“Daqui não sai”: Reflexões sobre o Rumor

Texto de Andrea Franulic, feminista chilena radical da diferença, sobre o papel do rumor (a fofoca) como instrumento patriarcal que parte da lógica da misoginia, no movimento de mulheres. Analisa o rumor como terrorismo político dentro do feminismo contra mulheres ativas, como reprodução da feminilidade e como um recurso aprendido dos sistemas opressivos sob os quais vivemos.


Daqui não sai: reflexões sobre a fofoca

Por Andrea Franulic e Jessica Gamboa
tradução por hembrista@riseup.net

“Eu te suplico
faça algo
aprenda um passo
uma dança
algo que a justifique
que lhe dê o direito de estar vestida de sua pele, seu cabelo.
Aprenda a caminhar e rir (…)
afinal
que tantas estejam mortas
e que você esteja viva
sem fazer nada de sua vida”
(Charlotte Delbo, 1970).

 

Viemos querendo escrever sobre o Rumor. Claro que não somos as primeiras a fazê-lo. As disciplinas patriarcais vieram realizando teorizações sobre o tema (a psicologia experimental, a psicologia social, a psicanálise, a teoria da comunicação e a sociologia). Não vamos nos basear nelas. Nosso interesse se encontra nos textos que pudemos encontrar na teoria feminista, devido a que as mulheres somos e viemos sendo o principal objeto do rumor no contexto de uma cultura misógina. Isso explica que, inclusive em espaços feministas, o rumor aparece como uma prática recorrente para desacreditar as mulheres pensantes e que se destacam por um trabalho consistente.

Dentro da teoria feminista, encontramos escritos de Audre Lorde (2003) sobre o que chama de ‘Tergiversação’[1], que no nosso entendimento, seria uma ‘versão torta’ e tendenciosa que o patriarcado faz circular por aí sobre a vida das mulheres. E que é o rumor senão uma versão torta, distorcida, de alguma realidade? Também Margarita Pisano escreve sobre os “Segretos, chantagens e rumores… os preconceitos” (2004). E menciona o conceito em seu livro ‘Julia, quero que seja feliz’ (2012) e em sua Biografia política (2009) que escreve junto com Andrea Franulic, onde se descreve sua própria experiência como objeto de rumor no processo de desmontagem do projeto “Casa da Mulher A Morada”.

Recentemente tivemos a sorte de obter, por meio de umas mulheres anarco-feministas, um fanzine entitulado “Coletânea sobre Sororidade Autocrítica ou sobre Violência entre Feministas” (2013) que começa com uma epígrafe muito inspiradora da feminista radical Phyllis Chesler, e que compartilhamos a seguir:

“Não comece rumores sobre outra mulher. Se você ouve um rumor, não o faça circular. Deixe que fique com você. Não é ético punir e sabotar outra mulher que você inveja ou teme, caluniando sobre ela ou colocando outras mulheres contra ela.”

O fanzine contêm artigos de diversas feministas. Lendo-os, encontramos trechos chamados de “comentários de amigas” sobre o texto “Segredos, chantagens e rumores… os preconceitos” de Margarita Pisano, que também aparece publicado no fanzine. Destes comentários, há uma consideração que diz que uma das características do rumor, ou melhor dizendo, de quem o exerce, seria a ausência, o vazio ou carência de uma identidade própria. Preferimos deixar o conceito de identidade de lado (por não estar de acordo com este enquanto categoria de análise) e falaremos de uma ausência de projetos de vida próprios ou vazio de conteúdo da própria existência e, por fim, da necessidade de preencher esse vazio assumindo a vida de outras pessoas. Desde esta carência e mediante o rumor, se estabelecem alianças na sombra com quem também gravita em torno deste vazio de um sentido de vida e confluem no desejo de subir em uma situação de privilégio e poder, tirando do caminho quem entorpece tal propósito, geralmente pessoas que contribuem com um trabalho concreto e de qualidade.

O rumor vem sendo uma prática patriarcal como tática de guerra, com fim de colonizar territórios, obter poder, ganhar eleições, conseguir lucros na bolsa, herdar bens, destruir lideranças, negociar tratados políticos, obter informação privilegiada, trocar mulheres, traficar armas, etc. É e vem sendo utilizado desde as direitas mais fascistas até as esquerdas mais revolucionárias. As táticas de guerra se herdam, se aprendem, se sofisticam e se naturalizam. O feminismo não escapou de nada disso. Principalmente se viu intervido pelo patriarcado de esquerda. Patético resulta – por nossa falta de história e genealogia, pelos custos que há em articular um trabalho autônomo e pela árdua tarefa de legitimar-nos entre mulheres – que o rumor perpetue a misoginia e desarme de tal forma a produção de mulheres. Este custo para nós mulheres é profundo, nos deixa vagando no Nada.

Celia Amorós (1987), embora seja uma feminista da igualdade, desenvolve acertadamente o conceito das Idênticas para referir-se à relação entre as mulheres na cultura patriarcal. Coloca que todas as mulheres cumprimos a mesma função social no patriarcado, ou seja, a funções próprias da feminilidade, e neste sentido, as mulheres somos substituíveis umas por outras e, o que é pior, somos descartáveis. Quando uma mulher sai do papel de ser uma idêntica, de uma igual a todas outras, e rompe com os desígnios da feminilidade, sobressaindo, isso gera misoginia, invejas e medos nas demais. Ela se transforma em uma ameaça para o grupo. Às mulheres não se perdoa tão facilmente exercer a capacidade de pensar, tampouco se lhes perdoa falar e escrever com inteligência. É mais aceito e aplaudido que se destaquem pelos trabalhos domésticos, ou por práticas do fazer, onde silenciosamente repetem uma e outra vez um destino não-criativo.

O rumor vem invadindo historicamente a vida das mulheres. Temos exemplos de perseguições promovidas pelo rumor. Somente para nomear um acontecimento muito emblemático, recordamos a matança das denominadas bruxas, levada a cabo entre os séculos XIV-XVII na Europa ocidental e central. Bastava que qualquer pessoa fizesse correr o rumor de que esta ou aquela mulher possuía pactos com o diabo, para que estas fossem acusadas de bruxas, e assim, torturadas, enforcadas ou queimadas vivas na fogueira da praça pública. As bruxas foram utilizadas como bodes expiatórios pelos homens.

Fazendo a analogia, podemos dizer que a vítima do rumor funciona como um ‘bode expiatório’, o dizemos em um sentido literal e metafórico. A situação de debilidade, vulnerabilidade e super-exposição que afeta a vítima é utilizada com o objetivo de expiar nela as próprias misérias não-assumidas, os próprios pecados, de maneira catártica. Assim como para justificar a falta de auto-crítica, os próprios equívocos, a carências e as inseguranças de todo tipo. Isto se relaciona com o que foi dito em parágrafos anteriores: o rumor serve de veículo para tapar o próprios vazios. As mulheres, doutrinadas na moral e bons costumes, castigam o bode expiatório para projetar nele suas próprias dependências: ao amor, ao álcool, à droga, aos homens ou a suas instituições. E assim, se sentem puras e sábias.

Identificamos dois papéis na prática de circulação dos rumores. O primeiro se sustenta e opera desde o lugar do Poder. Neste caso, a pessoa possui uma insegurança encoberta que a perturba, e seu movimento é defender-se do medo que lhe gera a perda desse poder, do prestigio e dos privilégios. O segundo, o mais descrito até então, é aquele que funciona desde a Mediocridade. Este papel pode resultar mais perigoso, pois aqui “o fim justifica os meios” com a pretensão de concretizar interesses aspiracionais que podem ser de diversa índole: desde interesses econômicos até de tipo psicológico como o querer “ser alguém”. Este papel nos recorda, nos evoca, tem semelhanças ao que a filósofa Hannah Arendt (2003) chamou por A Banalidade do Mal. Porque, segundo ela, os crimes cometidos contra a humanidade, as torturas e genocídios, são executados por seres medíocres, não pensantes, que somente seguem ordens e regras mecanicamente, obedecendo… milicos de direita e de esquerda.

Albert Camus em seu livro O Homem Rebelde (2005) estabelece a diferença entre o ressentido e o rebelde. O primeiro tem uma ânsia voraz por ‘pertencer a’ e ‘ser’ aquilo que critica. Já o rebelde, se arrisca com sua solidão. Quem exerce o rumor, sobretudo desde o papel da mediocridade, deseja compulsivamente pertencer e busca as cumplicidades necessárias para cumprir esta meta. Em outras palavras, o rumor é uma prática oportunista. No fim, se atua desde o ressentimento, a condescendência e a adulação… jamais desde a rebeldia. Como contraponto, quem é vítima do rumor é deixada no vazio: deixa-se de falar com, deixando esta capturada em uma névoa espessa, rodeada de um arco invisível de desconfianças, marcada pelo estigma que a tacha e a reduz, absorvendo-lhe as forças pensantes e criativas, como se estas existissem de sobra neste mundo deshumanizado. Enquanto isso, o restante realiza um pacto sectário de silencio.

