“Daqui não sai”: Reflexões sobre o Rumor

Texto de Andrea Franulic, feminista chilena radical da diferença, sobre o papel do rumor (a fofoca) como instrumento patriarcal que parte da lógica da misoginia, no movimento de mulheres. Analisa o rumor como terrorismo político dentro do feminismo contra mulheres ativas, como reprodução da feminilidade e como um recurso aprendido dos sistemas opressivos sob os quais vivemos.


Daqui não sai: reflexões sobre a fofoca

Por Andrea Franulic e Jessica Gamboa
tradução por hembrista@riseup.net

“Eu te suplico
faça algo
aprenda um passo
uma dança
algo que a justifique
que lhe dê o direito de estar vestida de sua pele, seu cabelo.
Aprenda a caminhar e rir (…)
afinal
que tantas estejam mortas
e que você esteja viva
sem fazer nada de sua vida”
(Charlotte Delbo, 1970).

 

Viemos querendo escrever sobre o Rumor. Claro que não somos as primeiras a fazê-lo. As disciplinas patriarcais vieram realizando teorizações sobre o tema (a psicologia experimental, a psicologia social, a psicanálise, a teoria da comunicação e a sociologia). Não vamos nos basear nelas. Nosso interesse se encontra nos textos que pudemos encontrar na teoria feminista, devido a que as mulheres somos e viemos sendo o principal objeto do rumor no contexto de uma cultura misógina. Isso explica que, inclusive em espaços feministas, o rumor aparece como uma prática recorrente para desacreditar as mulheres pensantes e que se destacam por um trabalho consistente.

Dentro da teoria feminista, encontramos escritos de Audre Lorde (2003) sobre o que chama de ‘Tergiversação’[1], que no nosso entendimento, seria uma ‘versão torta’ e tendenciosa que o patriarcado faz circular por aí sobre a vida das mulheres. E que é o rumor senão uma versão torta, distorcida, de alguma realidade? Também Margarita Pisano escreve sobre os “Segretos, chantagens e rumores… os preconceitos” (2004). E menciona o conceito em seu livro ‘Julia, quero que seja feliz’ (2012) e em sua Biografia política (2009) que escreve junto com Andrea Franulic, onde se descreve sua própria experiência como objeto de rumor no processo de desmontagem do projeto “Casa da Mulher A Morada”.

Recentemente tivemos a sorte de obter, por meio de umas mulheres anarco-feministas, um fanzine entitulado “Coletânea sobre Sororidade Autocrítica ou sobre Violência entre Feministas” (2013) que começa com uma epígrafe muito inspiradora da feminista radical Phyllis Chesler, e que compartilhamos a seguir:

“Não comece rumores sobre outra mulher. Se você ouve um rumor, não o faça circular. Deixe que fique com você. Não é ético punir e sabotar outra mulher que você inveja ou teme, caluniando sobre ela ou colocando outras mulheres contra ela.”

O fanzine contêm artigos de diversas feministas. Lendo-os, encontramos trechos chamados de “comentários de amigas” sobre o texto “Segredos, chantagens e rumores… os preconceitos” de Margarita Pisano, que também aparece publicado no fanzine. Destes comentários, há uma consideração que diz que uma das características do rumor, ou melhor dizendo, de quem o exerce, seria a ausência, o vazio ou carência de uma identidade própria. Preferimos deixar o conceito de identidade de lado (por não estar de acordo com este enquanto categoria de análise) e falaremos de uma ausência de projetos de vida próprios ou vazio de conteúdo da própria existência e, por fim, da necessidade de preencher esse vazio assumindo a vida de outras pessoas. Desde esta carência e mediante o rumor, se estabelecem alianças na sombra com quem também gravita em torno deste vazio de um sentido de vida e confluem no desejo de subir em uma situação de privilégio e poder, tirando do caminho quem entorpece tal propósito, geralmente pessoas que contribuem com um trabalho concreto e de qualidade.

O rumor vem sendo uma prática patriarcal como tática de guerra, com fim de colonizar territórios, obter poder, ganhar eleições, conseguir lucros na bolsa, herdar bens, destruir lideranças, negociar tratados políticos, obter informação privilegiada, trocar mulheres, traficar armas, etc. É e vem sendo utilizado desde as direitas mais fascistas até as esquerdas mais revolucionárias. As táticas de guerra se herdam, se aprendem, se sofisticam e se naturalizam. O feminismo não escapou de nada disso. Principalmente se viu intervido pelo patriarcado de esquerda. Patético resulta – por nossa falta de história e genealogia, pelos custos que há em articular um trabalho autônomo e pela árdua tarefa de legitimar-nos entre mulheres – que o rumor perpetue a misoginia e desarme de tal forma a produção de mulheres. Este custo para nós mulheres é profundo, nos deixa vagando no Nada.

Celia Amorós (1987), embora seja uma feminista da igualdade, desenvolve acertadamente o conceito das Idênticas para referir-se à relação entre as mulheres na cultura patriarcal. Coloca que todas as mulheres cumprimos a mesma função social no patriarcado, ou seja, a funções próprias da feminilidade, e neste sentido, as mulheres somos substituíveis umas por outras e, o que é pior, somos descartáveis. Quando uma mulher sai do papel de ser uma idêntica, de uma igual a todas outras, e rompe com os desígnios da feminilidade, sobressaindo, isso gera misoginia, invejas e medos nas demais. Ela se transforma em uma ameaça para o grupo. Às mulheres não se perdoa tão facilmente exercer a capacidade de pensar, tampouco se lhes perdoa falar e escrever com inteligência. É mais aceito e aplaudido que se destaquem pelos trabalhos domésticos, ou por práticas do fazer, onde silenciosamente repetem uma e outra vez um destino não-criativo.

O rumor vem invadindo historicamente a vida das mulheres. Temos exemplos de perseguições promovidas pelo rumor. Somente para nomear um acontecimento muito emblemático, recordamos a matança das denominadas bruxas, levada a cabo entre os séculos XIV-XVII na Europa ocidental e central. Bastava que qualquer pessoa fizesse correr o rumor de que esta ou aquela mulher possuía pactos com o diabo, para que estas fossem acusadas de bruxas, e assim, torturadas, enforcadas ou queimadas vivas na fogueira da praça pública. As bruxas foram utilizadas como bodes expiatórios pelos homens.

Fazendo a analogia, podemos dizer que a vítima do rumor funciona como um ‘bode expiatório’, o dizemos em um sentido literal e metafórico. A situação de debilidade, vulnerabilidade e super-exposição que afeta a vítima é utilizada com o objetivo de expiar nela as próprias misérias não-assumidas, os próprios pecados, de maneira catártica. Assim como para justificar a falta de auto-crítica, os próprios equívocos, a carências e as inseguranças de todo tipo. Isto se relaciona com o que foi dito em parágrafos anteriores: o rumor serve de veículo para tapar o próprios vazios. As mulheres, doutrinadas na moral e bons costumes, castigam o bode expiatório para projetar nele suas próprias dependências: ao amor, ao álcool, à droga, aos homens ou a suas instituições. E assim, se sentem puras e sábias.

Identificamos dois papéis na prática de circulação dos rumores. O primeiro se sustenta e opera desde o lugar do Poder. Neste caso, a pessoa possui uma insegurança encoberta que a perturba, e seu movimento é defender-se do medo que lhe gera a perda desse poder, do prestigio e dos privilégios. O segundo, o mais descrito até então, é aquele que funciona desde a Mediocridade. Este papel pode resultar mais perigoso, pois aqui “o fim justifica os meios” com a pretensão de concretizar interesses aspiracionais que podem ser de diversa índole: desde interesses econômicos até de tipo psicológico como o querer “ser alguém”. Este papel nos recorda, nos evoca, tem semelhanças ao que a filósofa Hannah Arendt (2003) chamou por A Banalidade do Mal. Porque, segundo ela, os crimes cometidos contra a humanidade, as torturas e genocídios, são executados por seres medíocres, não pensantes, que somente seguem ordens e regras mecanicamente, obedecendo… milicos de direita e de esquerda.

