e acusar falsamente – a linguagem é construída para isso. Penelope comenta de que o uso de tal linguagem ‘mantém a ficção heteropatriarcal de que somos emocionalmente dependentes’ (ibid.). Eu acrescentaria que isso também reforça a crença de que somos fracas e desprotegidas e completamente à merce de outros todo-poderosos. Porque tal desproteção tende a ser defendida, tendemos a atacar de maneira a aniquilar aquelas que percebemos como a fonte dessa sensação. É esse senso de desproteção que é a verdadeira fonte da hostilidade horizontal. Isso é sugerido por algo que Vera Ray diz em seu artigo ‘Uma investigação da Violência em relações diadicas Lésbicas’. (Ray, 1991). Ela diz que, muito embora haja similitudes entre o abuso de mulheres por homens em relações heterossexuais e a violência em relações lésbicas, há uma diferença crucial. Onde o homem usa violência para manter e reforçar sua dominação na relação, a agressora lésbica usa violência para ‘equalizar’ o que ela percebe como um desbalance de poder. Ela percebe a ela mesma como ‘fraca’ e sua parceira como ‘forte’, e ela a ataca de maneira a demolir aquela ‘força’ que ela (erroneamente) sente que é a fonte de sua própria ‘fraqueza’. Isso não excusa a violência, como aponta Vera. Ninguém ‘merece’ ser agredida. Mas isso indica que a violência entre mulheres origina-se na debilidade e não na força. Como Vera coloca, nesta instância mulheres ‘são corrompidas por um senso de falta de poder’ (p.46). A mesma observação foi feita por Joanna Russ em seu artigo ‘Poder e Vulnerabilidade no Movimento de Mulheres’ (Russ, 1985). Neste artigo, Russ critica o que ela chama ‘o grande Imperativo Feminino’, a expectativa de que ‘mulheres são supostas fazer as outras pessoas sentirem-se bem, a suprir a necessidades de outres sem ter nenhuma necessidade própria’ (p.43). Ela descreve com este imperativo é enforçado nas mulheres por outras mulheres por meios de sindrome de “Mamãe Mágica/Irmã temblante”. Uma ‘Irmã temblante’ (IT), ela diz, é uma mulher que abraçou sua própria indenfensidade e inefectividade de maneira a evitar a culpa servicial de satisfazer suas próprias necessidades, exercitando suas próprias habilidades, e alcançando seu próprio sucesso. Uma IT elevada ao status de ‘Mamãe Mágica’ (MM) qualquer mulher que alcançou algo que ela mesma foi incapaz de alcançar. Ela culpa a MM pelos maus sentimentos que ela tem sobre sua própria falta de conquistas, e procede para demandar que a MM tome conta dos sentimentos feridos (da TS), e tome conta dela. Uma vez que isso é impossível, a IT se torna enfurecida e ‘lincha’ a MM. A MM, que a esse ponto pode haver estado inconsciente de seu status ‘mágico’, cai na cilada ela aceita a visão da IT. Ela se torna uma MM por meio de reaconar com culpa, por tentar abrandar os sentimentos feridos, por desculpar-se por desprezar seus próprios ganhos, empreendendo-se em ajustar tudo e fazer todo mundo se sentir bem. Dada a impossibilidade disso, sua resposta atual é medo e paralisia face aos permanentes gritos de raiva da IT.

Russ sugere que o caminho para fora do círculo vicioso de culpa, auto-recriminação e paralisia para as mulheres é reclamar nossas próprias conquistas e valor próprio. A IT precisa dar-se conta que, embora seus sentimentos de desolação podem ser resultado de relações de poder fora do seu controle, eles também podem não ser. Ela precisa aprender que ela retém sua própria agência moral mesmo sobre condições de opressão (usar o conceito desenvolvido por Sarah Hoagland-Hoagland, 1988), e que há ainda algumas coisas que ela pode fazer, que ela ainda tem alguma responsabilidade, mesmo que sua liberdade de ação é constrangida por condições objetivas.
Ela precisa aprender que atribuir enormes quantidades de poder a outra muher é uma ilusão, assim também é seu sentido de que ela mesma é completamente desamparada. E ela precisa aprender que o oprimido também pode ser opressivo. Não apenas pode o oprimido partilhar, ainda que minimamente, dos estatus e privilégios dos dominantes às expensas de outr*s oprimid*s, mas também oprimid*s também possuem maneiras de manipular os dominantes. A IT precisa proteger-se usando essas técnicas contra outras mulheres, técnicas de dissimulação vitimista, de birras, de demandas de que alguém resolva seus problemas para ela, e considere seus sentimentos feridos à exclusão de seus próprios projetos.

A MM, por outro lado, precisa aprender que ela não é infinitamente disponível, incomensuravelmente suportiva, eternamente paciente, ou seja, que ela não é a ‘mamãe’ de ninguém (no sentido supremacista masculino de absoluto auto-sacrifício). Ela também precisa aprender que, como Russ coloca, ’sentimentos de culpa não automaticamente significam que ela está para ser culpada de tudo, ou mesmo de qualquer coisa que seja, e deve portanto fazer reparação por meio de colocar tudo em ordem. A culpa é tão endêmica na população feminina, e funciona tão sistemicamente para manter mulheres a serviço dos homens, que ela pode simplesmente ter mudado para o seu partilhamento do padrão generalizado. Neste caso, desde que não há nada para corrigir, ela deve simplesmente lidar com os sentimentos de culpa até eles irem embora.

Como reconhecer Hostilidade Horizontal

É importante distinguir entre hostilidade horizontal e criticismo genuíno, porque o criticismo é geralmente confundido com hostilidade. Enquanto que o criticismo infundado é destrutivo e paralisante, o criticismo é ainda assim necessário se o feminismo está para continuar crescendo e se desenvolvendo e mantendo-se relevante, e não degenerar-se em um dogma papagaiante. Enquanto o feminismo necessita criticismo, ele não precisa o terrorismo irracional da hostilidade horizontal. Enquanto ambos podem se sentir daninhos e humilhantes, a hostilidade horizontal é duramente cruel, não tem outra motivação que não seja a de machucar. É uma cega castigação e criação de bode expiatórias daquelas que estão acessíveis porque elas não são tão diferentes em poder e privilégio. Criticismo, por outro lado, não possui a intencionalidade de ferir, mas de remover as névoas e desmascarar a verdade da questão. É considerado e considerante. Envolve um intento genuíno de trabahar o que está indo, e mostra consideração pela outra por meio de não ser deliberandamente e cruelmente ingentil. Assim que possível, é caracterizado por uma discussão considerada, bem pensanda e substancial.