Quem padece o rumor sofre um tipo específico de maltrato: o isolamento, a incomunicação, o sentimento de culpabilidade, a ameaça da chantagem e a paranóica e confusa vivência de não saber como, quando, por quê, quê e quem(s). Sofre uma alteração em seu uso da linguagem, pois teme usar as palavras, que são a principal ponte de comunicação entre as pessoas. Como escrevemos por aí, a palavra ‘rumor’ vem de ‘ruído’ que, por sua vez, vem do latim ‘rugitus’ (rugido). Isso, segundo o dicionário etimológico de Corominas (2000). Se interpretamos um pouco e sem complexos com a obviedade, diríamos que ‘fazer ruído’ ou ‘rugir’ são contrários a falar, a usar as palavras. Se interpretamos um pouco mais, usar as palavras para nos entendermos nos faz justamente humanas, nos faz sentir bem quando encontramos pontes de profunda conexão. O rumor desumaniza.

Agora vejamos, quando se recebe um rumor, há escolhas: nos fazermos cúmplices na circulação deste e colaborarmos em deixar no vazio à pessoa em questão, ou então colocamos um limite a isso. Portanto, o ato de receber um rumor não é um ato passivo. Quem escolhe não participar nem prestar ouvidos ao rumor o detêm e pode, inteligentemente, perguntar-se sobre as outras versões da mesma realidade entre a dita. Pois a neutralidade na linguagem não existe. Por isso, é justa a possibilidade de pôr em dúvida as versões e as fontes: um exercício básico que realizamos com a mídia hegemônica por exemplo, quando somos críticos. Se esta versão provêm de quem detêm um poder ou é considerada uma pessoa ‘legítima’, ‘confiável’, é mais difícil ainda desmentir. E neste caso, a versão do rumor toma as características de uma ‘História Oficial’. Não é demais lembrar que, no patriarcado, a historiografia elaborou uma versão oficial do mundo enviesada e cheia de invisibilizações, e é exatamente assim que as mulheres viemos perdendo nossa história.

Podemos identificar alguns tópicos do rumor que condizem com os tópicos da História Oficial. Em primeiro lugar, a Mitigação e a Exageração. A mitigação (aliviamento), usada a favor de quem promove o rumor, consiste em ocultar, diminuir, abrandar, fazer pouco caso ou, inclusive, ironizar sobre as próprias equivocações e erros, no seu caso. Pode ir acompanhada de um certo grau de auto-compaixão. A exageração, por sua vez, se utiliza contra a outra pessoa; se exageram e dá dramaticidade aos erros da outra pessoa. Algumas vezes a exageração vai acompanhada de mitomania e megalomania. O “exageracionismo” é um recurso do rumor.

Um segundo tópico fundamental é a Descontextualização, onde a informação que circula é uma informação ‘descarnada’, ou seja, extirpada de seu contexto original, vital, que continha pessoas com corpos e olhares, entre quem existia intimidade e confiança e um percurso próprio e autêntico da relação particular. Assim como existiam momentos, lugares e circunstâncias específicos; sentidos e propósitos, angústias e alegrias. A informação é retirada do contexto e da experiência que lhe deu vida e se utiliza com fins utilitários (oportunistas). Porém, não há informação no ar, as mensagens mudam seu sentido e seu destino radicalmente, segundo o contexto onde se usem. Nunca voltam a ser a mesma mensagem nem voltam a ter o mesmo significado. A descontextualização como recurso ou tópico do rumor, se baseia na chantagem e usa falsas testemunhas, isso é, personagens que, revestidos de um empoderamento emprestado, se atribuem ou se auto-concedem a autoridade de juízo sancionador, fundado na mais profunda ignorância da história questionada. Esta ação muitas vezes se marca na triste história de traição entre mulheres.

Como toda História oficial, a falta de honestidade desde onde circula a versão, a ‘tergi-versão’ (tegiversação: versão torpe, torta) da realidade, se disfarça de discursos salvadores, bons e messiânicos, inclusive baseados no amor. Os quais na realidade escondem as inseguranças, os despejos, os posicionamentos e as acomodações mais obscuras. Esta tática perturba e confunde as verdadeiras e reais fontes da dominação (Denise Thompson, 2003).

Outros tópicos reconhecíveis são ‘Frases Feitas’ que servem para finalizar o relato do rumor, talvez como parte da estrutura do Rumor se o identificamos como um gênero discursivo em si mesmo. Estas frases são: “não comente isso por aí…”, “daqui não sai…”, “não fala pra ninguém…”, “eu te digo isso porque eu o vi na minha própria experiência…”, “estou te contando isso porque confio em você…”, e etc. Nesta mesma linha, contamos com refrãos ou ditos populares, sempre impregnados do imaginário patriarcal, regados de lugares comuns (preconceitos), que se utilizam para semear o medo. Para nosso específico tema do rumor, nos vêm à mente as inquisidoras e penalizadoras frases que dizem “quando o rio soa é porque pedras traz”[2], “algo ela fez para que falem isso”, “não faça o que não quer que façam pra você”, “tudo se paga nesta vida”, “tudo cai por seu próprio peso”.

Redundante dizer que as famosas e neoliberais “redes sociais” são terreno fértil para difundir o rumor: a vitrinização e o imediatismo do facebook, do chat, dos correios electrônicos, etc. Estes sistemas são facilitadores para a vertiginosa circulação dos rumores e para a ameaçadora chantagem, porque em geral servem às pessoas que, des-corporizadas, se escondem e se protegem atrás do meio tecnológico, por meio de seu uso anônimo e impessoal.

A misoginia é uma pesada realidade para todas. A reflexão sobre a falta de sororidade ou de affidamento[3] deve ser mais profunda e comprometida. É fundamental que a imagem de espelho que nos produz a outra, nossa igual, não se utilize como o faz a madrasta de Branca de Neves, senão como uma porta para as sólidas pontes feitas de palavras, estas que dão cabimento à confiança e ao entendimento, mas somente quando real e verdadeiramente existe a horizontalidade.
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Traduzido de https://andreafranulic.cl/misoginia/de-aqui-no-sale-reflexiones-sobre-el-rumor/

[1] Tergiversar segundo a própria autora é “mudar o sentido das coisas para sua própria conveniência e benefício. Etimológicamente, a palavra significa “dar as costas à”. Curioso. O patriarcado esteve “tergiversando”, históricamente, nossas experiências de mulheres(…) Impôe seu próprio sentido de realidade e inventa o relato que lhe convêm para manter seu domínio. A tergiversação é totalitária e auto-referente, porque o patriarcado é “um”, somente vê a si mesmo e a feminilidade existe para lhe devolver seu próprio reflexo. Desta maneira, se transforma em uma montanha gigantesca de parcializações, apagamentos e vazios a respeito de nós mulheres. Quê esgotador é defender-se de cada acusação patriarcal!”. (https://andreafranulic.cl/lenguaje/la-tergiversacion-de-la-experiencia/) A autora retirou esse conceito do texto de Audre Lorde, “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, onde esta diz que o silêncio não nos protege, embora distorçam nossas palavras. Mais que falar, diz Lorde assim como Anzaldúa, devemos escrever, pois escrevendo nos tornamos existentes e confrontamos as ‘versões distorcidas’ de nossa história, pois as mulheres não possuem história e isso se conseguiu a base do rumor, pois a história oficial se constitui no conjunto de rumores dos homens sobre a realidade e o ocorrido, e as mulheres, tal importante mecanismo de poder o rumor representa. E escrever e falar, além de ser confronto das versões distorcidas/rumores, é constituir-se em sujeita histórica e assumir a tarefa de produzir história de mulheres.

[2] Um ditado específico da cultura chilena, quer dizer algo como “se falam isso deve ser porque algo fez de errado”, no caso dos rumores.

[3] Termo em italiano para sororidade, proposto pelas feministas italianas ‘da diferença’.

* Recomendamos também a leitura do texto “O rumor, a feminilidade, o patriarcado” por hembrista https://we.riseup.net/feminist_troll/o-rumor-a-feminilidade-o-patriarcado

A Marcha Das Vadias Não É Solidária

A Marcha das Vadias está consolidada podemos dizer assim. Infelizmente a marcha abafa muitas questões feministas, ao mesmo tempo que utiliza de argumentos feministas para justificá-la. A meu ver a marcha não só é bastante inconsistente como ação feminista mas é contraditória como tal e um passo atrás. Eu acho ainda estranho que as pessoas que defendem a Marcha das Vadias falem em vários feminismos ao mesmo tempo que não aceitam outros feminismos e procuram categorizar qualquer crítica à Marcha como conservadora. A Marcha tem conseguido de forma eficaz uma homogenização das feministas que nos prejudica bastante. Ser feminista passou a ser sinônimo de ser participante da Marcha ao ponto de ser um choque quando uma feminista não se engaja à Marcha das Vadias.

Por que será que todas as demandas feministas, todas as lutas que mulheres feministas engajadas propõe não são ouvidas nem levadas a sério e a Marcha das Vadias de um dia para o outro passa a ser a “voz das mulheres”? Por que tantos homens passaram a aderir a Marcha das Vadias, sem sequer compreendem outras ações que propomos? E por que ao contrário de um aprofundamento nestas questões ao constatarem isso, as pessoas da Marcha preferem dizer que isso é uma coisa positiva?