Albert Camus em seu livro O Homem Rebelde (2005) estabelece a diferença entre o ressentido e o rebelde. O primeiro tem uma ânsia voraz por ‘pertencer a’ e ‘ser’ aquilo que critica. Já o rebelde, se arrisca com sua solidão. Quem exerce o rumor, sobretudo desde o papel da mediocridade, deseja compulsivamente pertencer e busca as cumplicidades necessárias para cumprir esta meta. Em outras palavras, o rumor é uma prática oportunista. No fim, se atua desde o ressentimento, a condescendência e a adulação… jamais desde a rebeldia. Como contraponto, quem é vítima do rumor é deixada no vazio: deixa-se de falar com, deixando esta capturada em uma névoa espessa, rodeada de um arco invisível de desconfianças, marcada pelo estigma que a tacha e a reduz, absorvendo-lhe as forças pensantes e criativas, como se estas existissem de sobra neste mundo deshumanizado. Enquanto isso, o restante realiza um pacto sectário de silencio.

Quem padece o rumor sofre um tipo específico de maltrato: o isolamento, a incomunicação, o sentimento de culpabilidade, a ameaça da chantagem e a paranóica e confusa vivência de não saber como, quando, por quê, quê e quem(s). Sofre uma alteração em seu uso da linguagem, pois teme usar as palavras, que são a principal ponte de comunicação entre as pessoas. Como escrevemos por aí, a palavra ‘rumor’ vem de ‘ruído’ que, por sua vez, vem do latim ‘rugitus’ (rugido). Isso, segundo o dicionário etimológico de Corominas (2000). Se interpretamos um pouco e sem complexos com a obviedade, diríamos que ‘fazer ruído’ ou ‘rugir’ são contrários a falar, a usar as palavras. Se interpretamos um pouco mais, usar as palavras para nos entendermos nos faz justamente humanas, nos faz sentir bem quando encontramos pontes de profunda conexão. O rumor desumaniza.

Agora vejamos, quando se recebe um rumor, há escolhas: nos fazermos cúmplices na circulação deste e colaborarmos em deixar no vazio à pessoa em questão, ou então colocamos um limite a isso. Portanto, o ato de receber um rumor não é um ato passivo. Quem escolhe não participar nem prestar ouvidos ao rumor o detêm e pode, inteligentemente, perguntar-se sobre as outras versões da mesma realidade entre a dita. Pois a neutralidade na linguagem não existe. Por isso, é justa a possibilidade de pôr em dúvida as versões e as fontes: um exercício básico que realizamos com a mídia hegemônica por exemplo, quando somos críticos. Se esta versão provêm de quem detêm um poder ou é considerada uma pessoa ‘legítima’, ‘confiável’, é mais difícil ainda desmentir. E neste caso, a versão do rumor toma as características de uma ‘História Oficial’. Não é demais lembrar que, no patriarcado, a historiografia elaborou uma versão oficial do mundo enviesada e cheia de invisibilizações, e é exatamente assim que as mulheres viemos perdendo nossa história.

Podemos identificar alguns tópicos do rumor que condizem com os tópicos da História Oficial. Em primeiro lugar, a Mitigação e a Exageração. A mitigação (aliviamento), usada a favor de quem promove o rumor, consiste em ocultar, diminuir, abrandar, fazer pouco caso ou, inclusive, ironizar sobre as próprias equivocações e erros, no seu caso. Pode ir acompanhada de um certo grau de auto-compaixão. A exageração, por sua vez, se utiliza contra a outra pessoa; se exageram e dá dramaticidade aos erros da outra pessoa. Algumas vezes a exageração vai acompanhada de mitomania e megalomania. O “exageracionismo” é um recurso do rumor.

Um segundo tópico fundamental é a Descontextualização, onde a informação que circula é uma informação ‘descarnada’, ou seja, extirpada de seu contexto original, vital, que continha pessoas com corpos e olhares, entre quem existia intimidade e confiança e um percurso próprio e autêntico da relação particular. Assim como existiam momentos, lugares e circunstâncias específicos; sentidos e propósitos, angústias e alegrias. A informação é retirada do contexto e da experiência que lhe deu vida e se utiliza com fins utilitários (oportunistas). Porém, não há informação no ar, as mensagens mudam seu sentido e seu destino radicalmente, segundo o contexto onde se usem. Nunca voltam a ser a mesma mensagem nem voltam a ter o mesmo significado. A descontextualização como recurso ou tópico do rumor, se baseia na chantagem e usa falsas testemunhas, isso é, personagens que, revestidos de um empoderamento emprestado, se atribuem ou se auto-concedem a autoridade de juízo sancionador, fundado na mais profunda ignorância da história questionada. Esta ação muitas vezes se marca na triste história de traição entre mulheres.

Como toda História oficial, a falta de honestidade desde onde circula a versão, a ‘tergi-versão’ (tegiversação: versão torpe, torta) da realidade, se disfarça de discursos salvadores, bons e messiânicos, inclusive baseados no amor. Os quais na realidade escondem as inseguranças, os despejos, os posicionamentos e as acomodações mais obscuras. Esta tática perturba e confunde as verdadeiras e reais fontes da dominação (Denise Thompson, 2003).

Outros tópicos reconhecíveis são ‘Frases Feitas’ que servem para finalizar o relato do rumor, talvez como parte da estrutura do Rumor se o identificamos como um gênero discursivo em si mesmo. Estas frases são: “não comente isso por aí…”, “daqui não sai…”, “não fala pra ninguém…”, “eu te digo isso porque eu o vi na minha própria experiência…”, “estou te contando isso porque confio em você…”, e etc. Nesta mesma linha, contamos com refrãos ou ditos populares, sempre impregnados do imaginário patriarcal, regados de lugares comuns (preconceitos), que se utilizam para semear o medo. Para nosso específico tema do rumor, nos vêm à mente as inquisidoras e penalizadoras frases que dizem “quando o rio soa é porque pedras traz”[2], “algo ela fez para que falem isso”, “não faça o que não quer que façam pra você”, “tudo se paga nesta vida”, “tudo cai por seu próprio peso”.

Redundante dizer que as famosas e neoliberais “redes sociais” são terreno fértil para difundir o rumor: a vitrinização e o imediatismo do facebook, do chat, dos correios electrônicos, etc. Estes sistemas são facilitadores para a vertiginosa circulação dos rumores e para a ameaçadora chantagem, porque em geral servem às pessoas que, des-corporizadas, se escondem e se protegem atrás do meio tecnológico, por meio de seu uso anônimo e impessoal.