Mesmo que isso não seja sempre possível, especialmente no calor do momento, o criticismo é até o último momento sincero nas questões que coloca. Não é uma competição sobre quem esta certa e quem está errada, sobre quem vence e quem perde. Ao invés disso, o criticismo está preocupado em desvendar a verdade, e está oposto à mentiras, segredos e silêncios, trapaças e rumores sem substância. Não é necessário ter tudo ordenadamente trabalhado antes de expressar dúvidas. Mas é vital perguntar para saber e avaliar as reações de uma própria. É importante perguntar a si mesma questões como: Estou sentindo-me ameaçada pelo que ela está dizendo? E se for, por quê? Estou justificada em sentir-me incômoda? Qual é a fonte de meu desconforto? Há suficientes evidências? etc.
Algumas vezes as questões vão ter respostas imediatas. Mas reservar julgamentos é também uma forma de criticismo, e uma maneria de recusar-se a engajar em hostilidade horizontal.
Enquanto criticismo é caracterizado por uma busca cuidadosa do sentido do que está sendo dito, a hostilidade horizontal é sem sentido, porque a informação contida em um nome indecente é tão esparsa. Quê significa, por exemplo, chamar a outra feminista de ‘racista’ ou ‘classista’ ou ‘fascista’, sem ir além em justificar isso e dar razões? A palavra ‘facista’ tem algum significado aplicado a outra mulher, dada a história do Facismo e os males perpretados sob sua influência? A acusadora deve estar clara de sua própria mente sobre o significado dos termos que ela aplica a outra mulher, e a forma particular ou as formas nas quais a acusada foi ofendida. É melhor permanecer em silêncio, que ganhar uma vitória fácil sobre outra mulher que provavelmente já tem um vasto estoque de culpa generalizada pela acusação para acionar.

Deve ser assumido que essas recomendações são relevantes não somente para aquelas com treinamento em pensar, argumentar e raciocinar, isto é, aquelas com educação terciária. Mas podemos todas pensar. Não é uma técnica confinada às instituições do ‘alto saber’. Todas podemos também saber nossas próprias mentes. Podemos todas separar verdade de falsidade, o inimigável do amigável, o que é meramente confuso ou ignorante daquilo que é deliberadamente errado. Um bom argumento não é necessariamente um sofisticado e largo. Todas podemos dar razões pelo que fazemos, mesmo se não estamos inicialmente conscientes das razões e que tome algum tempo para encontrá-las. E todas somos capazes de entender que cometemos erros, reconhecendo eles e aprendendo deles. Todas somos capazes de decidir se há ou não suficiente evidência, e de reservar julgamento até que possamos fazer uma que seja informada. Todas somos capazes de substanciar o que falamos, e de confirmar nossas asserções com as evidências. Também somos capazes de respeitar a boa reputação de cada uma. E somos todas capazes de examinar nossos próprios motivos. Longe ed ser o caso de que essas habilidades estejam confinadas a uma elite pequena, é vitalmente importante que todas feministas as desenvolva. Fracasso em fazê-lo nos mantera na cilada dos jogos de poder da ideologia supremacista masculina

Como evitar Hostilidade Horizontal

Por ‘evitar hostilidade horizontal’, eu não quero dizer encontrar maneiras de evitar ser submetida a isso, ou proteger alguém de ser submetida a isso. À medida de que ela não se origina comigo, não há nada que possa fazer para pará-la de acontecer. Se não é meu comportamento, a decisão de se engajar-se ou não nisto não é minha para fazer. Há, é claro, numerosas maneiras nas quais eu poso reagir uma vez que ela aconteceu, e essas maneiras podem ser mais ou menos apropriadas, mas ou menos deliberadas, mais ou menos empoderantes. Eu posso reagir com vergonha ou culpa, e permtir que isso me silencie; ou posso aceitar as coisas negativas ditas sobre alguém, sem pensar e sem perguntar por verificação e evidência. Ou podemos engajar em batalhas verbais que podem terminar ou não em uma inimizade de longo termo e recusa em nunca mais falar-se uma com a outra novamente.
Alternativamente, a batalha deve limpar o ar e acabar com uma convencendo a outra, ou com um acordo em discordar. Ou pode ser legal, desapegado, respeituoso e razoável, requere que a outra dê suas razões pelo que ela está dizendo, e avalie as razões para o melhor da minha habilidade. Na ausência do que eu sentiria como razões adequadas, eu posso suspender julgamento a menos que haja suficiente evidência. Mas se a razão falha em convencer, nada mais vai funcionar sequer. Mas se eu não posso parar outras de serem hostis, eu posso recusar a engajar-me em hostilidade horizontal eu mesma. Eu posso tomar conta para não cair em padrões automáticos e impensados de dominação. Eu posso perguntar a mim mesma, como Julia Penelope diz, se eu realmente quis dizer o que eu disse. Eu posso perguntar eu mesma se o que eu digo é verdade. Eu posso peruntar quais são minhas motivações – Estou buscando apenas machucar, humilhar, e demolir, ou estou defendendo o que eu acredito, tentando esclarescer coisas, tentando ajustar o filme? Eu respeito a ourta mesmo se eu discordo dela, mesmo se eu sei (ou eu penso que sei) que ela está errada?
Precisamos estar aptas para decidir o que é hostilidade horizontal e o que não é. Precisamos exercitar uma grande quantidade de cuidado em discernir comportamentos que podem ser justificadamente identificados como opressivos, abusivos ou dominantes, dos quais não são. O processo de discernição requeere auto-conhecimento, uma habilidade de pensar problemas, e um certo degrau de desapego dos sentimentos como raiva, humilhação e vingança. Também requere auto-respeito e respeito pelos demais. E isso requere a rejeição da violência, física ou verbal, e uma maneira de endereçar percebidos desbalances de poder. A tarefa crucial neste contexto é desenvolver maneiras de decidir quando estamos justificadas em perceber outras mulheres como comportando-se opressivamente e quando elas não estão, e de discernir os métodos apropriados e inapropriados de lidar com aquele comportamento. Acima de tudo, envolve identificar supremacia masculina como o inimigo principal, e reconehcer que os valores e significados desta ordem social são o status quo a menos que estejamos conscientemente comprometidas na sua recusa.