Por que a mídia tem tanto interesse na Marcha das Vadias? Acredito que o apelo que a Marcha tem é em função também da sociedade nos querer objetificadas. Desta forma as mulheres estão mais uma vez sendo usadas pelo patriarcado e pelo capitalismo, servindo as propostas neoliberais. A Marcha é um evento que cabe como uma luva na cultura da sexualização e da objetificação dos nossos corpos, mesmo que as pessoas acreditem que é uma forma de lutar pela liberdade de suas sexualidades. Eu acredito que a Marcha das Vadias se encaixa perfeitamente para que não aprofundemos o feminismo e na questão vital de que não está nos libertando, mas corroborando para dizer que sim, somos todas vadias! E isso atinge que ponto exatamente? De liberdade sexual? Eu acredito que não. Para mim abraça a lógica machista de que somos vadias, e somos o que os homens quiserem que sejamos. E agora além de sermos o que os homens querem que sejamos, dizemos sim! E sim, agora descobrimos que podemos ser objetificadas e hipersexualizadas, que isso é muito bom para a nossa liberdade sexual, basta dizermos que somos objeto do nosso próprio desejo! Sério? Para mim abraça a cultura de que somos desejáveis ao olhos de homens e que sigamos nos comportando como objetos de desejo masculino em termos historicamente criados para excitarem os homens, não importa o quanto justifiquemos com o discurso de que somos objeto de nosso próprio desejo. Quem está querendo enganar quem?

A marcha consiste de um ponto de vista extremamente individual, por isso também se enquadra no pensamento neoliberal, onde cada mulher está centrada em si mesma dizendo “eu faço o que eu quero”, “isso é bom pra mim”, “sou livre” ignorando que muitas mulheres não tem a mesma oportunidade de escolha. Muitas de nós mulheres que são ou foram tratadas como vadias não querem se apropriar deste termo, e muitíssimo pelo contrário, queremos nos livrar deste, pois queremos poder sermos nós mesmas sem que nos ponham selos! ‘Eu tenho visto e também sentido na pele, que o termo vadia sempre foi usado como ferramenta misógina. E por mais que a Marcha das Vadias quer se apropriar disso, nós mulheres não vamos deixar de sermos tratadas como vadias, putas, vacas, etc quando alguém assim desejar. Digamos que seja possível ressignificar o termo Vadia, vamos supor que isso seja possível, podemos estar certas de que outro termo será criado para qualquer comportamento ou realidade das mulheres, e as mulheres prostituídas terão que ter uma nova denominação, porque estas precisam ser tratadas como vadias na vista da sociedade. Nós não vamos estar eliminando o problema, apenas mudando de nome, mas continuaremos sendo menosprezadas – umas mais que outras, isso é importante ressaltar: quem são as mais menosprezadas? Ou ainda, quem são as privilegiadas?

Não esqueçam que o termo vadia é um termo criado pelo heteropatriarcado, porque se refere a mulher em relação ao homem. A mulher sozinha é santa, o outro lado da mesma moeda, de um também estereótipo que visa controlar, pois a mulher também não pode estar sozinha, ela precisa de um homem, mas não mais de um. Já as lésbicas são aberrações e ameaçam o papel da mulher de reprodução. Conceitos heterossexistas e conservadores para que compremos conforme nossa “opção”, conforme no que melhor nos enquadramos.

Mas não, não vale a pena nos rotularmos!

O que é ser uma vadia? É um tipo de comportamento? É usar um tipo de roupa? A mulher que “dá pra todo mundo”?

Eu não acredito em nenhuma destas premissas e acho incrível como esta apropriação apaga de vista as mulheres prostituídas porque fala em comportamento, mas jamais fala sobre a exploração e a violência que as prostituídas enfrentam.Com certeza a marcha não fala pelas mulheres prostituídas, antes pelo contrário ela ignora estas mulheres que não podem escolher um dia do ano, como fazem a maioria das mulheres na marcha ao se apropriarem do termo e se vestirem como vadias. Mulheres que são tratadas com desprezo, abuso e violência, simplesmente porque elas são as “verdadeiras vadias” para a sociedade todos os dias.

Pois nós todas as mulheres, prostituídas ou não, não somos vadias, vagabundas ou vacas. Se uma mulher ou garota que regularmente vai pra escola ou para o trabalho mas um dia por ano resolve ir a marcha utilizando o termo vadia, ela está agindo de maneira colonizadora, porque ela não sofre de forma alguma as consequências de ser uma “vadia de verdade”, ela não tem homens fazendo fila para estuprá-la com respaldo da sociedade, que acredita que suas filhas estão salvas enquanto estas mulheres que “escolheram” serem “prostitutas” existirem para que os homens descarreguem todo seu ódio e violência que sentem pelas mulheres (como disse Rebecca Mott.). Esta mulher ou garota que vai a marcha e diz que é puta, só o diz por estar numa absoluta posição de privilégio que inclui escolher o dia que vai ser ou se vestir “como puta”. O problema não é estar numa posição de privilégio, como alguém me perguntou: “qual o problema destas garotas na maioria brancas de classe média fazerem suas reivindicações?” Não seria problema mesmo, se isso não contribuísse ativamente para apagar os problemas que outras indivíduas estão passando. Feminismo para mim está absolutamente conectado com solidariedade entre mulheres, então torno a repetir que se milhões de mulheres querem se livrar do peso de serem tratadas como vadias e que o termo vadia lhes machuca e elas estão dizendo isso, porque ignorá-las? Será que pelo menos isso não merece a atenção das pessoas que marcham?

Acredito que muitas garotas principalmente as novas, realmente acreditam que o que a Marcha propõe favorece a liberdade de nós mulheres, não duvido das intenções de muitas pessoas envolvidas na Marcha. A questão que coloco não é para ficarmos em batalha, de forma alguma. As críticas que coloco são para propormos uma Marcha que agregue mais mulheres, que todas as mulheres se sintam confortáveis para caminharem juntas.Se a reivindicação é contra a violência sexual, marchemos contra a violência sexual. Se a reivindicação é quanto a nossa sexualidade marchemos por ela. A nossa sexualidade pode ser a nossa não relação com os homens! Ou pode ser também a nossa não sexualidade! Ou a nossa sexualidade está estritamente ligada aos homens e ao que os outros esperam de nós? E seria isso “nossa” sexualidade?

Que a marcha atinja a maioria da pessoas, eu compreendo, pelo espetáculo que virou, pela cobertura midiática e pela genuína necessidade de reivindicar os direitos das mulheres. Mas ela é uma verdadeira bomba de contradição ao feminismo. Ela fere as propostas feministas ao que se estende para todas as mulheres, que além das mulheres sofrerem discriminação e violências, que classe e cor da pele são determinantes para ditarem a maneira de como serão tratadas. Conscientes disso, porque deveríamos nos engajar em ações reformistas como esta?

A Marcha fala de estupro e sexualidade mas de uma forma a apagar demandas feministas importantíssimas. Lutamos pela nossa liberdade sexual, esta liberdade sexual não é liberdade se ela está totalmente inserida no contexto patriarcal, e nos jogos que este impõe de controle, onde o homem domina e a mulher é subjugada e objetificada. Numa sociedade que cansa de justificar o estupro como uma “urgência incontrolável” masculina (para isso servem as “prostitutas”, certo?), ou seja, uma via da sexualidade do homem, enquanto na verdade o estupro é apenas a confirmação de poder e do ódio às mulheres.

Não é uma questão de ser muito dura nas críticas, é uma questão de observar uma falta de consideração e solidariedade com as mulheres prostituídas, com as mulheres negras, as dos povos originários, de etnias, e com todas mulheres que são ou foram tratadas como vadias e vivem uma vida se esforçando para se livrarem destes traumas e de situações brutais, e que apenas a palavra vadia as fazem relembrarem de algo que elas carregam pesadamente. Se as mulheres que vão a marcha preferem ignorar milhões de outras mulheres, são elas que estão sendo duras, a diferença é que elas se consideram alegres, divertidas e liberadas e estão centradas na sua catarse individual. E mesmo que tenham direito obviamente de viverem suas catarses, elas só não podem dizer que estão se solidarizando com todas nós as outras mulheres que sentimos na pele o que é sermos tratadas como vadias. Não, elas não estão.

enilador

fonte: http://anarcopunk.org/acaoantisexista/uncategorized/a-marcha-das-vadias-nao-e-solidaria/

Ato de Sororidade a Yakiri em São Paulo, presa por se defender de agressor sexual

Segunda, 24 de março às 11:00
Rua Holanda, 274. Jardim Europa – CEP 01446-030 – São Paulo/SP

mexico(3)No dia 9 de dezembro de 2013 Yakiri Rubí Rubio Aupart, uma jovem lésbica de 20 anos e de origem indígena da Cidade do México, DF, reagiu a uma brutal violência: sequestro seguido de estupro e tentativa de assassinato, perpetrada pelos agressores Luis Omar y Miguel Ángel Ramírez Anaya. Yakiri conseguiu desarmar um dos agressores que empunhava a faca que era utilizada para ameaçá-la, subjulgá-la e torturá-la e com a mesma arma conseguiu desferir um golpe em um deles, que, em consequência, acabou morrendo.

Yakiri conseguiu fugir e procurou a delegacia de polícia. Quando chegou lá foi surpreendida com a presença de um dos estupradores que lhe acusava de matar seu comparsa. E qual foi a reação da polícia? Proceder a exames de corpo de delito para tentar iniciar um processo que pudesse levar a Yakiri uma sensação de justiça? Não. A polícia, um dos braços repressivos mais eficazes em incutir nos nossos corpos de mulheres, lésbicas e pessoas trans as normas do heteropatriarcado, achou por bem indiciar a Yakiri por homicídio qualificado.