A misoginia é uma pesada realidade para todas. A reflexão sobre a falta de sororidade ou de affidamento[3] deve ser mais profunda e comprometida. É fundamental que a imagem de espelho que nos produz a outra, nossa igual, não se utilize como o faz a madrasta de Branca de Neves, senão como uma porta para as sólidas pontes feitas de palavras, estas que dão cabimento à confiança e ao entendimento, mas somente quando real e verdadeiramente existe a horizontalidade.
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Traduzido de https://andreafranulic.cl/misoginia/de-aqui-no-sale-reflexiones-sobre-el-rumor/

[1] Tergiversar segundo a própria autora é “mudar o sentido das coisas para sua própria conveniência e benefício. Etimológicamente, a palavra significa “dar as costas à”. Curioso. O patriarcado esteve “tergiversando”, históricamente, nossas experiências de mulheres(…) Impôe seu próprio sentido de realidade e inventa o relato que lhe convêm para manter seu domínio. A tergiversação é totalitária e auto-referente, porque o patriarcado é “um”, somente vê a si mesmo e a feminilidade existe para lhe devolver seu próprio reflexo. Desta maneira, se transforma em uma montanha gigantesca de parcializações, apagamentos e vazios a respeito de nós mulheres. Quê esgotador é defender-se de cada acusação patriarcal!”. (https://andreafranulic.cl/lenguaje/la-tergiversacion-de-la-experiencia/) A autora retirou esse conceito do texto de Audre Lorde, “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, onde esta diz que o silêncio não nos protege, embora distorçam nossas palavras. Mais que falar, diz Lorde assim como Anzaldúa, devemos escrever, pois escrevendo nos tornamos existentes e confrontamos as ‘versões distorcidas’ de nossa história, pois as mulheres não possuem história e isso se conseguiu a base do rumor, pois a história oficial se constitui no conjunto de rumores dos homens sobre a realidade e o ocorrido, e as mulheres, tal importante mecanismo de poder o rumor representa. E escrever e falar, além de ser confronto das versões distorcidas/rumores, é constituir-se em sujeita histórica e assumir a tarefa de produzir história de mulheres.

[2] Um ditado específico da cultura chilena, quer dizer algo como “se falam isso deve ser porque algo fez de errado”, no caso dos rumores.

[3] Termo em italiano para sororidade, proposto pelas feministas italianas ‘da diferença’.

* Recomendamos também a leitura do texto “O rumor, a feminilidade, o patriarcado” por hembrista https://we.riseup.net/feminist_troll/o-rumor-a-feminilidade-o-patriarcado

Como Ser uma Aliada Eficaz para Grupas Oprimidas*:

  • Eduque-se sobre as questões desta grupa oprimida. Você é perfeitamente capaz de se educar, e fazer isso é responsabilidade SUA. Nenhuma pessoa de um grupo oprimido tem a OBRIGAÇÃO de responder seus questionamentos; para isso existe a internet e o google, e o que não falta é gente tentando teorizar as opressões que sofrem por ai. Pare, pesquise, se informe. Tirar as dúvidas com essas pessoas é perfeitamente normal, desde que você peça com educação e sem exigir dessas pessoas suas resposta. Também não assuma porque você leu vários livros ou artigos que você sabeTUDO QUEPARA SE SABER sobre uma opressão; adivinha? Você não sabe. Se você não faz parte de um grupo oprimido mas quer ser uma aliada, esteja ciente que sua caminhada será de educação constante e que você será chamado atenção por suas posições ou ações frequentemente. Tente se manter informado sobre os eventos atuais que envolvem as questões destes grupos e não tenha medo de tirar dúvidas, desde que o faça de forma respeitosa.
  • Mostre seus apoio por meio da ação. Frequente os eventos e manifestações, ou seja voluntária para ajudar com estes. Simplesmente esteja envolvida. Não se foque somente em falar sobre o assunto. [1]
  • Tente ativamente desafiar e destruir os estereótipos que as pessoas talvez tenham sobre grupos de pessoas diferentes delas, e isso inclui discurso preconceituoso do dia, como comentários depreciativos e piadas ofensivas. Lembre-se que o seu silêncio tolera e reforça a injustiça.
  • Confronte declarações e estruturas opressivas, bem como os pressupostos por trás delas.
    Examine o efeito que diferentes identidades e experiências têm nas vidas e no desenvolvimentos de pessoas e povos. Identifique como raça, religião, classe, gênero, orientação sexual e tantas outras formas de identidade moldam nossas vidas. Não confunda diferentes experiências de opressão. Lembre-se de que ser oprimido por um fator não significa que você saiba como é ser oprimido por outros fatores.
  • NÃO TOKENIZE OU PADRONIZE indivíduos de diferentes grupos. Não queira nem presuma que um indivíduo parte de um certo grupo fale por todas as pessoas daquele grupo. Nem o grupo mais homogêneo pode prover uma homogeneidade de histórias de vida nem de opiniões. Cada pessoa tem sua forma pessoal de enxergar o mundo e a opressão que sofre e isso não pode ser ignorado.
  • Não tente falar por um grupo inteiro, mesmo quando você faz parte dele, e especialmente se você não faz. Fale por você e transmita suas próprias esperiências. Não há problema em dizer quando você não sabe a resposta ou como responder algo.Ter um amigo parte de determinado grupo não faz de você uma aliada, mudança de pensamento de de ação fazem. Não tokenize seus amigos e nem tente usá-los como “prova” de seu apoio a uma causa. Não tente ser um expert em uma situação só porque você conhece alguém que vive aquilo. “Mas meu melhor amigo é gay/negro/etc/etc.etc.” Não. Pare com isso.
  • NÃO FALE POR UM GRUPO – ajude a abrir espaço para que eles falem por si mesmos. Ofereça seu apoio, ouça o que eles querem, precisam, o que estão tentando fazer, e os ajude a fazê-lo. Nunca presuma que você sabe o que é melhor para um grupo do qual você não faz parte.
  • Esteja preparada para cometer erros. Nós todas cometemos. Transforme seus erros em aprendizado e continue tentando até acertar.
  • Aceite-se como parte de um grupo privilegiado, mesmo sendo um aliada. Não é porque você se levanta em favor de grupos oprimidos que você deixa de ter os privilégios do grupo privilegiado/opressor do qual faz parte. Você ainda tem poder de opressão sobre aquele grupo, e tem de estar ciente disso para poder não se utilizar de tal poder de opressão. Tentar  minimizar seus privilégios ou se sentir culpado por eles não vai ajudar ninguém. Em vez disso, aceite seus privilégios e os utilize para prover voz e poder social para as pessoas que talvez não conseguiriam ter acesso a eles de outra forma.
  • Prepare-se para uma jornada de mudança de crescimento que virá ao aprender a ser um aliada. Este pode ser um processo doloroso e esclarecedor que irá ajudá-lo a conhecer-se melhor. No entanto, pode ser difícil de reconhecer tanto as áreas onde você é oprimido quanto as áreas onde detêm privilégio. Esteja aberto a críticas.
  • Confronte seus próprios medos, memórias e sentimentos ruins sobre membros de um certo grupo. Lembre-se e libere esses sentimentos, assim diminuindo a influência deles sobre você. Desafie os preconceitos e estereótipos que você aprendeu com a sociedade.
  • Não presuma que você sabe sobre o que é um certo grupo. Não pessuma que todos os membros de um grupo são o mesmo, que se portam ou que pensam da mesma forma, bem como que só existe uma única maneira de fazer parte daquele grupo. Esteja ciente e celebre a diversidade dentro das comunidades. Cada pessoa é expert em suas próprias experiências. Trate todos com respeito e como indivíduos.
  • Encorage e permita a discordância e o debate. Questões sobre qualquer grupa oprimida são frequentemente confusas ou carregadas de significado. Se não ouver nenhuma discordância, isso provavelmente significa que as pessoas estão se sentindo acanhadas ou amedontradas ao ponto de esconder seus sentimentos e pontos de vista. Mantenha as discordâncias e as dicussões focadas em princípios e nas questão ao invés de em indivíduos, e mantenha o debate sempre respeitoso.
  • E acima de tudo, escute. Aprenda. Entenda. Respeite. E ajude outras pessoas a fazerem o mesmo, para que todas possamos entender e apreciar umas às outras por todas as suas qualidades únicas que fazem parte de quem elas são.