  • * *

1 Usei o termo ‘sororidade’ embora a tradução direta pudesse ser ‘irmandade’ porque o termo sororidade está mais difundido e reconhecido pelas pessoas, equanto ‘irmandade’ pode ter outras conotações que não são tão agradáveis para a intenção do termo em inglês que é o reconhecimento das outras mulheres como companheiras ou a identificação entre mulheres.

3 Fazendo um paralelo pra pensar hoje em dia, outras formas atuais de censurar o debate e a reflexão feminista é acusar feministas (radicais por exemplo, ou mais críticas ou que pensam criticamente sexualidade e as políticas de identidade atuais) de ‘transfóbicas’, ‘cissexista’, ‘moralistas’ (termo que todo homem acusou feministas, baseado na sua cultura de estupro) ou o termo atual ‘polícia feminista’. Gostei que em um encontro quando houve uma assembléia sobre consentimento e acordos coletivos, alguém usou isso de acusar de polícia a delimitação de limites de alguém, essa pessoa foi imediatamente cortada por essa amiga que disse ‘Não gente, a polícia não está aqui, ela não veio, ela não está nesse encontro’. Temos que lembrar que é muito forte e difamante quando alguém é acusada de coisas graves ou associadas com figuras fortes de maltrato como policiais. Pensemos se não é forma de hostilidade horizontal, e de que certas opressões como a transfobia são exercidas não por individualidades como outras feministas senão por instituições. Dá a parecer que a transfobia é uma prática de certas feministase os esforços se concentram mais sobre essas que sobre o Estado e suas instituições que mantém e perpetuam a transfobia que mata travestis e trans, enquanto que algumas feministas somente querem se reunir entre mulheres biológicas e lésbicas por motivos até bastante plausíveis.
Outro exemplo é aquele cartaz que diz ‘Microfacismo em cada coração anti-trabalho sexual’, ataques deste tipo recebem feministas com uma perspectiva abolicionista do que entendem como sistema prostitutinte e, a despeito do debate que se queira instalar, é outra forma de desqualificação, bastante parecida com a acusação de ‘feminazi’ que vem sendo por sorte ridicularizada. Entendo todos esses ataques e desqualificações fáceis e discursos vazios e desonestos como misoginia e anti-feminismo (Nota da tradução).

References
Hoagland, Sarah (1988) Lesbian Ethics: Toward New Value Palo Alto, CA: Institute of
Lesbian Studies
Kennedy, Florynce (1970) ‘Institutionalized Oppression vs. the Female’, in Morgan, R., ed.
Sisterhood Is Powerful New York: Vintage Books/Random House
Penelope, Julia (1992) ‘Do We Mean What We Say? Horizontal Hostility and the World
We Would Create’, in Penelope, J., Call Me Lesbian: Lesbian Lives, Lesbian Theory
Freedom, CA: The Crossing Press
Ray, Vera (1991) ‘An Investigation of Violence in Lesbian Dyadic Relationships’ Journal of
Australian Lesbian Feminist Studies 1(1), pp.40-48
Russ, Joanna (1985) ‘Power and Helplessness in the Women’s Movement’, in Magic Mommas,
Trembling Sisters, Puritans and Perverts Trumansburg, NY: The Crossing Press

Razões pelas quais eu não vou na Marcha das Vadias

por Rebecca Mott, escritora, feminista radical e sobrevivente de prostituição. Site pessoal: rmott62.wordpress.com

A Marcha das Vadias pode parecer uma forte ação feminista, mas para mim, como ex prostituta, parace uma forma negativa de lidar com a violência masculina contra todas as mulheres e meninas.

Não acredito que se apropriar da palavra “vadia” faça com que os homens agressores percebam algo de errado em seu comportamento, pelo contrário, se encaixa no jogo deles. Usar o termo vadia é se enquadrar naquilo que homens abusivos querem que as mulheres sejam. Chamar uma mulher ou menina de vadia é comumente usado para mantê-la como objeto sexual dos homens. Chamar uma mulher ou menina de vadia é usado para mantê-la heterosexual e não liberada, e que ela existe para agradar os homens.

Se apropriar da palavra vadia não faz com que a história simplesmente desapareça.

Mas pra mim como ex prostituta, duvido muito que as razões por trás da Marcha das Vadias – que foi tão rapidamente adotada por liberais e muitas vezes por feministas pró trabalho sexual – sejam em função de que ser vadia é considerado “trabalho” dentro do mercado do sexo.

Maravilha, outro truque para fazer desaperacer a violencia contra as mulheres que estão no mercado sexual, já que esse é o trabalho delas, e portanto não pode ser considerado violencia masculina, mas sim o papel da prostituta.

A Marcha das Vadias está nos interesses das mulheres privilegiadas que podem brincar com o papel de vadia, se vestir como uma puta, exibir cartazes com dizeres como “Vadias Dizem Sim”, que imaginam que as mulheres no mercado do sexo são empoderadas quando elas nos chamam de irmãs.

A Marcha das Vadias diz que o estupro é ruim quando feito contra mulheres e meninas”de verdade” independente do que elas vestem e onde vão. Mas ignora fortemente o estupro e a tortura sexual que acontecem diariamente contra as mulheres e meninas que estão no mercado do sexo.

Isto é ignorado – pois na visão da Marcha das Vadias isso é só trabalho – então não devemos julgar e nem mesmo nos aprofundarmos.

Algumas mulheres na Marcha das Vadias pensam que é radical se vestir com o estereótipo que elas tem da Vadia, ou com a versão cartunizada de uma puta. Elas podem chamar isso de burlesco, mas para as ex prostitutas isso é um insulto.

Se vestir como puta pra noite é frequentemente feito de uma posição de alto privilégio. Você se veste assim porque acredita estar segura, e se você for estuprada isso será um ultraje.

Fazer de conta que é uma puta não é ser uma puta.