Deu-se início a toda uma série de trâmites dos sistemas de burocracia jurídica misóginos e lesbófobicos que só fizeram repetir uma e outra vez a violência da qual Yakiri logrou sobreviver. No final, Yaki foi enviada à prisão por “uso excessivo de autodefesa” e de onde só saiu depois de 86 dias e sob uma fiança exorbitante de 430 mil pesos mexicanos (o equivalente a 5 mil salários mínimos), preço que lhe obrigaram a pagar para aguardar o julgamento em “liberdade”.

O sistema jurídico e repressivo nesse caso mais uma vez atuou como parte de uma grande engrenagem de castigo que se debruçou sobre Yakiri assim como se debruça sobre cada uma de nós que ousa sair do espaço de submissão a nós reservado. Yakiri se defendeu, conseguiu não ser morta e lutou contra o destino que lhe traçaram: do estupro como castigo por sapatão e insubmissa e do feminicídio como assassinato político. Para essa gigantesca forma de opressão e repressão nos defender do abuso, da invasão dos nossos corpos e da aniquilação política é abusivo. É abuso de legitima defesa. E nesse sentido perguntamos: pode a autodefesa ser abusiva?

Yakiri foi sequestrada e violada por agressores machistas. Depois foi sequestrada e violada pelo estado porque as prisões não são nada mais do que a institucionalização do sequestro e da violação, a materialização brutal de violências heteropatriarcais, racistas e classistas. Por isso dizemos que esse sistema de justiça não é o nosso. Nunca poderemos obter justiça de instituições cujo objetivo é nos manter dóceis e sob controle para que privilégios heteropatriarcais possam seguir existindo. Contra a agressão machista, autodefesa feminista!
Por todas as mulheres, lésbicas e pessoas trans que sucumbiram nas ensanguentadas mãos do heteropatriarcado e que pagaram com suas vidas, com seus sonhos, ou que foram encerradas detrás das grades das prisões. Por todas as que resistiram e por todas as que resistimos.

Dizemos mais uma vez:
Nenhuma agressão sem resposta!
Nem uma morta a mais!
Abaixo os muros de todas as prisões, tanto as físicas e como as simbólicas!

#YakiLibre
#YakiriLibre

Coletiva amazonas em fúria

Mais info:
http://yakilivre.noblogs.org/post/2014/03/19/yakiri-livre/

https://rizoma.milharal.org/2014/02/10/eu-teria-feito-o-mesmo-campanha-pede-libertacao-de-mexicana-presa-por-matar-seu-estuprador/

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feministas autonomas mexicanas se manifestam nas ruas pela liberdade de yakiri. Fonte http://lahoguera.confabulando.org

Neste 8 de março, queremos o fim da exploração sexual das mulheres!

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panfleto distribuído por Comitê de Abolição da Prostituição, na marcha de 8 de março em São Paulo

Mulher não é mercadoria! Pela abolição da prostituição!
(Para ter acesso ao formato panfleto, clique aqui)

O projeto de lei Gabriela Leite do deputado Jean Wyllys (PSOL), se aprovado, legalizará a prostituição. Embora haja um mito de que a legalização beneficia as mulheres em situação de prostituição, na realidade a legalização só beneficia os cafetões e os consumidores.
Esse projeto considera que a prostituição é um trabalho que algumas mulheres escolhem livremente. No entanto, a voluntariedade dessa escolha não é real, uma vez que essas mulheres entram na prostituição por necessidades financeiras, por terem aprendido a ver seus próprios corpos como mercadoria ou por terem sido forçadas por um terceiro. É inaceitável que a prostituição seja equiparada a qualquer “prestação de serviços”. Ela é intrinsecamente uma apropriação do corpo das mulheres pelos homens, uma violência condizente com toda a exploração da sociedade patriarcal e capitalista em que vivemos.
Com a proximidade dos Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), é grande a pressão para que esse projeto seja aprovado. Insistindo numa falsa diferenciação entre prostituição e exploração sexual, o PL de Jean Wyllys visa facilitar o lucro dos cafetões durante esses períodos de grande procura por turismo sexual. Além de não dispor sobre formas de garantir a segurança das mulheres em situação de prostituição, a justificativa do projeto dá a entender que o tráfico sexual seria uma demonstração de ‘solidariedade’ (!) e propõe alterações no atual Código Penal, que considera crime manter casas de prostituição.
Devemos pressionar para que o governo pense nos interesses das mulheres e não no lucro dos cafetões ou na comodidade dos consumidores!
Defendemos um modelo abolicionista da prostituição:

1. Nenhuma criminalização às mulheres em situação de prostituição. Por políticas que promovam a saída das mulheres da prostituição e da marginalização social.

2. Por uma lei que criminalize a compra de qualquer ato sexual. Pela responsabilização e criminalização do consumo de sexo.

3. Por mais fiscalização e pela criminalização de qualquer forma de agenciamento, controle ou aliciamento na prostituição. Pela criminalização da cafetinagem, das casas de prostituição e das redes de tráfico sexual.

4. Por mais políticas sociais voltadas para as mulheres, por equiparidade salarial entre homens e mulheres e por políticas e campanhas de prevenção à prostituição.

http://comiteabolicaoprostituicao.wordpress.com/

abuso de confiança

Retirado do fanzine confabulando. Ele pode ser baixado aqui. (reservas quanto ao conteúdo pró-pornografia)

Dorme na cama acorda na lama . O feminismo acabou?

Tenho lido/ouvido/falado bastante com amigues sobre violência sexual, física e simbólica, praticada contra mulheres em cenas libertárias. Violência sexual, assédio e estupro são temas que marcaram minha vida, e a de muitas amigas. A quase totalidade de mulheres que conheço não só passou por experiências sexuais indesejadas como teve a descoberta de sua sexualidade inaugurada por algum tipo de violação física (que quase sempre deixou resquícios traumáticos ao longo de nossas vidas).
Essas ocorrências são tão usuais e freqüentes que fico espantada quando conheço alguém que não passou, por exemplo, por abuso na infância. E acho muito legal que possamos contar umas com as outras pra criar espaços seguros em que podemos, pelo menos, conversar sobre isso – nos fortalece, ajuda a dizer “não”, nos ajuda a localizar ou expressar nossa raiva, uma certa vergonha e o medo que temos quando não conseguimos dizer esse não, quando nosso não é ignorado.
( recentemente tenho pensado mais sobre isso, sobre o cara que, do outro lado – quando esse lado não é “em cima de você -, não é um cara genérico, um desconhecido que passa por você na rua e se sente no direito de fazer isso ou aquilo com seu corpo, ou com o corpo dele, de maneira a te intimidar, agredir, abusar. não é o estuprador sem nome, o que passa rápido por você na rua e passa a mão na sua bunda, o que, de dentro do carro, te chama disso ou daquilo. estou pensando no cara que tem um nome, que sai com a gente, que é amigo de outras amigas, que é militante ou toca numa banda. um ‘brother’, não um agressor. e mesmo assim é ele que se aproveita de quando você tá bêbada, ou cansada, ou de saia – entendendo isso como um sinal de que você quer trepar com ele, não importando o que você diga -. como é que esse cara consegue fazer isso com a gente e simplesmente continuar sua rotina no dia seguinte? como ele vai pra um ato, pra uma gig, pra uma reunião de coletivo, ou vai tomar uma cerveja e, no buteco, comenta com outros amigos (ou algumas amigas) sobre a noitada de ontem, depois de ter estuprado alguém?
Como ele consegue tirar a roupa de uma pessoa que ficou pra dormir na casa dele porque tava muito cansada ou bêbada (e agora pode estar acordada e chorando) e porque confia nele, de alguma forma, e penetrá-la contra sua vontade, passar a mão nela, imobilizá-la, ignorar seus gritos ou apelos ou pedidos?
Fico lembrando de quando as meninas íamos de saia pra ver umas bandas e não só estávamos sujeitas a dedadas (no mínimo), como também poderíamos ser ‘xingadas’ de promíscuas (“vadia”, “galinha”, “puta”, “piranha”, “já comi”) porque estávamos lá com aquelas roupas. o problema sempre somos nós e nossas roupas. nós e nossos corpos. Eles é que são óbvios e ficam marcados.
Não é óbvio que tal cara seja um estuprador. ninguém se refere a ele como “o fulano que embebeda as minas e estupra elas depois”. muito em parte porque

1) Além da mina e do cara, poucas pessoas vão saber disso e
2) Isso nem é considerado estupro por muitos caras. é como se fosse a punição por estarmos de saia dormindo/bêbadas/cansadas/ali.
no caso das meninas que gostam de beber essa punição é ainda mais exemplar, ela tem ares de castigo mesmo, já ouvi dois relatos de ocasiões diferentes sobre festas em que meninas bebiam, desmaiavam de bêbadas e eram sistematicamente estupradas por vários caras. Como se beber até cair, no caso das mulheres, fosse um convite explícito aos caras pra que façam fila e metam na gente enquanto estamos desacordadas, e depois ainda fiquem nos chamando de piranha pelas costas, com um ar de “ela mereceu”. Fico muito tempo pensando em como eles conversam sobre isso. Se não sentem constrangimento nenhum. Como nós temos nossas redes formais/informais/implícitas/explícitas de solidariedade feminina, eles terão espaços pra conversarem sobre esse tipo de coisa? Eles conseguem conversar com alguém sem acoplar um ar de conquista sexual à coisa? Eles dizem “fiz uma merda ontem”? Porque não é de um cara tosco que estou falando, é de um que não toma refrigerante porque boicota multinacional, é um militante de uma luta por mundos em que caibam outros mundos, um cara que faz escolhas políticas bacanas. como ele lida com essa separação entre o que é privado e o que é público? Por que caras que são legais em diversas instâncias continuam capazes de reproduzir os papéis mais cruéis do patriarcado? … e esse tanto de reflexão me traz de volta ao segundo título do texto.
E tenho visto (e sentido também) o cansaço de muitas feministas (ou mulheres que militam contra o patriarcado mas acham o rótulo “feminista” inadequado). às vezes não temos mais disposição pra sermos chamadas de “radical” o tempo todo. “chatas”, “loucas”, “exageradas”. e nos cansamos de ignorar certas piadas, comentários e olhares em nome de uma convivência ok com algumas pessoas. Isso significa que o feminismo acabou? Está ultrapassado?
É admissível que uma cena que se diga libertária tenha espaços pra violência e abuso baseadas em uma idéia de que alguns corpos estão a serviço de outros? Por que os discursos de liberação sexual não são acompanhados por práticas de libertação de papéis e comportamentos limitantes, exploradores, hierarquizantes, colonizadores?
Ainda estou tentando lidar com meu próprio cansaço. e esse texto é isso mesmo, um amontoado de perguntas que não consigo responder.