(***)

* Mudei deliberadamente o genero neutro para feminino em muitas partes do texto para forçar a reflexão intra-gênero, e não inter-gênero, para mulheres pensarem as diferenças entre mulheres nos espaços feministas e lidar com isso.

 

[1] também, se as pessoas desta grupa oprimida não quiserem sua participação, como é o caso de espaços exclusivos de mulheres negras ou lésbicas, é sua obrigação respeitar a não necessidade de você nem a limitação de seu acesso a esses espaços de auto-organização e autoconsciência de grupas específicas.
Por meio da ação: você pode traduzir, editar e disponibilizar materiais sobre questões de negras, lésbicas, discapacitadas, imigrantes, indígenas, idosas, etc….

A Marcha Das Vadias Não É Solidária

A Marcha das Vadias está consolidada podemos dizer assim. Infelizmente a marcha abafa muitas questões feministas, ao mesmo tempo que utiliza de argumentos feministas para justificá-la. A meu ver a marcha não só é bastante inconsistente como ação feminista mas é contraditória como tal e um passo atrás. Eu acho ainda estranho que as pessoas que defendem a Marcha das Vadias falem em vários feminismos ao mesmo tempo que não aceitam outros feminismos e procuram categorizar qualquer crítica à Marcha como conservadora. A Marcha tem conseguido de forma eficaz uma homogenização das feministas que nos prejudica bastante. Ser feminista passou a ser sinônimo de ser participante da Marcha ao ponto de ser um choque quando uma feminista não se engaja à Marcha das Vadias.

Por que será que todas as demandas feministas, todas as lutas que mulheres feministas engajadas propõe não são ouvidas nem levadas a sério e a Marcha das Vadias de um dia para o outro passa a ser a “voz das mulheres”? Por que tantos homens passaram a aderir a Marcha das Vadias, sem sequer compreendem outras ações que propomos? E por que ao contrário de um aprofundamento nestas questões ao constatarem isso, as pessoas da Marcha preferem dizer que isso é uma coisa positiva?

Por que a mídia tem tanto interesse na Marcha das Vadias? Acredito que o apelo que a Marcha tem é em função também da sociedade nos querer objetificadas. Desta forma as mulheres estão mais uma vez sendo usadas pelo patriarcado e pelo capitalismo, servindo as propostas neoliberais. A Marcha é um evento que cabe como uma luva na cultura da sexualização e da objetificação dos nossos corpos, mesmo que as pessoas acreditem que é uma forma de lutar pela liberdade de suas sexualidades. Eu acredito que a Marcha das Vadias se encaixa perfeitamente para que não aprofundemos o feminismo e na questão vital de que não está nos libertando, mas corroborando para dizer que sim, somos todas vadias! E isso atinge que ponto exatamente? De liberdade sexual? Eu acredito que não. Para mim abraça a lógica machista de que somos vadias, e somos o que os homens quiserem que sejamos. E agora além de sermos o que os homens querem que sejamos, dizemos sim! E sim, agora descobrimos que podemos ser objetificadas e hipersexualizadas, que isso é muito bom para a nossa liberdade sexual, basta dizermos que somos objeto do nosso próprio desejo! Sério? Para mim abraça a cultura de que somos desejáveis ao olhos de homens e que sigamos nos comportando como objetos de desejo masculino em termos historicamente criados para excitarem os homens, não importa o quanto justifiquemos com o discurso de que somos objeto de nosso próprio desejo. Quem está querendo enganar quem?

A marcha consiste de um ponto de vista extremamente individual, por isso também se enquadra no pensamento neoliberal, onde cada mulher está centrada em si mesma dizendo “eu faço o que eu quero”, “isso é bom pra mim”, “sou livre” ignorando que muitas mulheres não tem a mesma oportunidade de escolha. Muitas de nós mulheres que são ou foram tratadas como vadias não querem se apropriar deste termo, e muitíssimo pelo contrário, queremos nos livrar deste, pois queremos poder sermos nós mesmas sem que nos ponham selos! ‘Eu tenho visto e também sentido na pele, que o termo vadia sempre foi usado como ferramenta misógina. E por mais que a Marcha das Vadias quer se apropriar disso, nós mulheres não vamos deixar de sermos tratadas como vadias, putas, vacas, etc quando alguém assim desejar. Digamos que seja possível ressignificar o termo Vadia, vamos supor que isso seja possível, podemos estar certas de que outro termo será criado para qualquer comportamento ou realidade das mulheres, e as mulheres prostituídas terão que ter uma nova denominação, porque estas precisam ser tratadas como vadias na vista da sociedade. Nós não vamos estar eliminando o problema, apenas mudando de nome, mas continuaremos sendo menosprezadas – umas mais que outras, isso é importante ressaltar: quem são as mais menosprezadas? Ou ainda, quem são as privilegiadas?

Não esqueçam que o termo vadia é um termo criado pelo heteropatriarcado, porque se refere a mulher em relação ao homem. A mulher sozinha é santa, o outro lado da mesma moeda, de um também estereótipo que visa controlar, pois a mulher também não pode estar sozinha, ela precisa de um homem, mas não mais de um. Já as lésbicas são aberrações e ameaçam o papel da mulher de reprodução. Conceitos heterossexistas e conservadores para que compremos conforme nossa “opção”, conforme no que melhor nos enquadramos.

Mas não, não vale a pena nos rotularmos!

O que é ser uma vadia? É um tipo de comportamento? É usar um tipo de roupa? A mulher que “dá pra todo mundo”?

Eu não acredito em nenhuma destas premissas e acho incrível como esta apropriação apaga de vista as mulheres prostituídas porque fala em comportamento, mas jamais fala sobre a exploração e a violência que as prostituídas enfrentam.Com certeza a marcha não fala pelas mulheres prostituídas, antes pelo contrário ela ignora estas mulheres que não podem escolher um dia do ano, como fazem a maioria das mulheres na marcha ao se apropriarem do termo e se vestirem como vadias. Mulheres que são tratadas com desprezo, abuso e violência, simplesmente porque elas são as “verdadeiras vadias” para a sociedade todos os dias.

Pois nós todas as mulheres, prostituídas ou não, não somos vadias, vagabundas ou vacas. Se uma mulher ou garota que regularmente vai pra escola ou para o trabalho mas um dia por ano resolve ir a marcha utilizando o termo vadia, ela está agindo de maneira colonizadora, porque ela não sofre de forma alguma as consequências de ser uma “vadia de verdade”, ela não tem homens fazendo fila para estuprá-la com respaldo da sociedade, que acredita que suas filhas estão salvas enquanto estas mulheres que “escolheram” serem “prostitutas” existirem para que os homens descarreguem todo seu ódio e violência que sentem pelas mulheres (como disse Rebecca Mott.). Esta mulher ou garota que vai a marcha e diz que é puta, só o diz por estar numa absoluta posição de privilégio que inclui escolher o dia que vai ser ou se vestir “como puta”. O problema não é estar numa posição de privilégio, como alguém me perguntou: “qual o problema destas garotas na maioria brancas de classe média fazerem suas reivindicações?” Não seria problema mesmo, se isso não contribuísse ativamente para apagar os problemas que outras indivíduas estão passando. Feminismo para mim está absolutamente conectado com solidariedade entre mulheres, então torno a repetir que se milhões de mulheres querem se livrar do peso de serem tratadas como vadias e que o termo vadia lhes machuca e elas estão dizendo isso, porque ignorá-las? Será que pelo menos isso não merece a atenção das pessoas que marcham?