A maioria das mulheres e meninas prostituídas não estão protegidas do estupro, não é um ultraje quando isso acontece – suas roupas e por onde andam são problemas menores comparados a viver numa sociedade que ignora seus sofrimentos, e usa sua imagem somente para fazer festa.

Além do que, como você ousa vestir-se com os estereótipos de puta que a maioria das prostitutas estão tentando se livrar. Na verdade você está mostrando seu privilégio.

Claro que eu acredito que nenhuma mulher ou menina deva ser estuprada em nenhuma situação, não importa o que ela esteja vestindo.

Mas a Marcha das Vadias está evitando o problema de que os homens que decidem estuprar irão estuprar mulheres e meninas não importando o que ela usa ou a situação que ela se encontra.

É o direito masculino de acreditar que todas mulheres e meninas não são nada além de objeto sexual que é a questão – é o ponto de vista do homem que mulheres e meninas podem ser pegas e estupradas sem sérias consequências pra ele, que é a questão.

Não é sobre as mulheres tentarem dar um jeito de se conformarem o suficiente para que homens agressores possam mudar seu comportamento – é sobre lutar por justiça e castigos severos que acabem com a violência cometida pelos homens.

Eu irei para o Reclaim the Night* – mas a Marcha das Vadias não faz nada por mim nem justiça para as prostituídas.

Rebecca Mott, 1º de Maio, 2011tradução por ação anti sexista, Porto Alegre.

*“Retome as noites” é um ato organizado por feministas que existe desde os 70 nos países de língua inglesa e que começou com protestar contra a cultura de estupro. Feministas marchavam a noite por causa da idéia comum de que ‘não ande em uma rua escura a noite pois poderá ser estuprada’. As marchas continuam sendo realizadas até hoje em muitos países. No Brasil houveram alguns em Brasília, Florianópolis e Curitiba, consistindo em intervenções urbanas. (nota da difusora).

Tráfico de mulheres – Emma Goldman

baixe o pdf [pendente uppar].

Tráfico de Mulheres, Emma Goldman

tradução: Margareth Rago

Emma Goldman (1869-1940), anarquista, feminista, e autora de importantes ensaios sobre a condição da mulher e a condição proletária no mundo. A melhor introdução à sua vida e obra em português, é Emma Goldman – a vida como revolução, de Elisabeth Souza Lobo, publicada pela Editora Brasiliense, na coleção Encanto Radical em 1983.

Nossos reformadores de repente fizeram uma grande descoberta – o tráfico de escravas brancas. Os jornais estão repletos dessa “condição de que nunca se ouviu falar” e os legisladores já estão planejando uma nova batelada de leis para conter o horror.

É interessante que quando se quer afastar o interesse público de algum problema social importante, se inaugure uma cruzada contra a indecência, o jogo, os bares, etc. E o que resulta de tais cruzadas? O jogo está crescendo, os bares estão ampliando seu negócio por baixo do pano, a prostituição está em alta, e o sistema de gigolôs só está aumentando.

Como é que uma instituição, conhecida por qualquer criança, teria sido descoberta assim tão de repente? Como é que esse mal, sabido por todos os sociólogos, torna-se agora uma questão tão interessante?

Supor que as pesquisas recentes sobre o tráfico de escravas brancas (e, diga-se de passagem, pesquisas muito superficiais) tenham descoberto algo de novo, é, para dizer o mínimo, fútil. A prostituição tem sido, e é, um mal bastante espalhado, e, não obstante, os humanos têm continuado a seguir adiante, inteiramente indiferentes aos sofrimentos e aflições das vítimas da prostituição. De fato, tão indiferente quanto os humanos têm sido em relação ao nosso sistema industrial, ou em relação à prostituição econômica.

Somente quando os sofrimentos humanos se tornam brinquedos de cores brilhantes é que o povo-bebê se interessa – pelo menos por algum tempo. O povo é um bebê muito instável, que precisa de brinquedos novos todos os dias. Esse grito “correto” contra o tráfico de escravas brancas é um desses brinquedos que serve para divertir o povo por um tempo curto, e que vai ajudar a criar mais alguns gordos trabalhos políticos – parasitas que perambulam empertigados pelo mundo como inspetores, investigadores, detetives e assim por diante.

Qual é realmente a causa do comércio de mulheres? Não apenas de mulheres brancas, mas também mulheres amarelas e negras! Exploração, é claro, o impiedoso Molloch do capitalismo que engorda com o trabalho mal pago, levando assim milhares de mulheres e garotas à prostituição. Como a senhora Warren, essas garotas pensam – “Porque desperdiçar sua vida trabalhando por alguns centavos por semana na lavagem de pratos e panelas, dezoito horas por dia?”1

Nossos reformadores, naturalmente, nada dizem a respeito dessa causa. Eles a conhecem bastante bem, mas não vale a pena dizer algo a respeito disso. É mais lucrativo bancar o fariseu, fingir uma moralidade ultrajada, do que ir à raiz das coisas.

Existe, no entanto, uma exceção louvável entre os jovens escritores: Reginald Wright Kauffman, cujo trabalho The House of Bondage (A Casa da Servidão) é a primeira tentativa séria de tratar do mal social – e não de uma perspectiva sentimental filistina. Um jornalista com ampla experiência, o senhor Kauffman prova que nosso sistema industrial não oferece para a maioria das mulheres qualquer alternativa a não ser a prostituição. As mulheres retratadas em The House of Bondage pertencem à classe trabalhadora. Se o autor tivesse retratado a vida de mulheres em outras esferas, ele teria encontrado o mesmo tipo de situação.

Em nenhum lugar a mulher é tratada de acordo com o mérito de seu trabalho, mas apenas como sexo. Portanto, é quase inevitável que ela deva pagar por seu direito a existir, a manter uma posição seja onde for, com favores sexuais. Assim, é apenas uma questão de grau se ela vende a si mesma a apenas um homem, dentro ou fora do matrimônio, ou a vários homens. Quer os nossos reformadores o admitam ou não, a inferioridade econômica e social da mulher é a responsável pela prostituição.

