por que as meninas que foram molestadas se silenciam?

Por Coletivo Artemisia

“Por gue as meninas que foram molestadas, abusadas sexualmente ou mesmo estupradas raramente, ou nunca, falam sobre isso? Não falam pela mesma razão que silenciam as pessoas que foram irremediavelmente humilhadas e envergonhadas e que não tem nenhuma proteção ou validaçāo sobre suas integridades pessoais. Como a mulher estuprada, a menina violentada pode não ser acreditada (ela fantasiou ou inventou a historia), seu dano pode ser minimizado (não houve nenhum prejuízo, vamos, então, esquecer o assunto) e pode até mesmo ser responsabilizada pelo crime (a garota estava pedindo isso). A criança adquire auto—estima e confiança a partir do valor dado a ela pelos adultos em quem confia e de quem depende. Contudo, a menina explorada sexualmente faz surgir uma reação necessária para promover uma identidade positiva. Sem receber apoio para seu direito de ser protegida, ficar zangada ou expressar uma indignação justificada, sente que só merece ser usada sexualmente. Revelar um incidente é expor sua insignificância. Contar para alguém é desmoralizar-se diante de si mesma e dos outros. A vitima infantil não tem outro recurso além de sepultar, esconder e tentar esquecer a experiência. Mas a humilhação não desaparecerá. Ela infecciona, envenena e corroí seu ser. Quando o ultraje permanece encoberto, sem resposta e incontestado, a sexualidade, a própria biologia da criança ofendida, passa a ser uma vergonha para ela. Esta síndrome destrutiva não surge do nada. Suas origens estão em antigas tradições e costumes que, por sua vez, estão escritos na Historia, na religião, na lei e nos poderosos e influentes meios de comunicação atuais. No inicio da Civilização ocidental, a mulher, assim como a casa, o boi e o asno, eram propriedades do homem. Específicamente, ela era uma propriedade sexual cuja única funçāo era fornecer filhos e prazer, e seu valor era determinado pela compensação que pudesse trazer como reprodutora ou prostituta. Esta é a degradante herança que legamos a nossas meninas. O abuso sexual de garotinhas baseia-se na suposta inferioridade delas. Elas podem ser usadas sexualmente porque pertencem a alguém, são imperfeitas biologicamente, ou agem de forma sedutora. Simultaneamente degradadas e definidas por sua sexualidade, são coagidas em um sistema infalível de chantagem emocional. Se forem violentadas, a conceituação culturalmente imposta de sua sexualidade transformam―nas em culpadas. Qualquer tentativa, por parte da menina, para revelar seu estuprador também expõe sua alegada inferioridade e motivações sexuais, e traz

vergonha para ela e não para o culpado. O segredo é a única alternativa. Mas, nos como mulheres, começamos a refutar a educação que recebemos e que nos define como inferiores, e não permitiremos mais ser chantageadas e coagidas. Agora acusamos nossos criminosos. Eles são os culpados. A lição que devemos tirar de seus relatos é a de proteger e acreditar na integridade de nossas crianças e a de aprender a quebrar o silêncio que as ameaça.”

Anarquismo na Atualidade – fala feita na 4ªFlapoa por uma companheira

Segue uma fala feita na 4ª Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre, no dia de abertura, 15 de novembro passado. Foram feitas várias falas sobre anarquismo na atualidade. Depois seguiu-se um debate.

“Anarquismo na atualidade.

Aqui no Brasil o anarquismo teve uma visibilidade gigante devido as manifestações. A revolta tomou conta das ruas. Esta revolta foi absolutamente importante e uma manifestação das nossas insatisfações, uma necessidade de denunciarmos as injustiças pela ação direta. A ação direta não é apenas uma ação isolada e de ataque, pois ela é construída todos os dias. E embora esta visibilidade tenha tomado as proporções que tomou, as práticas anarquistas, as organizações ou formas de nos organizarmos libertárias são antigas. Anarquistas sempre se organizaram e procuraram alternativas para viver/sobreviver.