Acredito que muitas garotas principalmente as novas, realmente acreditam que o que a Marcha propõe favorece a liberdade de nós mulheres, não duvido das intenções de muitas pessoas envolvidas na Marcha. A questão que coloco não é para ficarmos em batalha, de forma alguma. As críticas que coloco são para propormos uma Marcha que agregue mais mulheres, que todas as mulheres se sintam confortáveis para caminharem juntas.Se a reivindicação é contra a violência sexual, marchemos contra a violência sexual. Se a reivindicação é quanto a nossa sexualidade marchemos por ela. A nossa sexualidade pode ser a nossa não relação com os homens! Ou pode ser também a nossa não sexualidade! Ou a nossa sexualidade está estritamente ligada aos homens e ao que os outros esperam de nós? E seria isso “nossa” sexualidade?

Que a marcha atinja a maioria da pessoas, eu compreendo, pelo espetáculo que virou, pela cobertura midiática e pela genuína necessidade de reivindicar os direitos das mulheres. Mas ela é uma verdadeira bomba de contradição ao feminismo. Ela fere as propostas feministas ao que se estende para todas as mulheres, que além das mulheres sofrerem discriminação e violências, que classe e cor da pele são determinantes para ditarem a maneira de como serão tratadas. Conscientes disso, porque deveríamos nos engajar em ações reformistas como esta?

A Marcha fala de estupro e sexualidade mas de uma forma a apagar demandas feministas importantíssimas. Lutamos pela nossa liberdade sexual, esta liberdade sexual não é liberdade se ela está totalmente inserida no contexto patriarcal, e nos jogos que este impõe de controle, onde o homem domina e a mulher é subjugada e objetificada. Numa sociedade que cansa de justificar o estupro como uma “urgência incontrolável” masculina (para isso servem as “prostitutas”, certo?), ou seja, uma via da sexualidade do homem, enquanto na verdade o estupro é apenas a confirmação de poder e do ódio às mulheres.

Não é uma questão de ser muito dura nas críticas, é uma questão de observar uma falta de consideração e solidariedade com as mulheres prostituídas, com as mulheres negras, as dos povos originários, de etnias, e com todas mulheres que são ou foram tratadas como vadias e vivem uma vida se esforçando para se livrarem destes traumas e de situações brutais, e que apenas a palavra vadia as fazem relembrarem de algo que elas carregam pesadamente. Se as mulheres que vão a marcha preferem ignorar milhões de outras mulheres, são elas que estão sendo duras, a diferença é que elas se consideram alegres, divertidas e liberadas e estão centradas na sua catarse individual. E mesmo que tenham direito obviamente de viverem suas catarses, elas só não podem dizer que estão se solidarizando com todas nós as outras mulheres que sentimos na pele o que é sermos tratadas como vadias. Não, elas não estão.

enilador

fonte: http://anarcopunk.org/acaoantisexista/uncategorized/a-marcha-das-vadias-nao-e-solidaria/

Breve Resenha de Algumas Teorias Lésbicas

breve resenha teroias lesbicasVersão zine traduzida ao português do texto de Jules Falquet, onde realiza uma magistral introdução ao pensamento lésbico.

* Para imprimir (pois não está editado versão impressão) escolha ‘imprimir como booklet/livreto/folheto na opção de impressão do pdf mesmo. Se tiver software livre tem um outro método de escolha das páginas que depois explico melhor.

Por hora, baixe a capa e o interior (logo mais eu unificarei num arquivo único) em:

capa breve resenha teorias lesbicas

+ zine breve resenha teorias lesbicas (versão impressão)

também:
breve resenha teorias lesbicas versão leitura

 

por que as meninas que foram molestadas se silenciam?

Por Coletivo Artemisia

“Por gue as meninas que foram molestadas, abusadas sexualmente ou mesmo estupradas raramente, ou nunca, falam sobre isso? Não falam pela mesma razão que silenciam as pessoas que foram irremediavelmente humilhadas e envergonhadas e que não tem nenhuma proteção ou validaçāo sobre suas integridades pessoais. Como a mulher estuprada, a menina violentada pode não ser acreditada (ela fantasiou ou inventou a historia), seu dano pode ser minimizado (não houve nenhum prejuízo, vamos, então, esquecer o assunto) e pode até mesmo ser responsabilizada pelo crime (a garota estava pedindo isso). A criança adquire auto—estima e confiança a partir do valor dado a ela pelos adultos em quem confia e de quem depende. Contudo, a menina explorada sexualmente faz surgir uma reação necessária para promover uma identidade positiva. Sem receber apoio para seu direito de ser protegida, ficar zangada ou expressar uma indignação justificada, sente que só merece ser usada sexualmente. Revelar um incidente é expor sua insignificância. Contar para alguém é desmoralizar-se diante de si mesma e dos outros. A vitima infantil não tem outro recurso além de sepultar, esconder e tentar esquecer a experiência. Mas a humilhação não desaparecerá. Ela infecciona, envenena e corroí seu ser. Quando o ultraje permanece encoberto, sem resposta e incontestado, a sexualidade, a própria biologia da criança ofendida, passa a ser uma vergonha para ela. Esta síndrome destrutiva não surge do nada. Suas origens estão em antigas tradições e costumes que, por sua vez, estão escritos na Historia, na religião, na lei e nos poderosos e influentes meios de comunicação atuais. No inicio da Civilização ocidental, a mulher, assim como a casa, o boi e o asno, eram propriedades do homem. Específicamente, ela era uma propriedade sexual cuja única funçāo era fornecer filhos e prazer, e seu valor era determinado pela compensação que pudesse trazer como reprodutora ou prostituta. Esta é a degradante herança que legamos a nossas meninas. O abuso sexual de garotinhas baseia-se na suposta inferioridade delas. Elas podem ser usadas sexualmente porque pertencem a alguém, são imperfeitas biologicamente, ou agem de forma sedutora. Simultaneamente degradadas e definidas por sua sexualidade, são coagidas em um sistema infalível de chantagem emocional. Se forem violentadas, a conceituação culturalmente imposta de sua sexualidade transformam―nas em culpadas. Qualquer tentativa, por parte da menina, para revelar seu estuprador também expõe sua alegada inferioridade e motivações sexuais, e traz

vergonha para ela e não para o culpado. O segredo é a única alternativa. Mas, nos como mulheres, começamos a refutar a educação que recebemos e que nos define como inferiores, e não permitiremos mais ser chantageadas e coagidas. Agora acusamos nossos criminosos. Eles são os culpados. A lição que devemos tirar de seus relatos é a de proteger e acreditar na integridade de nossas crianças e a de aprender a quebrar o silêncio que as ameaça.”

Anarquismo na Atualidade – fala feita na 4ªFlapoa por uma companheira

Segue uma fala feita na 4ª Feira do Livro Anarquista de Porto Alegre, no dia de abertura, 15 de novembro passado. Foram feitas várias falas sobre anarquismo na atualidade. Depois seguiu-se um debate.

“Anarquismo na atualidade.

Aqui no Brasil o anarquismo teve uma visibilidade gigante devido as manifestações. A revolta tomou conta das ruas. Esta revolta foi absolutamente importante e uma manifestação das nossas insatisfações, uma necessidade de denunciarmos as injustiças pela ação direta. A ação direta não é apenas uma ação isolada e de ataque, pois ela é construída todos os dias. E embora esta visibilidade tenha tomado as proporções que tomou, as práticas anarquistas, as organizações ou formas de nos organizarmos libertárias são antigas. Anarquistas sempre se organizaram e procuraram alternativas para viver/sobreviver.