No momento atual, nosso bom povo está chocado com a revelação de que, apenas na cidade de Nova York, uma entre cada dez mulheres trabalha numa fábrica, que a média do salário recebido pelas mulheres seja de seis dólares por semana, por 48 a 60 horas de trabalho, e que a maioria das trabalhadoras enfrentem vários meses de inatividade, o que faz com que a média salarial seja de 280 dólares por ano. Em vista desses horrores econômicos, é de se admirar que a prostituição e o tráfico de escravas brancas tenham se tornado fatores tão dominantes?

Para que os números acima não pareçam exagerados, é bom examinar o que alguns especialistas sobre prostituição têm a dizer:

Uma causa fértil da depravação feminina pode ser encontrada em várias tabelas que mostram a descrição dos empregos buscados, e dos salários recebidos, pelas mulheres antes de sua queda, e é uma questão para os economistas políticos decidirem o quanto meras considerações de negócios devam ser uma desculpa – de parte dos empregadores – para uma redução de seus índices de remuneração, e se a economia de uma pequena porcentagem de salários não é mais do que contrabalançada pela enorme quantia de taxas impostas ao público mais amplo para compensar as despesas feitas graças a um sistema de vício que é, em muitos casos, o resultado direto de uma compensação insuficiente pelo trabalho honesto.2

Nossos reformadores contemporâneos fariam bem em ler o livro do Dr. Sanger. Lá eles descobrirão que entre os dois mil casos observados por ele, apenas uns poucos se originaram da classe média, com condições estáveis, ou lares agradáveis. A ampla maioria era de garotas e mulheres trabalhadoras, algumas levadas à prostituição pela penúria, outras por causa de uma vida cruel e arruinada em casa, e mais outras ainda por causa de uma natureza física frustrada e aleijada (da qual falarei adiante). Seria bom também que vigilantes da pureza e da moralidade aprendessem que entre os dois mil casos, 490 eram de mulheres casadas, mulheres que viviam com seus maridos. Evidentemente, não havia muita garantia para sua “segurança e pureza” na santidade do casamento.3

O Dr. Alfred Blaschko, em Prostitution in the Nineteenth Century (A Prostituição no Século XIX), é ainda mais enfático na caracterização das condições econômicas como um dos fatores mais importantes da prostituição.

Embora a prostituição tenha existido em todas as épocas, foi no século 19 que ela se tornou uma instituição social gigantesca. O desenvolvimento da indústria, com vastas massas de pessoas no mercado competitivo, o crescimento e congestionamento das grandes cidades, a insegurança e incerteza do emprego, deram à prostituição um impulso nunca antes sonhado em nenhum período da história humana.

E Havelock Ellis, embora não tão definitivo ao tratar do fator econômico, é ainda assim levado a admitir que ele é, direta e indiretamente, sua causa principal. Ele descobriu assim que uma ampla porcentagem de prostitutas é recrutada na classe das empregadas domésticas, ainda que elas tenham menos problemas e maior segurança. Por outro lado, o senhor Ellis não nega que a rotina diária, o trabalho pesado, a monotonia da vida da moça empregada doméstica, e especialmente o fato de que ela poderá nunca ter o companheirismo e a alegria de um lar, não é um fator a ser negligenciado no impulso para que ela busque lazer e esquecimento na alegria e no brilho da prostituição. Em outras palavras, a empregada doméstica, sendo tratada como uma faz tudo, nunca tendo direito sobre si mesma, e esgotada pelos caprichos de sua patroa, pode encontrar uma saída, assim como a garota vendedora de loja, ou trabalhadora fabril, apenas na prostituição.

O aspecto mais interessante da questão posta agora frente ao público é a indignação de nosso “bom e respeitável público”, particularmente os variados cavalheiros cristãos, sempre nas fileiras de frente de qualquer cruzada. Será porque sejam absolutamente ignorantes a respeito da história da religião, e, especialmente, da religião cristã? Ou será que esperam tornar a geração atual cega em relação ao papel representado pela Igreja, no passado, na prostituição? Seja qual for a sua razão, eles deveriam ser os últimos a gritar contra as infortunadas vítimas de hoje, já que qualquer estudioso inteligente sabe que a prostituição tem uma origem religiosa, mantida e expandida durante vários séculos, não como uma vergonha, mas como uma virtude, exaltada como tal pelos próprios deuses.

Parece que a origem da prostituição deve ser encontrada primeiramente num costume religioso, a religião, grande mantenedora da tradição social preservando-a de maneira transformada como uma liberdade primitiva que estava se perdendo na vida social em geral. O exemplo típico é registrado por Heródoto, no quinto século antes de Cristo, no Templo de Lylitta, a Vênus babilônica, no qual todas as mulheres, uma vez na sua vida, deveriam visitar e entregar-se ao primeiro estranho que atirasse uma moeda em seu colo, em honra da deusa. Costumes semelhantes existiam em outras partes da Ásia ocidental, no Norte da África, em Chipre, e em outras ilhas do leste do Mediterrâneo, e também na Grécia, onde o templo de Afrodite, no forte de Corinto, contava com mais de mil servas sagradas, dedicadas ao serviço da deusa.

A teoria de que a prostituição religiosa desenvolveu-se, de maneira geral, a partir da crença de que a atividade gerativa dos seres humanos tinha uma influência misteriosa sagrada na promoção da fertilidade da natureza, é mantida por todos os escritores especialistas sobre o assunto. No entanto, gradualmente, e a partir de quando a prostituição se tornou uma instituição organizada, sob a influência dos sacerdotes, a prostituição religiosa desenvolveu aspectos utilitários, ajudando a ampliar a renda pública.

O crescimento do cristianismo como um poder político pouco alterou tal política. Os sacerdotes líderes da Igreja toleravam a prostituição. Bordéis com proteção municipal foram encontrados no século 13. Eles eram uma espécie de serviço público, seus diretores sendo considerados quase como servidores públicos.4

Deve-se acrescentar a isso o seguinte, vindo do trabalho do Dr. Sanger:

O Papa Clemente II editou uma bula pela qual as prostitutas seriam toleradas se pagassem uma certa quantia de seus ganhos para a Igreja.

O Papa Sixtus IV foi mais prático – de um único bordel, que ele mesmo havia construído, recebeu uma renda de vinte mil ducados.

Nos tempos modernos, a Igreja é um pouco mais cuidadosa em relação a isso. Pelo menos, não pede abertamente o tributo de prostitutas. Parece achar mais lucrativo investir em terras, como a Trinity Church, por exemplo, que aluga armadilhas fatais a preços exorbitantes para os que vivem da prostituição.