Consenso

1.
primeiro vai pedir. depois vai tentar. depois vai forçar. finalmente, vai tomar.
saia preta blusa roxa ou calça preta blusa preta? tênis, tênis confortável pra dançar (mas também correr se eu precisar) perfume brinco brilho gel no cabelo? gel no cabelo, ‘definidor de cachos’.

ele diz que é seu amigo. você pensa que é seu amigo. você age como amiga, não quer ser chata mesmo dizendo não.

barulho suor uma luz branca irritante tontura cerveja! cerveja! cerveja, eu adoro cerveja! ele dança, chega perto, sorridente, displicência, finje desinteresse mas passando a língua na boca daquele jeito nojento você tenta parar de mexer o quadril de um jeito determinado pra ele não entender errado.

ele entende errado. só entende o que quer. não respeita o que você não quer. não te respeita.

mais cerveja! eu adoro cerveja, cerveja me deixa alegre, a música me deixa alegre, dançar me deixa alegre, meu corpo cheio & tão leve cada vez mais alegre cada vez mais perto mais preocupada meio tonta sem noção mas sem vontade, nenhuma vontade de ficar com ele, mas se eu der um beijo nele ele vai embora? elemedeixa quieta? ele vai atrásdeoutra?

não vai. não deixa. ele fica, continua, contra a parede agora você não pode dançar nem respirar direito a língua dele corre como uma mão sufocando um pescoço mas suaboca suorelha, a mão dele é como uma língua pegajosa dentro do seu decote, dentro do decote, decote? por que eu vim de decote?

você bebeu demais, ele também. ele quer vomitar. ele te pede pra ir lá fora com ele, pede ajuda porque tá passando mal. você pode aproveitar pra ir embora, mas se ele tiver mentindo, mas se for só uma desculpa pra ficar longe de olhos além dos seus, o que você vai fazer? ele também usando tênis bom pra correr.

Fazer Limpeza

texto sobre gestão de violência em movimento social, extraído del períodico de Barcelona “Antisistema” número 15, junho de 2008.

No marco do movimiento libertário existe uma tendência unificadora que fortalece a coesão interna de um grupo já suficientemente isolado e rejeitado pelo exterior para que possa por em dúvida sua própria coerência desde dentro. Desta maneira, apesar das múltiplas diferenças ideológicas, as richas entre organizações e as disputas pessoais, sempre será arriscado pôr em dúvida a Correção política de um companheiro sobretudo no que se refere a tratamento desigual ou vexatório às mulheres. No caso das mulheres é diferente já que ao não vir acompanhada sua militância com uma auréola de entrega e heroísmo comparável a dos caras, tampouco sua falta de coerência é um feito grave ao considerarse que é de esperar sua falta de madurez política e sua debilidade ante as adversidades.

Acusar um “militante destacado” de agressão física, sexual ou psicológica a uma mulher (seja ou não sua companheira) supôe, em geral submeter-se a um interrogatório por parte de um entorno que atuará judicialmente, contrapesando a validez e a gravidade dos feitos, assim como os possíveis atenuantes do agressor para sua conduta (atitude e modo de vestir da menina, uso de alcool ou drogas…). A dúvida e a desconfiança será o primeiro com que se encontrará uma companheira ao denunciar públicamente uma situação de abuso, em parte por causa da busca de coesão interna para prevení-la des-membração de um grupo suficientemente ameaçado pelos perigos externos (isolamento social, repressão policial ,… ) mas sobretudo pela desvalorização da palavra da mulher em um movimento altamente masculino e masculinizante e pela percepção de “assuntos privados” que ainda pervive respeito às problemáticas de violência contra as mulheres.

Mas a dúvida sobre se os acontecimentos ocorreram realmente não será a única coisa com que terá que se enfrentar uma mulher que denuncia públicamente, no marco do políticamente correto, uma agressão por parte de um militante ou de um homem do entorno político. As mulheres que militam em organizações, grupos ou centros sociais de cariz libertário ou alternativo se auto-impôem, em muitas ocasiões, uma férrea dureza emocional para poder igualar-se com os homens que dificultará a própria percepção como mulher abusada ou agredida. Uma mulher feminista ou não sexista deve ser uma mulher autônoma e forte, imagem que se contrapôe no imaginário coletivo com a vítima de abusos ou de violência que se percebe como uma mercadoria defeituosa; uma mulher com baixa auto-estima, vulnerável e inclusive com desequilíbrios emocionais ou psicológicos derivados da agressão. Quê mulher feminista gostaria de identificar-se com esses parâmetros? E mais: da onde nasce essa percepção moralizante e vitimista das agressões físicas, psicológicas ou sexuais às mulheres?

Se partimos da base de que as mulheres que devem resolver e combater as agressões de nosso entorno, mediante a solidariedade e o apoio por uma parte e mediante a dureza e a violência por outra, então também devemos nós mesmas refletir sobre a violência e de nossa cumplicidade quanto a algumas condutas ou crenças que podem conduzir a ela.

A confissão por parte de uma mulher feminista OU “não sexista” de ser vítima de abusos, ou ter sido vítima de agressão sexual ou qualquer outra forma de violência genérica, corre o risco de converter-se em um talk-show mórbido e lacrimógeno e, no melhor dos casos, quer dizer, naqueles casos em que a mulher disponha de um grupo de mulheres de apoio, é muito provável que apesar de partir das melhores intenções, se acabe vitimizando à mulher fazendo ela se sentir ainda mais vulnerável. A reflexão, o apoio e a afetuosidade devem ser primordiais ao abordar uma problemática de violência contra uma companheira mas isso não nos livra de ter em conta que nenhuma característica define especialmente as mulheres agredidas, todas e cada uma de nós estamos em perigo, uma de nós está em perigo, partir de essa premissa nos afasta do vitimismo.

Vamos lá amigal! Quê você esperava? Isso podia acontecer com você, vamos combater juntAs!

O mito do “isso aqui não acontece” que se faz evidente na dúvida ante a denúncia pública de uma mulher vítima de abusos ou agressão por parte de um homem do entorno
político, nega a realidade e prejudica as mulheres. A ninguém lhes ocorreria duvidar de um companheiro que afirma ter sido vítima de violência policial ou de ter sofrido uma agressão por parte de um grupo fascista e muito menos se exigiria a este explicar detalhadamente como ocorreram os acontecimentos de tortura para verificar sua autenticidade. Porém ante uma agressão sexista a uma mulher muitos homens e mulheres se dotam da legitimidade para duvidar o interrogar a agredida e inclusive minimizar os fatos ou relegá-los à categoría de “assunto privado”. Posto que o pertencer a um movimento político não é garantia nem de pureza nem de retitude moral ou política ao não existir mais condição de pertinência que a própria iniciativa e posto que os assuntos relacionados com a luta das mulheres são minimizados, ridicuralizados ou diretamente rejeitados, podemos supôr que em nosso entorno hajam muitos homens com escasso compromisso com os valores anti-patriarcais e que alguns deles podem exercer como agressores ante um entorno que justificaria ou minimizaria sua ação. A crença de que as agressões às mulheres sucedem mais além de nosso entorno político, entorno que se mostra desde esta perspectiva, limpo e distante dos valores morais patriarcais, nos deixa indefesas ao negar uma realidade que se impôe de maneira brutal uma vez atrás da outra.

Por outro lado, alguns feminismos estiveram alimentando a idéia de que as mulheres devem permanecer distantes e protegidas do risco que supôe viver em um corpo sexuado de mulher e que deve ser a proteção estatal, a compreensão institucional e as medidas positivas as responsáveis de salvaguardar nossa integridade. Esta crença que se corresponde com um feminismo institucional e anti-revolucionário impregnando as crenças de muitos outros movimentos de mulheres anti-sexistas que se escandalizam ante os sucessos de violência de gênero ao comprovar que a via dialogada, mixta e apaziguadora não provocou mudança alguma nos homens de nosso entorno político ou no melhor dos casos há gerado um espaço de tolerância restrita aos preceitos feministas. O feminismo deve esvaziar-se da correção casposa que vem arrastando há décadas, as mulheres feministas devemos afastar-nos de uma vez por todas da comodidade da correção política e as pretensões de “intocabilidade” e aceitar que enquanto isto não mude (e não parece que isso vá ocorrer tão breve) em qualquer espaço público ou privado, político ou corrente corremos um risco. Agora, esse risco não deve perceber-se desde o medo e a aceitação passiva senão que desde o combate; assumir que o risco forma parte intrínseca de nossa existência como mulheres é aprender a combatê-lo e sobretudo é não derrubar-se quando o risco se converte em agressão: assim é a guerra!