O anarquismo teve um período de hibernação no sentido de que parece ter ficado por algum tempo sem uma continuidade devido aos anos de ditadura. Nos anos 80 o anarquismo teve uma retomada muito forte e também sob influencia do punk. As bandas, as pessoas envolvidas encontraram no anarquismo e nas práticas anarquistas, nas práticas autogestionárias (por exemplo ocupações, espaços autogeridos, em fim) a busca pela libertação. A busca por viver e sobreviver perante as injustiças, a busca por alternativas que não as dos moldes tradicionais. A busca por pensar e construir lutando contra o controle das opressões institucionalizadas que estamos submetidas, submetidos.

Mas eu tenho pouco tempo para falar aqui, sendo esta apenas uma introdução, um apanhado muito generalizado sobre o anarquismo na atualidade. O que quero colocar para as que estão aqui presentes, e para os que estão aqui presentes, é de que o anarquismo nunca existirá sem feminismo.

E que isto para mim é atualidade.

Nós mulheres anarquistas que nos envolvemos em espaços anarquistas em busca por libertação, encontramos muita resistência de que nestes espaços nos escutem. De que nestes espaços exista de fato uma libertação. De que nestes espaços estejamos seguras. Não queremos nenhum tipo de segurança vindo de outrem, não queremos sermos protegidas, não é disto que estou falando. Falo de que precisamos que nestes espaços estejamos seguras para alcançarmos objetivos libertários em todas as esferas das nossas vidas. Não uma libertação pela metade, uma libertação que é sugerida muitas vezes como prioritária enquanto nós mulheres anarquistas sabemos muito bem de nossas prioridades, de nossas urgências, e de toda a opressão machista da qual sofremos, da qual lutamos contra todos os dias.

Sim, não existe anarquismo sem feminismo. A revolução diária, utópica, ou de fato, não será revolução se ela não for feminista. Não é aceitável que o feminismo seja luta de segunda ordem.
Temos visto na atualidade cada vez mais denúncias de agressões por parte de “companheiros”. É possível que dentro de espaços anarquistas tenhamos que lidar com a opressão do patriarcado como se estivéssemos nos espaços não anarquistas? É obvio que o patriarcado se reflete nas pessoas e não poderia ser diferente com nós anarquistas. Por isso justamente que temos que destruir com o machismo que está dentro de nós.

Eu repudio totalmente a ‘acusação’ de que estou me focando e sendo separatista. Porque sim, eu estou me focando e serei separatista se tiver que ser. Porque sectário já é o patriarcado, e também aprendi do anarquismo a me organizar. Esta suposta “união” de lutas muitas vezes abafa, invisibiliza opressões específicas. Também totalmente repudio tentativas de boicote a autonomia das mulheres e sei porquê elas existem. Porque existe medo de confrontar privilégios, porque existe medo de perder o controle sobre o comportamento e sobre os corpos de mulheres e lésbicas. Porque ou não se nota ou é bom estar com o poder a seu alcance para quando se precise ou se queira usar.

E sim quando digo nós mulheres o faço porque estou me colocando numa classe. Porque precisamos nos colocar como classe, como grupo, porque a opressão se apresenta para todas nós mulheres, anarquistas ou não.

Nos protestos mulheres foram estupradas por policias e supostos companheiros. Vimos homens se aproveitando da confiança e da proximidade na luta para subjugar mulheres que acabaram sendo violentadas e abusadas. E sempre se questiona a mulher. O que ela fez, o que ela vestia, que horas eram.

E enquanto nas ruas corremos da polícia, nós mulheres temos ainda uma outra ameaça. E quando nos separamos de nosso grupo de afinidade, de nosso bloco, temos isso em mente e nos nossos corações, porque desde que nascemos a ameaça e o abuso são institucionalizados, fazem parte do ar que respiramos.

Não meus amigos, sim, não amigas, amigos, especificamente para vocês, que nesta linguagem patriarcal me ignora, me exclui e me invisibiliza. Então: não meus amigos, não existe anarquismo sem feminismo. O patriarcado antecede ao capitalismo. E a atualidade continua patriarcal.Não existem práticas libertárias enquanto nós mulheres não formos livres.

Só seremos livres quando todas formos livres.
Não se ponham no caminho da nossa libertação.”

abuso de confiança

Retirado do fanzine confabulando. Ele pode ser baixado aqui. (reservas quanto ao conteúdo pró-pornografia)

Dorme na cama acorda na lama . O feminismo acabou?

Tenho lido/ouvido/falado bastante com amigues sobre violência sexual, física e simbólica, praticada contra mulheres em cenas libertárias. Violência sexual, assédio e estupro são temas que marcaram minha vida, e a de muitas amigas. A quase totalidade de mulheres que conheço não só passou por experiências sexuais indesejadas como teve a descoberta de sua sexualidade inaugurada por algum tipo de violação física (que quase sempre deixou resquícios traumáticos ao longo de nossas vidas).
Essas ocorrências são tão usuais e freqüentes que fico espantada quando conheço alguém que não passou, por exemplo, por abuso na infância. E acho muito legal que possamos contar umas com as outras pra criar espaços seguros em que podemos, pelo menos, conversar sobre isso – nos fortalece, ajuda a dizer “não”, nos ajuda a localizar ou expressar nossa raiva, uma certa vergonha e o medo que temos quando não conseguimos dizer esse não, quando nosso não é ignorado.
( recentemente tenho pensado mais sobre isso, sobre o cara que, do outro lado – quando esse lado não é “em cima de você -, não é um cara genérico, um desconhecido que passa por você na rua e se sente no direito de fazer isso ou aquilo com seu corpo, ou com o corpo dele, de maneira a te intimidar, agredir, abusar. não é o estuprador sem nome, o que passa rápido por você na rua e passa a mão na sua bunda, o que, de dentro do carro, te chama disso ou daquilo. estou pensando no cara que tem um nome, que sai com a gente, que é amigo de outras amigas, que é militante ou toca numa banda. um ‘brother’, não um agressor. e mesmo assim é ele que se aproveita de quando você tá bêbada, ou cansada, ou de saia – entendendo isso como um sinal de que você quer trepar com ele, não importando o que você diga -. como é que esse cara consegue fazer isso com a gente e simplesmente continuar sua rotina no dia seguinte? como ele vai pra um ato, pra uma gig, pra uma reunião de coletivo, ou vai tomar uma cerveja e, no buteco, comenta com outros amigos (ou algumas amigas) sobre a noitada de ontem, depois de ter estuprado alguém?
Como ele consegue tirar a roupa de uma pessoa que ficou pra dormir na casa dele porque tava muito cansada ou bêbada (e agora pode estar acordada e chorando) e porque confia nele, de alguma forma, e penetrá-la contra sua vontade, passar a mão nela, imobilizá-la, ignorar seus gritos ou apelos ou pedidos?
Fico lembrando de quando as meninas íamos de saia pra ver umas bandas e não só estávamos sujeitas a dedadas (no mínimo), como também poderíamos ser ‘xingadas’ de promíscuas (“vadia”, “galinha”, “puta”, “piranha”, “já comi”) porque estávamos lá com aquelas roupas. o problema sempre somos nós e nossas roupas. nós e nossos corpos. Eles é que são óbvios e ficam marcados.
Não é óbvio que tal cara seja um estuprador. ninguém se refere a ele como “o fulano que embebeda as minas e estupra elas depois”. muito em parte porque