Ainda que eu quisesse, teria pouco espaço para falar da prostituição no Egito, na Grécia, em Roma, e na Idade Média. A situação nesse último período é particularmente interessante, já que a prostituição era organizada em guildas, chefiadas por uma rainha dos bordéis. Essas guildas usavam greves como um modo de melhorar suas condições e de manter um preço fixo. Com certeza, esse é um método mais prático do que o usado pela sociedade moderna, escrava do salário.

Seria unilateral e extremamente superficial afirmar que o fator econômico é a única causa da prostituição. Há outros, não menos importantes e vitais. Esses também são conhecidos dos nossos reformadores, que ousam ainda menos discuti-los do que discutir a instituição que sabota a própria vida tanto de homens quanto de mulheres. Refiro-me à questão sexual, cuja mera menção causa espasmos morais na maioria das pessoas.

É um fato sabido que a mulher é criada como uma mercadoria, ainda que seja mantida em absoluta ignorância sobre o significado e a importância do sexo. Tudo o que diz respeito a esse assunto é suprimido e as pessoas que tentam iluminar essa terrível escuridão são perseguidas e atiradas na prisão. No entanto, apesar de tudo, é verdade que se uma garota é mantida na ignorância sobre como cuidar de si mesma, desconhecendo a função da parte mais importante de sua vida, não deveríamos nos surpreender se ela se torna uma presa fácil da prostituição, ou de qualquer outra forma de relação que a degrade à posição de objeto de mera gratificação sexual.

É devido a essa ignorância que toda a vida e natureza da garota são frustradas e aleijadas. Faz muito tempo que aceitamos como auto-evidente que o jovem pode seguir o chamado natural, isto é, que o jovem pode, tão logo sua natureza sexual se afirme, satisfazer essa natureza, mas nossos moralistas ficam escandalizados com a mera ideia de que a natureza de uma garota possa afirmar-se. Para o moralista, a prostituição não consiste tanto no fato de que a mulher venda seu corpo, mas antes, que ela o venda fora do casamento. Que isso não é uma mera suposição é comprovado pelo fato de que o casamento baseado em considerações monetárias é perfeitamente legítimo, santificado pela lei e pela opinião pública, ao passo que qualquer outra união é condenada e repudiada. No entanto, uma prostituta, adequadamente definida, é nada mais do que “qualquer pessoa para a qual a relação sexual esteja subordinada ao ganho”.5

“São prostitutas as mulheres que vendem seus corpos para o exercício do ato sexual e fazem disso sua profissão”.6

De fato, Banger vai além, e mantém que o ato de prostituição é “intrinsecamente igual ao de um homem ou uma mulher que contrate um casamento por razões econômicas.”

O casamento, é claro, é o objetivo de qualquer garota, mas já que milhares de garotas não podem se casar, nossos costumes sociais estúpidos as condenam ou a uma vida de celibatária ou à prostituição. A natureza humana afirma-se independente de todas as leis, e não há qualquer razão plausível pela qual a natureza devesse se adaptar a uma concepção pervertida de moralidade.

A sociedade considera as experiências sexuais de um homem como atributos de seu desenvolvimento geral, ao passo que experiências similares na vida de uma mulher são vistas como uma terrível calamidade, a perda da honra e de tudo o que é nobre e bom num ser humano. Esse duplo padrão de moralidade teve uma não pequena parte na criação e perpetuação da prostituição. Ele implica na manutenção da ignorância absoluta dos jovens a respeito de questões sexuais, cuja alegada “inocência”, acoplada a uma natureza sexual exacerbada e sufocada, ajuda a criar uma situação que nossos puritanos estão tão ansiosos para evitar ou prevenir.

Não que a gratificação do sexo deva levar à prostituição; é a perseguição criminal, cruel, desalmada, daqueles que ousam se afastar do caminho conhecido que é a responsável por ela.

Garotas, meras crianças, trabalham em salas super aquecidas e lotadas, de dez a doze horas por dia, numa máquina, o que tende a mantê-las num estado constante de super excitação sexual. Muitas dessas garotas não têm lar ou confortos de qualquer espécie; assim, a rua, ou qualquer lugar de diversão barata são as únicas maneiras de esquecer sua rotina diária. Isso naturalmente as põe em contato íntimo com o sexo oposto. É difícil dizer qual desses dois fatores causam um clímax na condição de super excitação sexual das garotas, mas é certamente a coisa mais natural que se atinja um clímax. Esse é o primeiro passo em direção à prostituição. A garota não deve ser vista como responsável por isso. Ao contrário, isso é em geral culpa da sociedade, culpa da nossa falta de compreensão, de nossa falta de avaliação sobre a criação da vida; é culpa, especialmente, de nossos moralistas, que condenam uma garota por toda a eternidade porque ela se afastou do “caminho da virtude”; isto é, porque sua primeira experiência sexual ocorreu sem a sanção da igreja.

A garota se sente como uma marginal, com as portas do lar e da sociedade fechadas na sua cara. Sua socialização e tradição é tal que ela própria se sente depravada e decaída, e assim não tem terreno para se por de pé, ou qualquer apoio que a levante, ao invés de empurrá-la para baixo. Assim, a sociedade cria as vítimas das quais depois se esforça em vão por se livrar. O homem mais mesquinho, depravado e decrépito, ainda se considera bom demais para tomar por esposa a mulher cujas graças ele estava perfeitamente disposto a comprar, mesmo que ele pudesse assim salvá-la de uma vida de horror. Ela tampouco pode recorrer à sua própria irmã por ajuda. Em sua estupidez, essa se auto-avalia como muito pura e muito casta, sem perceber que sua posição é, em vários aspectos, até mesmo mais deplorável do que a da sua irmã da sarjeta.

A esposa que se casa por dinheiro, comparada com a prostituta diz Havelock Ellis é a verdadeira praga. Ela é mais mal paga, dá muito mais em troco, com seu trabalho e cuidados, e é absolutamente dependente de seu senhor. A prostituta nunca abdica de seus direitos sobre si mesma, mantém sua liberdade e direitos pessoais, e tampouco submete-se sempre aos abraços de um homem.