A percepção da luta anti-patriarcal desde uma perspectiva mixta elude o componente do risco. Os ambientes mixtos geram um falso ambiente conciliador o qual faz parecer que os homens compartem nossas mesmas estratégias e finalidades, des-legitimando o uso da violência por parte das mulheres ao considerar que esta é uma medida extremista quando a mediação parece dar bons resultados. Bons resultados que desvanecem quando as exigências por parte das mulheres aumentam e quando estas já não estão dispostas a viver ou militar sob o jugo masculino.

Desta maneira, quando surgem iniciativas separatistas e excludentes que defendem o uso da violência contra os homens que se proclamem em guerra aberta contra as mulheres, o resto não será capaz de unir-se por cumplicidade ideológica senão que o farão por solidariedade de gênero. Ou seja, a tendência marjoritariamente masculina
será a de outros homens fazendo filas em torno a outros homens (incluindo em torno aos agressores) antes de mostrarem-se solidários com as mulheres, como exigiria uma lógica coerência, já que isso colocaria em entredito sua masculinidade e seria uma falta grave de incumprimento da normativa hegemônica de gênero segundo a qual, a irmandade masculina deve permanecer unida.

Assumindo os riscos intrínsecos de nossa própria condição o logro de nossa autonomia virá condicionado a nossa capacidade de combatê-los. O uso da violência e a prática agressiva será primordial para nos defender ante uma agressão mas a des-vitimização e des-categorização das mulheres agredidas também vai supôr uma prática libertadora, ao minimizar o poder e o domínio masculino e nos situar em igualdade de forças combativas. Supôr por exemplo que uma mulher que tenha sido agredida não poderá superar este fato traumático, ou ainda que este ocorrido condicionará suas atividades, será mais frágil ou vulnerável, dota ao homem agressor de um poder extra-limitado e ao mesmo tempo, infantiliza a mulher agredida. Razão pela qual muitas mulheres omitem o fato de terem sido vítimas de agressões ao não querer apresentar-se perante as demais deste modo – ocorrência que invisibiliza muitos casos de violência.

Quantas de nós conhecemos a homens com altas doses de sexismo, homens de tratamento pejorativo com relação às mulheres, homens que consideram as mulheres como objetos e que em troca gozam de uma consideração e de uma valorização excelente por parte do restante? Um homem prototípicamente revolucionário, um cretino e caricaturesco macho enérgico e ousado com capuz negro e pedra na mão que adora os ambientes mixtos que lhe permitem pavonear-se e mostrar seus dotes mas que detesta os grupos de mulheres que o excluem ao mesmo tempo que prescindem de seus encantos de sedutor. Este ou qualquer outro prototipo que nos venha à mente, capaz de criticar a uma mulher ou considerá-la menos inteligente por vestir-se demasiadamente feminina, e inclusive mulheres que reproduzem estes mesmos padrões, são comuns em nossos entornos políticos.

A surpresa e desconcerto que geram os episódios de violência contra as mulheres em nossos entornos politizados se nutrem do desconhecimento e da hipocrisia. A negação, a aceitação e inclusive a falta de contundência nas respostas ante os mais mínimos indícios são covardes cúmplices da violência contra as mulheres, e neste caso, em todas nós há algo que em maior ou menor medida cheira a podridão.

Façamos limpeza!

Laura

 

FILME BLOODMONEY: UMA DISTORÇÃO DA REALIDADE RACISTA DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO

texto de panfleto produzido para protestar contra a exibição do filme “Blood Money, aborto Legalizado” que afirma que a legalização do aborto faz parte de uma conspiração para dizimar a população negra. O filme foi produzido por setores conservadores nos Estados Unidos e exibido no Brasil recentemente. O panfleto desmistifica a idéia do filme de que a legalização do aborto é racista. Pelo contrário, maiores vítimas de abortos clandestinos terminados em complicações reprodutivas e sexuais ou morte é a população negra e pobre.

noticia_394345_img1_cartaz-blood-30.09“As características mais comuns das mulheres que fazem o primeiro aborto é a idade até 19 anos, a cor negra e com filhos”

 

“Dez mulheres informaram ter abortado sozinhas e sem auxílio, quase todas eram negras, com baixa escolaridade e quatro delas mais jovens que 21 anos”.

“O aborto é comum entre mulheres de todas as classes sociais, cuja prevalência aumenta com a idade, com o fato de ser da zona urbana, ter mais de um filho e não ser da raça branca”.

 

“A esmagadora maioria de mortes por aborto registradas no SUS são de mulheres negras, pobres, muitas vezes já mães de família, e chefes de família.

A OMS afirma: uma mulher morre a cada dois dias no Brasil. Entre as causas está o aborto clandestino

 

“Um milhão de abortos são realizados no Brasil a cada ano, com 250 mil internações por complicações do procedimento.”


“22% das mulheres brasileiras de 35 a 39 anos, residentes em áreas urbanas, já fizeram aborto.”

Aborto legal, seguro e gratuíto é uma questão de saúde pública!

Proibir e criminalizar não impede que siga acontecendo. Apenas expõe mulheres a vulnerabilidade, e a prática clandestina e insegura, decorrendo daí muitas mortes por procedimentos mal sucedidos. A desigualdade social afeta o acesso à prevenção da gravidez e também a qualidade do aborto. No Brasil 70% da população pobre é afrodescendente, por conta da história de escravização. Logo quem mais paga o preço da criminalização do aborto é a juventude negra feminina, contribuindo para o que se chama “genocídio da juventude negra”.

São as mulheres negras que sofrem maior desassistência à saúde e menor acesso a direitos reprodutivos. Soma-se a isso, o racismo institucional de boa parte dos hospitais públicos, as mulheres negras que chegarem a um hospital em decorrência de um aborto mal sucedido, que é mais provável que ocorra para essa população que possui menor acesso a recursos financeiros e médicos ou a informação sobre saúde e educação sexual, mulheres negras sofrem muito maltrato por médicos e violências reprodutivas, sendo a população que também apresenta maior risco de mortalidade materna.

O conservadorismo sob o qual é constituído o Sistema de Saúde no Brasil impede que as unidades ofereçam um tratamento humanizado para mulheres que praticam aborto clandestino. Não é incomum ouvir casos de equipamentos deixados propositalmente nos úteros de mulheres que abortaram, para castigá-las pelo ato, além de outros constrangimentos físicos e morais aos quais estas mulheres estão suscetíveis.

Quem tem poder econômico paga, e muito bem, pelo aborto em clínicas clandestinas. São as mulheres pobres que morrem devido ao aborto mal feito.

Não podemos culpabilizar as mulheres que realizam abortos porque não existe verdadeiro acesso a informação e educação sexual e tampouco a assistẽncia em saúde. Nas relações entre homens e mulheres numa sociedade machista as mulheres possuem menor poder de negociação e decisão, nem sempre podendo se cuidar adequadamente em suas práticas sexuais.

Portanto a ilegalidade do aborto é que leva ao extermínio e criminalização da juventude negra, e não sua realização, constituindo mais uma das manifestações de racismo da sociedade brasileira.

EDUCAÇÃO SEXUAL PARA DECIDIR
MEIOS CONTRACEPTIVOS PARA NÃO ABORTAR
ABORTO LEGAL PARA NÃO MORRER

fontes:

  • Mulheres pobres e negras são as mais prejudicadas pela ilegalidade do aborto, 22/08/2011
  • Mulheres negras e pobres são mais vulneráveis ao aborto com risco, mostra dossiê. 24/06/20
  • Legalizar o aborto no Brasil pelo combate ao genocídio da população negra, por Marcha Mundial das Mulheres, 25 de Setembro de 2013.

mais infos:

o aborto é um negócio nos estados unidos
porque todo o sistema de saúde lá é privado. o modelo que defendemos é de
aborto legal realizado pelo SUS. esse modelo é muito mais próximo do de
portugal, onde comprovadamente o número de abortos diminuiu depois da
legalização. isso porque as mulheres tiveram mais acesso à informação, e em
vez de uma atitude desesperada, a interrupção da gravidez se tornou uma
opção consciente.

Como a polícia reforça a cultura de estupro

por stavvers

texto que fala papel que a polícia joga na legitimação da cultura de estupro

+Aviso de acionadores: esta postagem discute estupro, cultura de estupro e abuso de poder.+
A polícia, como sabemos, tem uma terrível e larga história com relação ao estupro. Alegações são muitas vezes não tomadas a sério e, em algumas situações, a polícia ativamente fabrica papéis para fazer os casos sumirem. É dificilmente uma surpresa o fato de que a vasta maioria dos casos de estupro não sejam reportados.

A mulher que foi desapontada pela polícia depois de ter encontrado a coragem para reportar seu estupro sabe isso muito bem, e três delas estão processando o funcionário pelo tratamento que receberam. Duas requerentes foram atacadas pelo estuprador serial John Worboys que poderia ter sido capturado anteriormente se a polícia tivesse escutado às mulheres.

A polícia não escuta. Porém, o oposto também é verdade

“Isso soa nos meus ouvidos ainda, o oficial dizendo ‘um taxista não poderia fazer isso'” ela (uma sobrevivente) diz.