1) Além da mina e do cara, poucas pessoas vão saber disso e
2) Isso nem é considerado estupro por muitos caras. é como se fosse a punição por estarmos de saia dormindo/bêbadas/cansadas/ali.
no caso das meninas que gostam de beber essa punição é ainda mais exemplar, ela tem ares de castigo mesmo, já ouvi dois relatos de ocasiões diferentes sobre festas em que meninas bebiam, desmaiavam de bêbadas e eram sistematicamente estupradas por vários caras. Como se beber até cair, no caso das mulheres, fosse um convite explícito aos caras pra que façam fila e metam na gente enquanto estamos desacordadas, e depois ainda fiquem nos chamando de piranha pelas costas, com um ar de “ela mereceu”. Fico muito tempo pensando em como eles conversam sobre isso. Se não sentem constrangimento nenhum. Como nós temos nossas redes formais/informais/implícitas/explícitas de solidariedade feminina, eles terão espaços pra conversarem sobre esse tipo de coisa? Eles conseguem conversar com alguém sem acoplar um ar de conquista sexual à coisa? Eles dizem “fiz uma merda ontem”? Porque não é de um cara tosco que estou falando, é de um que não toma refrigerante porque boicota multinacional, é um militante de uma luta por mundos em que caibam outros mundos, um cara que faz escolhas políticas bacanas. como ele lida com essa separação entre o que é privado e o que é público? Por que caras que são legais em diversas instâncias continuam capazes de reproduzir os papéis mais cruéis do patriarcado? … e esse tanto de reflexão me traz de volta ao segundo título do texto.
E tenho visto (e sentido também) o cansaço de muitas feministas (ou mulheres que militam contra o patriarcado mas acham o rótulo “feminista” inadequado). às vezes não temos mais disposição pra sermos chamadas de “radical” o tempo todo. “chatas”, “loucas”, “exageradas”. e nos cansamos de ignorar certas piadas, comentários e olhares em nome de uma convivência ok com algumas pessoas. Isso significa que o feminismo acabou? Está ultrapassado?
É admissível que uma cena que se diga libertária tenha espaços pra violência e abuso baseadas em uma idéia de que alguns corpos estão a serviço de outros? Por que os discursos de liberação sexual não são acompanhados por práticas de libertação de papéis e comportamentos limitantes, exploradores, hierarquizantes, colonizadores?
Ainda estou tentando lidar com meu próprio cansaço. e esse texto é isso mesmo, um amontoado de perguntas que não consigo responder.

Consenso

1.
primeiro vai pedir. depois vai tentar. depois vai forçar. finalmente, vai tomar.
saia preta blusa roxa ou calça preta blusa preta? tênis, tênis confortável pra dançar (mas também correr se eu precisar) perfume brinco brilho gel no cabelo? gel no cabelo, ‘definidor de cachos’.

ele diz que é seu amigo. você pensa que é seu amigo. você age como amiga, não quer ser chata mesmo dizendo não.

barulho suor uma luz branca irritante tontura cerveja! cerveja! cerveja, eu adoro cerveja! ele dança, chega perto, sorridente, displicência, finje desinteresse mas passando a língua na boca daquele jeito nojento você tenta parar de mexer o quadril de um jeito determinado pra ele não entender errado.

ele entende errado. só entende o que quer. não respeita o que você não quer. não te respeita.

mais cerveja! eu adoro cerveja, cerveja me deixa alegre, a música me deixa alegre, dançar me deixa alegre, meu corpo cheio & tão leve cada vez mais alegre cada vez mais perto mais preocupada meio tonta sem noção mas sem vontade, nenhuma vontade de ficar com ele, mas se eu der um beijo nele ele vai embora? elemedeixa quieta? ele vai atrásdeoutra?

não vai. não deixa. ele fica, continua, contra a parede agora você não pode dançar nem respirar direito a língua dele corre como uma mão sufocando um pescoço mas suaboca suorelha, a mão dele é como uma língua pegajosa dentro do seu decote, dentro do decote, decote? por que eu vim de decote?

você bebeu demais, ele também. ele quer vomitar. ele te pede pra ir lá fora com ele, pede ajuda porque tá passando mal. você pode aproveitar pra ir embora, mas se ele tiver mentindo, mas se for só uma desculpa pra ficar longe de olhos além dos seus, o que você vai fazer? ele também usando tênis bom pra correr.

Como a polícia reforça a cultura de estupro

por stavvers

texto que fala papel que a polícia joga na legitimação da cultura de estupro

+Aviso de acionadores: esta postagem discute estupro, cultura de estupro e abuso de poder.+
A polícia, como sabemos, tem uma terrível e larga história com relação ao estupro. Alegações são muitas vezes não tomadas a sério e, em algumas situações, a polícia ativamente fabrica papéis para fazer os casos sumirem. É dificilmente uma surpresa o fato de que a vasta maioria dos casos de estupro não sejam reportados.

A mulher que foi desapontada pela polícia depois de ter encontrado a coragem para reportar seu estupro sabe isso muito bem, e três delas estão processando o funcionário pelo tratamento que receberam. Duas requerentes foram atacadas pelo estuprador serial John Worboys que poderia ter sido capturado anteriormente se a polícia tivesse escutado às mulheres.

A polícia não escuta. Porém, o oposto também é verdade

“Isso soa nos meus ouvidos ainda, o oficial dizendo ‘um taxista não poderia fazer isso'” ela (uma sobrevivente) diz.

“Isso parecia como se eles não quisessem saber. Em meus sonhos, eu gritava ‘por que você não acredita em mim?'”.
Meu coração dói por essa mulher. A esmagadora descrença em seu relato, depois de que uma violação horrificante ocorreu.

O comportamento do policial aqui é uma das manifestações mais declaradas da cultura de estupro: não acreditar na sobrevivente. Talvez o oficial tenha atuado de boa fé, não querendo maliciosamente jogar fora um caso de estupro (como muitos tiveram). Talvez o oficial apenas absorveu algumas frases de estoque e atitudes da cultura de estupro.

Isso não faz diferença. O policial possui uma posição única de poder: de última, eles decidem se eles vão se incomodar em ajudar uma sobrevivente. Cada momento da lógica da cultura de estupro está fracassando para a sobrevivente que pediu socorro. Cada investigação capenga e mal feita está falhando com a sobrevivente. Cada documento fraudulento jogado no caso está falhando com a sobrevivente. Estas sobreviventes escolheram perseguir um certo curso de ação, ativamente engajando-se com o estado para pedir o auxílio deste.

E eles estão falhando com esta.
Quem se beneficia destes arranjamentos? Estupradores. Cada vez que isso ocorre, as coisas se tornam um pouco mais fáceis pros estupradores. Elessabem que podem se sair bem dessa. Eles sabem que as chances estão a seu favor porque o estado os vai ajudar nessa.

A cultura de estupro apenas sempre beneficia estupradores, e a polícia está usando seu poder para reforçar isso.

Entre 2008 e 2012, houveram 56 casos documentados de estupro, agressão sexual e assédio. Em muitos destes casos, as reclamações foram encobertas e a sobrevivente desacreditada. Em um número assustadoramente largo dos casos, nenhuma acusação criminal foi sequer trazida. É duramente surpreendente, então, que a polícia possua um interesse implícito em manter a cultura de estupro em uma gritante boa saúde: eles estão se beneficiando disso.
Eu sou totalmente crítica da noção de que o poder que a polícia possui possa ser usado para o bem, para ajudar a superar a cultura de estupro desde cima. No melhor dos casos, a polícia pode apenas ser tão progressista quanto a sociedade que a gerou, então eles estarão ainda pisando na cultura de estupro. Isso sem calcular os efeitos psicológicos que tornam todos policiais em bastardos.