O anarquismo teve um período de hibernação no sentido de que parece ter ficado por algum tempo sem uma continuidade devido aos anos de ditadura. Nos anos 80 o anarquismo teve uma retomada muito forte e também sob influencia do punk. As bandas, as pessoas envolvidas encontraram no anarquismo e nas práticas anarquistas, nas práticas autogestionárias (por exemplo ocupações, espaços autogeridos, em fim) a busca pela libertação. A busca por viver e sobreviver perante as injustiças, a busca por alternativas que não as dos moldes tradicionais. A busca por pensar e construir lutando contra o controle das opressões institucionalizadas que estamos submetidas, submetidos.

Mas eu tenho pouco tempo para falar aqui, sendo esta apenas uma introdução, um apanhado muito generalizado sobre o anarquismo na atualidade. O que quero colocar para as que estão aqui presentes, e para os que estão aqui presentes, é de que o anarquismo nunca existirá sem feminismo.

E que isto para mim é atualidade.

Nós mulheres anarquistas que nos envolvemos em espaços anarquistas em busca por libertação, encontramos muita resistência de que nestes espaços nos escutem. De que nestes espaços exista de fato uma libertação. De que nestes espaços estejamos seguras. Não queremos nenhum tipo de segurança vindo de outrem, não queremos sermos protegidas, não é disto que estou falando. Falo de que precisamos que nestes espaços estejamos seguras para alcançarmos objetivos libertários em todas as esferas das nossas vidas. Não uma libertação pela metade, uma libertação que é sugerida muitas vezes como prioritária enquanto nós mulheres anarquistas sabemos muito bem de nossas prioridades, de nossas urgências, e de toda a opressão machista da qual sofremos, da qual lutamos contra todos os dias.

Sim, não existe anarquismo sem feminismo. A revolução diária, utópica, ou de fato, não será revolução se ela não for feminista. Não é aceitável que o feminismo seja luta de segunda ordem.
Temos visto na atualidade cada vez mais denúncias de agressões por parte de “companheiros”. É possível que dentro de espaços anarquistas tenhamos que lidar com a opressão do patriarcado como se estivéssemos nos espaços não anarquistas? É obvio que o patriarcado se reflete nas pessoas e não poderia ser diferente com nós anarquistas. Por isso justamente que temos que destruir com o machismo que está dentro de nós.

Eu repudio totalmente a ‘acusação’ de que estou me focando e sendo separatista. Porque sim, eu estou me focando e serei separatista se tiver que ser. Porque sectário já é o patriarcado, e também aprendi do anarquismo a me organizar. Esta suposta “união” de lutas muitas vezes abafa, invisibiliza opressões específicas. Também totalmente repudio tentativas de boicote a autonomia das mulheres e sei porquê elas existem. Porque existe medo de confrontar privilégios, porque existe medo de perder o controle sobre o comportamento e sobre os corpos de mulheres e lésbicas. Porque ou não se nota ou é bom estar com o poder a seu alcance para quando se precise ou se queira usar.

E sim quando digo nós mulheres o faço porque estou me colocando numa classe. Porque precisamos nos colocar como classe, como grupo, porque a opressão se apresenta para todas nós mulheres, anarquistas ou não.

Nos protestos mulheres foram estupradas por policias e supostos companheiros. Vimos homens se aproveitando da confiança e da proximidade na luta para subjugar mulheres que acabaram sendo violentadas e abusadas. E sempre se questiona a mulher. O que ela fez, o que ela vestia, que horas eram.

E enquanto nas ruas corremos da polícia, nós mulheres temos ainda uma outra ameaça. E quando nos separamos de nosso grupo de afinidade, de nosso bloco, temos isso em mente e nos nossos corações, porque desde que nascemos a ameaça e o abuso são institucionalizados, fazem parte do ar que respiramos.

Não meus amigos, sim, não amigas, amigos, especificamente para vocês, que nesta linguagem patriarcal me ignora, me exclui e me invisibiliza. Então: não meus amigos, não existe anarquismo sem feminismo. O patriarcado antecede ao capitalismo. E a atualidade continua patriarcal.Não existem práticas libertárias enquanto nós mulheres não formos livres.

Só seremos livres quando todas formos livres.
Não se ponham no caminho da nossa libertação.”