A mulher melhor-do-que-você também não entende a observação apologética de Lecky de que

embora ela possa ser o supremo tipo de vício, ela é também a mais eficiente guardiã da virtude. Se não fosse por ela, os lares felizes seriam poluídos e práticas não naturais e perigosas seriam abundantes.

Os moralistas estão sempre prontos para sacrificar metade da espécie humana em nome de alguma instituição miserável da qual não podem escapar. Na verdade, a prostituição não é a salvaguarda da pureza do lar, nem as rígidas leis são uma salvaguarda contra a prostituição. Cerca de cinquenta por cento dos homens casados são clientes de bordéis. É pela via desse elemento virtuoso que as mulheres casadas – e até as crianças – são infectadas com doenças venéreas. No entanto, a sociedade não tem uma palavra de condenação para o homem, ao passo que nenhuma lei é tão monstruosa que não possa ser posta em ação contra a vítima indefesa. Ela não é apenas a presa daqueles que a usam, mas também está inteiramente à mercê de qualquer policial ou detetive miserável que a persiga, dos policiais nas delegacias, e das autoridades em qualquer prisão.

Num livro recente, de uma mulher que foi durante doze anos a dona de uma “casa”, constam os números seguintes: “As autoridades me obrigavam a pagar todos os meses uma multa entre 14,70 e 29,70 dólares; as garotas pagavam entre 5,70 e 9,70 dólares para a polícia.” Considerando-se que a autora exercia seu negócio numa cidade pequena, que o montante que ela registra não inclui multas e subornos extras, pode-se observar com clareza os enormes ganhos que o departamento de polícia extrai do dinheiro sangrento de suas vítimas, as quais nem sequer protege. E ai de quem recuse pagar pedágio; elas serão arrebanhadas como gado

nem que seja para mostrar serviço para os bons cidadãos da cidade, ou caso os poderosos precisem de dinheiro ilegal extra. Para as mentes deformadas que acreditam que uma mulher decaída é incapaz de emoção humana, seria impossível perceber a tristeza, a desgraça, as lágrimas, o orgulho ferido, que nos acometia cada vez que éramos recolhidas.

Não é estranho que uma mulher que foi dona de uma “casa” possa sentir-se assim? Mais estranho ainda que um bom mundo cristão sangre e tosquie tais mulheres e nada lhes dê em troca a não ser calúnias e perseguição. Ah! A caridade do mundo cristão!

Muita ênfase tem sido posta sobre a importação de escravas brancas pela América. Como a América poderia jamais manter sua virtude se a Europa não a ajudasse? Não vou negar que isso ocorra em alguns casos, nem que existam emissários da Alemanha e de outros países atraindo escravas econômicas para a América; mas nego peremptoriamente que a prostituição seja recrutada na Europa de modo significativo. Pode ser verdade que a maioria das prostitutas na cidade de New York seja estrangeira, mas isso é porque a maioria da população é estrangeira. Se formos a outras cidades americanas, a Chicago ou ao Meio-Oeste, descobriremos que o número de prostitutas estrangeiras é de longe uma minoria.

Igualmente exagerada é a crença de que a maioria das garotas de rua dessa cidade estivesse engajada nesse negócio antes de vir para a América. A maior parte das garotas fala um excelente inglês, são americanizadas nos hábitos e na aparência – algo absolutamente impossível, a menos que tenham vivido nesse país por muitos anos. Isto é, elas foram levadas à prostituição pelas condições americanas, pelo costume inteiramente americano de exibição excessiva de elegância e de roupas, o que, é claro, demanda dinheiro – dinheiro que não pode ser ganho em lojas ou em fábricas.

Em outras palavras, não há razão para crer que algum grupo de homens corresse riscos e incorresse em gastos para obter produtos estrangeiros quando as condições americanas estão inundando o mercado com milhares de garotas. Por outro lado, há evidência suficiente para provar que a exportação de garotas americanas para se prostituírem não é de modo nenhum um fator irrelevante.

Clifford G. Roe, ex-promotor assistente do Condado de Cook, Illinois, faz a acusação explícita de que garotas da Nova Inglaterra são embarcadas para o Panamá para serem expressamente usadas pelos homens empregados pelo Tio Sam. O senhor Roe acrescenta que “parece haver uma estrada de ferro alternativa entre Boston e Washington pela qual viajam muitas garotas.” Não é significativo que a estrada de ferro leve ao próprio núcleo das autoridades federais? Que o senhor Roscoe tenha dito mais do que fosse desejado em certos setores fica provado pelo fato de que ele perdeu sua posição. Não é conveniente que homens em posições oficiais contem histórias infantis.

A desculpa dada para as condições no Panamá é que não há bordéis na Zona do Canal. Essa é a escusa usual para um mundo hipócrita que não ousa enfrentar a verdade. Não há na Zona do Canal, nem nos limites da cidade – portanto, a prostituição não existe.

Além do senhor Roe, há James Bronson Reynolds, que fez um estudo amplo do tráfico de escravas brancas na Ásia. Como um cidadão americano leal e amigo do futuro Napoleão da América, Theodore Roosevelt, ele é certamente o último a desacreditar a virtude de seu país. No entanto, ele nos informa que em Hong Kong, Shangai e Yokohama, estão localizados os estábulos de Augeas do vício nas Américas. As garotas americanas de lá se tornaram tão conhecidas que, no Oriente, “garota americana” é sinônimo de prostituta. O senhor Reynolds lembra seus compatriotas que enquanto os americanos na China estão sob a proteção de seus representantes consulares, os chineses na América não têm qualquer proteção. Quem quer que saiba das bárbaras e brutais perseguições que os chineses e japoneses sofrem na Costa do Pacífico concordará com o senhor Reynolds.