“Isso parecia como se eles não quisessem saber. Em meus sonhos, eu gritava ‘por que você não acredita em mim?'”.
Meu coração dói por essa mulher. A esmagadora descrença em seu relato, depois de que uma violação horrificante ocorreu.

O comportamento do policial aqui é uma das manifestações mais declaradas da cultura de estupro: não acreditar na sobrevivente. Talvez o oficial tenha atuado de boa fé, não querendo maliciosamente jogar fora um caso de estupro (como muitos tiveram). Talvez o oficial apenas absorveu algumas frases de estoque e atitudes da cultura de estupro.

Isso não faz diferença. O policial possui uma posição única de poder: de última, eles decidem se eles vão se incomodar em ajudar uma sobrevivente. Cada momento da lógica da cultura de estupro está fracassando para a sobrevivente que pediu socorro. Cada investigação capenga e mal feita está falhando com a sobrevivente. Cada documento fraudulento jogado no caso está falhando com a sobrevivente. Estas sobreviventes escolheram perseguir um certo curso de ação, ativamente engajando-se com o estado para pedir o auxílio deste.

E eles estão falhando com esta.
Quem se beneficia destes arranjamentos? Estupradores. Cada vez que isso ocorre, as coisas se tornam um pouco mais fáceis pros estupradores. Elessabem que podem se sair bem dessa. Eles sabem que as chances estão a seu favor porque o estado os vai ajudar nessa.

A cultura de estupro apenas sempre beneficia estupradores, e a polícia está usando seu poder para reforçar isso.

Entre 2008 e 2012, houveram 56 casos documentados de estupro, agressão sexual e assédio. Em muitos destes casos, as reclamações foram encobertas e a sobrevivente desacreditada. Em um número assustadoramente largo dos casos, nenhuma acusação criminal foi sequer trazida. É duramente surpreendente, então, que a polícia possua um interesse implícito em manter a cultura de estupro em uma gritante boa saúde: eles estão se beneficiando disso.
Eu sou totalmente crítica da noção de que o poder que a polícia possui possa ser usado para o bem, para ajudar a superar a cultura de estupro desde cima. No melhor dos casos, a polícia pode apenas ser tão progressista quanto a sociedade que a gerou, então eles estarão ainda pisando na cultura de estupro. Isso sem calcular os efeitos psicológicos que tornam todos policiais em bastardos.

Há um vasto caminho para a melhora depois da revolução, no entanto. Eles podem, muito facilmente, parar de tão ativamente reforçar a cultura de estupro começando por uma posição de sempre acreditar na sobrevivente, mesmo que seja seu parceiro o acusado. Eles podem, muito facilmente, na verdade se importar em investigar os casos de estupro apropriadamente, respeitando a coragem da sobrevivente de ter seguido adiante com a denúncia. Melhoras são possíveis. Eu desejaria ser menos pessimista sobre o desejo das forças policiais em tentá-lo.

https://stavvers.wordpress.com/2012/07/21/how-the-police-enforce-rape-culture/

Porque a crítica à Marcha das Vadias não é puritanismo

Segue outro texto sobre a Marcha das Vadias. O texto trata sobre um dos argumentos usados por algumas das pessoas que não compreendem as verdadeiras razões da crítica à Marcha, ou seja é uma resposta a esta crítica.Obviamente nem todas as pessoas engajadas na Marcha usam deste argumento.

A apropriação do termo Vadia – utilizada pela Marcha das Vadias – é criticada como estratégia feminista por muitas de nós, provocando um longo debate. Eu compartilho da opinião de que a apropriação do termo não trará mudanças, que pelo contrário o termo Vadia contribui para nos objetificar e subjugar, que não ajuda como estratégia contra o estupro, e que ignora a realidade de muitas de nós, principalmente das mulheres e crianças prostituídas, embora pareça se solidarizar.

Neste debate surgiu o argumento de que seria por conservadorismo e por uma sexualidade reprimida que se critica a apropriação do termo. Em contraponto, se passou a assumir como uma espécie de “vantagem” inerente às pessoas que são a favor da apropriação da palavra vadia, como sendo bem resolvidas* e/ou sexualmente ativas.

A primeira coisa que me salta aos olhos é que sexualidade reprimida não é um defeito, é um problema, e como tal não serve como acusação nem ofensa. Dizer que as pessoas são muito reprimidas como crítica a este comportamento, é culpá-las pelo que lhes foi imposto. Já, alertar para isso e incentivar que as pessoas lutem contra esta repressão é algo construtivo. Além disso, não são todas as pessoas reprimidas que são como os estereótipos que se tem de pessoas quadradas e conservadoras. Não são também todas as pessoas que não tem sexualidade ativa que são de fato reprimidas, elas podem ter outros motivos para não serem ativas, e nem é verdade que as pessoas ativas são necessariamente felizes sexualmente.

Este tipo de afirmação parte do ponto de que sexo é algo bom sempre. Sexo nem sempre é bom, porque depende da situação, do momento, com quem, e do prazer. É uma afirmação também que ignora completamente as pessoas assexuais – que não sentem desejo sexual. Pode ser difícil da gente pensar assim num primeiro momento, já que existe uma forte repressão sexual e que somos impelidxs a pensar que a luta por uma sexualidade livre significa fazermos sexo quando bem entendermos com quem bem quisermos, quando na verdade sexualidade livre significa além disso é claro, que nossas opções sexuais não sejam motivos para sermos perseguidxs, e tampouco que as pessoas sejam perseguidas ou inferiorizadas quando não são sexualmente ativas, por opção ou não.

Apropriar-se do termo vadia não é sinônimo de uma sexualidade bem resolvida. Vai muito além da sexualidade de uma pessoa (embora possa fazer parte) as opções e táticas políticas que ela toma para si. Eu diria que optar por não usar o termo vadia tem muito mais a ver com uma preocupação quanto a sexualidade mal resolvida da sociedade e todas as implicações disso (estupro, controle, objetificação…) do que com a própria sexualidade (ainda que esta seja também mal resolvida). E embora uma mulher possa adotar o termo vadia como tática política, não significa que uma mulher que se apropria do termo vadia, se torna automaticamente politizada e liberta.

Ir para a Marcha usando “roupas de vadia” e se apropriar do termo vadia, passaram a ser considerados símbolos de autonomia e de se estar bem resolvida, naturalmente que ao criticar essas formas de ação ficamos vulneráveis para sermos consideradas mulheres fechadas, conservadoras. É bem fácil de entender o receio que muitas podem sentir em questionar a Marcha, já que nos exclui automaticamente do círculo de vanguarda.

Não podemos ignorar que existe uma pressão também na mulher para provar sua feminilidade, sexualidade e sua capacidade de fêmea. A nossa sexualidade é controlada através de repressão e também de cobranças das nossas “capacidades e poderes” sexuais. É consenso de que o termo vadia é usado quando querem nos xingar, mas não é também usado para designar mulher boa de cama no imaginário machista? Estaríamos nós inconscientemente atreladas á opinião dos outrxs quanto às nossas capacidades de sedução, porque de certa forma queremos ser aceitas, estar incluídas, mesmo que numa sociedade que nos machuca? Não estou dizendo que este sentimento é o que leva à existência da Marcha, longe disso, estou apenas colocando que este sentimento pode estar presente dificultando desassociar sexualidade com participação na Marcha (que não se trata de sexualidade mas de estupro), podendo também gerar constrangimento para quem a critica, por ter sua sexualidade questionada.

Assim as mulheres questionadoras da simbologia adotada pela Marcha das Vadias são taxadas de conservadoras e de “mal resolvidas”. Pensem bem, isso não é muito diferente de dizer que feminista é mal amada,que falta um homem no seu corpo.

*O termo bem resolvida(o) também está atrelado as especificidades no contexto patriarcal, nem sempre significa algo positivo, as vezes parece até dar uma idéia contrária, de conformidade. Ademais é bastante difícil identificar conceitos como esse, numa sociedade patriarcal onde a sexualidade é um tabu. Isso passa também pela questão do consentimento, pois uma pessoa bem resolvida pode não estar atenta aos desejos dx(s) sux(s) parceirx(s) e numa outra escala, às vontades das pessoas a quem ela tenta suas investidas.

enila dor.
Outubro 2012

http://anarcopunk.org/acaoantisexista/texto/porque-a-critica-a-marcha-das-vadias-nao-e-puritanismo/

Sexo e Consentimento

SEXO E CONSENTIMENTO SEGUNDO SHEILA JEFFREYS

texto apresentado em jornada da campanha abolicionista “Ni una mujer mas victima de las redes de prostitucion” em La Plata, Argentina, 2012, problematiza o conceito de consentimento.

Refletimos sobre a noção de sexo e consentimento expressada por Sheila Jeffreys em “La herejía Lesbiana” (The Lesbian Heresy).
No sistema de supremacia masculina a construção do sexo implica a conotação erótica da subordinação das mulheres e do domínio dos homens, o que Sheila Jeffreys denomina “desejo heterossexual”. As consequências desta construção da sexualidade incluem a violação e o assassinato de mulheres e criaturas, assim como restrições a sua mobilidade, vestimenta, profissões.
A conotação erótica da desigualdade é fundamental para o sistema de supremacia masculina, como diz em Anticlímax é “o azeite que lubrifica a máquina da Supremacia Masculina”.

A ideologia patriarcal tenta convencer as mulheres de que o fato de que os homens as desejem as fazem poderosas, apesar das suas desvantagens sociais. Cicely Hamilton, feminista britanica, acusou aos homens de ter feito hincapie na capacidade sexual da mulher com o fim de satisfazer seu próprio desejo. O sexo proporcionou às mulheres “os meios de sustento”. A teórica lesbiana Monique Wittig demonstrou como a redução das mulheres à categoria de sexo contribuiu na sua opressão:

“A categoria de sexo é o produto da sociedade heterossexual que converte a metade da população em seres sexuais, as mulheres, embora extremadamente visíveis como seres sexuais, permanecem invisíveis como seres sociais”.

Consentimento, coartada e invisibilização da violência sexual. Quem são os beneficiários?

Um modelo de sexualidade baseado na idéia de consentimento parte da supremacia masculina. Segundo este modelo, uma pessoa, habitualmente um homem, utiliza sexualmente o corpo de outra pessoa, é um modelo baseado na dominação e na submissão, na atividade e na passividade. Não é mútuo. Não descansa na participação social de ambas as partes, não implica igualdade, nem reciprocidade.

O conceito de consentimento é um instrumento que serve para ocultar a desigualdade existente nas relações heterossexuais. A idéia de consentimento logra que a utilização e o abuso sexual das mulheres não se considerem dano nem infração dos direitos humanos. O consentimento das mulheres que pode obrigá-las a sofrer um coito indesejado ou a aceitar sua função como ajuda masturbatória, está construído atravé das pressões às quais se encontram submetidas: a dependência econômica, o abuso sexual, os maus-tratos, a propaganda acerca da função das mulheres.

Pode haver livre escolha neste contexto?

O problema que supôe considerar irrevogável o consentimento dado ao princípio em uma cena de S/M é comparável com a situação das mulheres que sofrem violações dentro do matrimônio ou em sua relação de pareja.

Caso Operação Spánner, Consentimento das Vítimas

Este caso de sadomasoquismo consensuado, em Gran Bretaña, 1992, foi célebre. A sentença considerou que o consentimento não é motivo de absolvição em um caso de danos corporais sem motivo suficiente quando se infligiam danos ou feridas que atentan contra a saúde e o bem-estar da parte contrária. Princípio irrevogável do consentimento que se chama “não-consentimento consensuado” e sua definição é a seguinte:

O princípio irrevogável de consentimento se chama “não-consentimento consensuado” e sua definição é a seguinte:

“Conscientes en estar aí, conscientes em deixar-lhes fazer o que queiram, segue seeno tua decisão inicial”.

O consentimento se converte em algo que só ao despertar d dia seguinte se pode calibrar, segundo a sensação de incômodo que se tem. Muitas vezes ocorre no SM que não se há dado consentimento ao que mais excita, nem se daria nunca se o pedissem, e apesar de tudo, o fazem. Se fazes coisas que a ambas partes lhes parece bem ao dia seguinte, é bom, se te sentís fodida, não o é.

As que professam o não-consentimento consensuado demonstram uma nada surpreendente falta de solidariedade, de signo anti-feminista, com as mulheres que resultam gravemente feridas na prática SM. Segundo Alix, “qualquer pessoa que seja tão estúpida que não sabe com quem se vai, se merece tudo o que lhe ocurra”. Essa é a teoria da evolução posta na prática.

A perspectiva feminista mantém que as mulheres não são merecedoras de abusos, independente de seu comportamento e de que # responsável de abuso é sempre # abusador#.

Quando a construção do sexo significa a conotação erótica da desigualdade, a idéia de consentimento pode incitar a violência masculina e ao sadomasoquismo. A idéia de consentimento se erige então em um tabu que deve ser transgredido.

A nova indústria do sexo lésbico institucionaliza e mercantiliza a conotação erótica da subordinação das mulheres, revendendo-a como prazerosa e revolucionária.

A pornografia e sexologia masculina entenderam ao lesbianismo como uma mera prática sexual.
Agora que a revolução sexual chegou às lesbianas, contamos com os problemas relacionados com a prática da desigualdade eroticamente conotada ou o desejo heterossexual, as consequencias da opressão das mulheres, o dano provocado pelo abuso sexual, a utilização das mulheres na indústria do sexo e a lesbofobia, facilitaram a matéria prima: as lesbianas autoras e modelos da indústria do sexo, que sofrem maltrato nas festas SM e que atuam diretamente em espetáculo público.

Pornografia e prostituição

A prostituição não é um trabalho como qualquer outro, obedece especificamente à opressão das mulheres. Só pode existir porque uma classe dirigente é capaz de converter em objetos a um grupo de pessoas obrigadas a satisfazer suas necessidades – sem esta necessidade, sem seus privilégios sexuais, sem pobreza, nem exploração, não existiria a prostituição. O estigma que portam as mulheres em situação de prostituição está vinculado ao abuso real que resulta da utilização das mulheres por meio da prostituição. Para poder infrigir um trato infra-humano a um determinado grupo de pessoas faz falta classificá-las de inferiores e justificar deste modo o abuso das mesmas. As lesbianas que desejam usar a outras mulheres mediante a prostituição dispôem de uma reserva de outras mulheres curtidas por homens.

As lesbianas consumidoras de material pornográfico estão utilizando a outras mulheres da indústria sexual, aspiram em última instância ao que elas entendem como privilégio dos homens. Isso inclui a utilização das mulheres mediante a prostituição. A erótica e a pornografia requerem a utilização das mulheres na indústria sexual, é pouco provável que estejam fazendo amor, senão que ganhando seu sustento.

MacKinnon explica que na dinâmica da pornografia tudo aquilo que excita aos homens se considera sexo. Na pornografia, a violência mesma é sexo, a desigualdade é sexo. Sem hierarquia a pornografia não funciona. Sem domínio, sem violência não pode haver excitação sexual. Longe de construir uma nova sexualidade, estão reutilizando a velha, se encontram confinadas aos clises patriarcais.

Gênero desde as teóricas radicais e Gênero desde as teorias lésbicas e gays

Algumas teóricas feministas radicais assinalam que a idéia de gênero tende a ocultar as relações de poder do sistema de supremacia masculina como algo que pode ser superado. A idéia do caráter inevitável do gênero e do falogocentrismo parece a Sheila Jeffreys uma visão pessimista e determinista, concordante com a tendência do pós-modernismo de considerar a militância política e a fé na viabilidade de uma mudança política como uma atitude suspeita.

Em um dos primeiros manifestos feministas lésbicos, “uma lesbiana é a fúria de todas as mulheres condensada até o ponto da explosão”. Se lutava contra o patriarcado, se buscava destruí-lo, sair dos estereotipos de gênero, criar outro tipo de sociedade.

A versão de gênero introduzida pela teoria lesbiana e gay é distinta das teóricas feministas. Se trata de um gênero despolitizado, não associado à violência sexual, à desigualdade econômica, não nomeia aos homens como historicamente perpretadores e beneficiados pela opressão. Reproduzem a categoria binária feminino-masculino, passivo-ativo. Excluem aos homens de análise, o poder se converte em um sentido foucaultiano, em algo que navega por aí em perpétua reconstituição, sem conexão com as pessoas reais.

Cabe perguntar em interesse de quem ou quens se constitui esses regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo.

Nos interpelam que se há consentimento, se é uma escolha a prostituição, não há violência, nos acusam de vitimizar. E Sheila Jeffreys nos permite responder: na conotação erótica da desigualdade. Na supremacia masculina, no prostituinte, aí está a violência.

Redescubrindo o gênero como jogo, apresentando como diversão, subjetivo, essa teoria serve de sustento, é funcional ao sistema patriarcal capitalista, propagandizando a prostituição como escolha e o S/M como jogo. Apresentando como revolucionárias as historicas opressões. A transformação politica se sustitui pela satisfação sexual pessoal mediante a prática S/M. Os artigos periodísticos anunciam e promocionam brinquedos sexuais, vídeos pornográficos, serviço de prostituição… Tudo o que possa dar dinheiro por meio de comercialização e a mercantilização do sexo. Com a cumplicidade da indústria farmacológica, incentivando o uso de estimulantes e hormonios, estimulando os estereotipos, o consumismo, copiando o que se vê na pornografia, provocando excitação, auto-lesões, doenças e condutas criminais.

A sexualidade da crueldade S/M, segundo Sheila Jeffreys, não é inata, nem inevitável: “A experiência da opressão prejudicou nossa capacidade de amar-nos umas a outres com dignidade e amor próprio, e não somente com um intenso sentimento de prazer. Podemos enfrentar a todas as pressões que nos querem fazer amar a bota que nos golpeia enviando-nos de volta à submissão. Podemos optar por não manter uma relação amorosa com nossos opressores. Podemos escolher uma sexualidade que não participa da nossa opressão, senão da nossa politica de resistência”.

O S/M, o sistema prostituinte, os violadores, para justificar-se manipulam politicamente a noção de consentimento. A idéia de que alguém possa buscar deliberadamente o abuso e a degradação é muito facilmente extrapolável à justificação dos sistemas políticos opressivos. Por consiguinte, o princípio político básico do S/M e da prostituição como escolha contradiz nossas lutas abolicionista do sistema prostituinte e de erradicação do abuso sexual infantil.
Lutamos por uma sociedade baseada no direito de todas as pessoas à dignidade, a igualdade, o amor próprio e à autonomia.

Raquel Disenfeld