Em vista desses fatos, é um absurdo apontar para a Europa como o pântano de onde provêm todas as doenças sociais da América. Tão absurdo como publicitar o mito de que os judeus entram com o maior contingente de objetos voluntários de prazer. Estou certa de que ninguém me acusará de tendências nacionalistas. Fico feliz em dizer que as superei, assim como superei muitos outros preconceitos. Portanto, se me ressinto com a afirmação de que as prostitutas judias são importadas, não é graças a nenhuma simpatia judaizante, mas por causa dos fatos inerentes nas vidas desse povo. Ninguém, a não ser os mais superficiais, afirmará que as garotas judias emigram para terras estranhas, a menos que tenham algum laço ou relação que as leve até lá. A garota judia não é aventureira. Até anos recentes, ela nunca deixava sua casa, sequer indo até a vila ou cidade vizinha, exceto para visitar algum parente. É crível que garotas judias deixem seus pais ou famílias, viajem milhares de milhas até terras estranhas, pela influência e promessas de forças estranhas? Visite qualquer um dos grandes navios que chegam e veja por você mesmo se essas garotas não chegam com os pais, irmãos, tias ou outros parentes. Pode haver exceções, é claro, mas afirmar que grandes números de garotas judias são importadas para a prostituição, ou para qualquer outro propósito, é simplesmente desconhecer a psicologia judia.

Quem tem telhado de vidro faz mal em atirar pedras nos dos outros; além disso, o telhado de vidro americano é muito fino, pode quebrar facilmente, e o interior é uma bela vista.

Atribuir o aumento da prostituição a uma alegada importação, ao crescimento do sistema de gigolôs, ou causas semelhantes, é muito superficial. Já tratei da primeira. Quanto ao sistema de gigolôs, por detestável que seja, não devemos ignorar o fato de que é uma fase da prostituição moderna – uma fase acentuada pela supressão e pela corrupção, resultando das cruzadas esporádicas contra o mal social.

O gigolô é sem dúvida um pobre espécime da família humana, mas de que modo ele é mais desprezível que o policial que toma o último centavo da prostituta de rua e depois a prende na delegacia? Por que o gigolô mais criminoso, ou uma maior ameaça à sociedade, do que os donos de lojas de departamentos e de fábricas, que engordam graças ao suor de suas vítimas, apenas para levá-las à sarjeta? Não estou fazendo um apelo a favor do gigolô, mas falho em perceber porque ele é impiedosamente perseguido, ao passo que os que realmente perpetram todas as iniquidades sociais gozam de imunidade e respeito. Além disso, é bom lembrar que não é o gigolô que faz a prostituta. É nossa falsidade e hipocrisia que cria ambos, o gigolô e a prostituta.

Até 1894 pouco se sabia na America sobre o gigolô. Fomos então atacados por uma epidemia de virtude. O vício devia ser abolido, o país purificado a qualquer preço. O câncer social foi então tirado de vista, mas penetrou mais fundo no corpo. Os donos de bordéis, bem como suas vítimas infelizes, foram entregues à delicada piedade da polícia. A consequência inevitável de subornos exorbitantes, e a penitenciária, se seguiram a isso.

Enquanto que eram comparativamente protegidas nos bordéis, nos quais representavam um certo valor monetário, as garotas encontravam-se agora nas ruas, absolutamente à mercê da polícia, sedenta por suborno. Desesperadas, precisando de proteção e desejosas de afeto, essas garotas naturalmente se tornaram presas fáceis de gigolôs, eles mesmos resultado do espírito de nossa época comercial. Assim, o sistema de gigolagem foi uma consequência direta da perseguição policial, do suborno e da tentativa de supressão da prostituição. Era uma completa bobagem confundir essa fase moderna do mal social com as suas causas.

A mera supressão e bárbaros decretos só servem para amargurar, e degradar ainda mais, as vítimas da ignorância e da estupidez. Essa última atingiu sua expressão mais alta na lei proposta de transformar o tratamento humano de prostitutas em crime, punindo qualquer um que desse abrigo a prostitutas com cinco anos de prisão e dez mil dólares de multa. Tal atitude apenas expõe a terrível falta de compreensão das verdadeiras causas da prostituição, como um fator social, tornando também manifesto o espírito puritano dos dias da Scarlet Letter (Letra Escarlate).7

Não há um único escritor moderno sobre o assunto que não mencione a enorme futilidade de métodos legislativos no tratamento da questão. O Dr. Blaschko mostra que a supressão governamental e as cruzadas morais não obtêm nada a não ser empurrar o mal para canais secretos, multiplicando seus perigos para a sociedade. Havelock Ellis, o mais completo e humano pesquisador da prostituição, prova com riqueza de dados que quanto mais rigorosos são os métodos de perseguição, piores se tornam as condições. Entre outros dados, aprendemos que

em 1560, Charles IX aboliu os bordéis através de um édito, mas o número de prostitutas só aumentou e muitos novos bordéis surgiram em formas insuspeitas e eram mais perigosos. A despeito de tal legislação, ou por causa dela, não houve região na qual a prostituição tenha tido um papel mais evidente.8

Uma opinião pública educada, livre da perseguição legal e moral das prostitutas, é só o que pode ajudar a melhorar as condições atuais. Fechar os olhos obstinadamente e ignorar o mal como um fator social da vida moderna, só pode agravar a situação. Devemos superar nossas ideias bobas de “melhor-do–que-você” e aprender a reconhecer na prostituta um produto da condição social. Tal percepção afastará a atitude de hipocrisia e assegurará uma maior compreensão e um tratamento mais humano. Quanto à erradicação completa da prostituição, nada pode levar a isso, com exceção da inteira mudança de todos os valores aceitos, especialmente os morais – acoplada à abolição da escravidão industrial.

  • “The Traffick in Women”, 1909 Tradução: Mariza Corrêa.
    1 NT Mrs Warren’s Profession (A profissão da Senhora Warren), peça de George Bernard Shaw sobre a prostituição que foi inicialmente proibida na Inglaterra e interrompida pela polícia quando encenada em New York em 1905.
    2 Dr.Sanger, The History of Prostitution.
    3 É significativo que o livro do Dr. Sanger tenha sido excluído do correio dos Estados Unidos. Evidentemente, as autoridades não estão ansiosas para que o público seja informado sobre a verdadeira causa da prostituição.
    4 Havelock Ellis, Sex and Society.
    5 Guyot, La Prostitution.
    6 Banger, Criminalité et Condition Economique.
    7 NT The Scarlet Letter (A Letra Escarlate), romance de Nathaniel Hawthorne, tematiza a obrigatoriedade do uso da letra A, de adúltera, nas vestes, para estigmatizar mulheres na Nova Inglaterra colonial.
    8 Sex and Society.