Há um vasto caminho para a melhora depois da revolução, no entanto. Eles podem, muito facilmente, parar de tão ativamente reforçar a cultura de estupro começando por uma posição de sempre acreditar na sobrevivente, mesmo que seja seu parceiro o acusado. Eles podem, muito facilmente, na verdade se importar em investigar os casos de estupro apropriadamente, respeitando a coragem da sobrevivente de ter seguido adiante com a denúncia. Melhoras são possíveis. Eu desejaria ser menos pessimista sobre o desejo das forças policiais em tentá-lo.

https://stavvers.wordpress.com/2012/07/21/how-the-police-enforce-rape-culture/

Trashing: o lado feio da sororidade

texto sobre condutas destrutivas dentro das grupas, espaças, colectivas e movidas feministas, questões de agressividades não visibilizadas que acontecem com as próprias irmãs, ocasiando sua morte política por vários motivos, e que são silenciadas e não abordadas.

Destruição: O lado feio da Sororidade
Jo Freeman, 1976.

O movimento de liberação das mulheres não foi somente pão e rosas. Este artigo explora o destrutivo fenômeno do ‘trashing’ (destruição): ataques pesoais a outras mulheres no movimento. Jo Freeman foi a editora de “A Voz do Movimento de Liberação das Mulheres”, que foi o primeiro jornal nacional da liberação das mulheres. Ela também foi membro do Grupo Westside, um dos primeiros grupos de Liberação de mulheres dos EUA).

Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976, pg. 49-51, 92-98. Ele provocou mais cartas das leitoras que qualquer outro artigo previamente publicado na Ms., maior parte embora não todos contando suas próprias experiências de ter sofrido ’trashing’1. Algumas delas foram publicadas na edição subsequente de Ms.
Faz bastante tempo desde que eu fui ‘trashed’. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a primeira em Chicago, a ter meu personagem, meu compromisso, e meu eu mesmo atacado de tal maneira pelo Movimento de mulheres que me deixou arrasada, em pedaços e incapaz de funcionar. Levou anos para que eu me recuperasse, e mesmo hoje as feridas não estão totalmente curadas. Desde então eu ando pelas margens do Movimento, ajudandoo porque eu preciso fazê-lo, mas com muito medo para lançar ao meio dele outra vez. Eu sequer sei bem do que eu tenho medo. Eu sigo dizendo a mim mesma que não há razão por que aquilo poderia acontecer outra vez – se eu for cautelosa – mesmo assim no fundo da minha mente há uma certeza pervasiva, irracional que diz que se eu esticar meu pescoço pra fora, serei novamente um alvo aceso para a hostilidade.
Por anos eu vim escrevendo esta peça na minha cabeça, usualmente como uma fala para uma variedade de audiências imaginárias do Movimento de Mulheres. Mas eu nunca tinha pensado em expresar a mim mesma publicamente porque eu vim sendo uma firme crente de não lavar as roupas sujas do Movimento em público. Estou começando a mudar minha mente.2

Antes que tudo, tantas das roupas sujas vem sendo publicamente expostas que eu duvido que o que eu tenha para revelar vá adicionar muito à pilha. Para aquelas mulheres que vem sendo ativas no Movimento, não é nem sequer uma revelação. Segundo, vim assistindo por anos com crescente consternação enquanto o Movimento conscientemente destrói qualquer pessoa nele que se destaque em qualquer maneira. Eu vim tendo antigas esperanças de que essa tendência auto-destrutiva poderia definhar com tempo e experiência. Deste modo eu simpatizei com, apoiei, mas não falei sobre, as muitas mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas tentativas de usá-los foram recebidos com hostilidade. Conversações com amigas em Boston, Los Angeles, e Berkeley que foram destruídas tão recentemente como 1975 me convenceram de que o Movimento não aprendeu de sua experiência não-examinada. Pelo contrário: o trashing foi tomando proporções epidêmicas. Talvez então, trazer isso pra fora do armário possa limpar o ar.

Que seria o “trashing”, este termo que expressa tanta coisa, embora explique tão pouco? Não é desacordo, não é conflito, não é oposição. Estes são fenômenos ordinariamente perfeitos que, quando engajados em mutualismo, honestidade, e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou organização saudável e ativa. “Trashing” é uma forma viciosamente particular de assassinato de caráter que equivale ao estupro psicológico. É manipulativo, desonesto e excessivo. É ocasionamente disfarçado pela retórica do conflito honesto, ou encoberta por meio da negação de que qualquer desaprovação exista realmente. Mas não é algo feito para expôr desacordos ou resolver diferenças. É feito para depreciar e destruir.

Os meios variam. Trashing pode ser feito privadamente ou em uma situação de grupo; na cara de um ou por trás das costas; por meio de ostracismo ou denunciação pública. A agente do trashing pode dar a você falsos relatos de que (coisas horríveis) outr*s pensam de você; contar a suas amig*s histórias falsas do que você pensa del*s; interpretar qualquer coisa que você diga ou faça da forma mais negativa; projetar expectativas irrealísticas em você para que então quando você falhe em alcançá-las, você se torna um alvo ‘legitimado’ para a raiva; negar sua percepção da realidade; ou fingir que você não existe. Trashing pode ser até mesmo finamente velado pelas mais novas técnicas de grupo de criticismo/auto-criticismo, mediação, e terapia. Quaisquer que sejam os métodos usados, trashing envolve a violação da integridade de uma, uma declaração da invalidez de uma, e impugnação dos motivos de uma. Em efeito, o que é atacado não é as ações de uma, as ideias de uma, mas o Eu de uma. Este ataque é realizado por meio de fazer sua vera existência é inimiga ao Movimento e que nada poderá mudar esta sorte de deixar de existir. Estes sentimentos são reforçados quando você é isolada de suas amigas assim que elas se tornam convencidas de que a associação delas com você é similarmente inimiga para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá amaldiçoá-las. Eventualmente todas suas colegas vão juntar-se ao coro da condenação que não pode ser silenciado, e você será reduzida a uma mera paródia do seu eu prévio. Levou três trashings para me convencer a cair fora. Finalmente, no fina de 1969, eu me senti psicologicamente estraçalhada ao ponto em que eu soube que não poderia seguir em frente. Até então eu interpretei minhas experiências como tendo haver com conflitos de personalidade ou desacordos políticos que eu poderia retificar com tempo e esforço. Mas quanto mais eu tentava, pior as coisas ficavam, até que eu finalmente fui forçada a encarar a realidade imcompreensível de que o problema não era o que eu tinha feito, mas o que eu era.
Isso foi comunicado tão sutilmente que eu nunca poderia conseguir qualquer pessoa com quem falar sobre isso. Não haviam grandes confrontações, apenas muitos pequenos desdéms. Cada um por si mesmo era insignificante; mas adicionados um ao outro eles eram como centenas de cortes com um chicote. Passo a passo eu era ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas de contribuir eram ignoradas; se eu escrevia um artigo, ninguém o leria; quando eu falasse em encontros, e então seguir a discussão como se eu não tivesse dito nada; datas de encontros eram mudadas sem que eu fosse avisada; quando era meu turno para coordenar um projeto de trabalho, ninguém iria ajudar; qundo eu não recebia correspondências, e então descobria que meu nome não estava na lista de correios, me diziam apenas que eu estive buscando no lugar errado. Meu grupo decidiu certa vez em juntar esforços de geração de fundos para enviar pessoas para uma conferência até que eu disse que gostaria de ir, e então foi decidido que todas pessoas estariam por sua própria conta (imparcialmente, uma membra me chamou mais tarde para contribuir com 5 dólares na minha tarifa, providenciou que eu não contasse a ninguém. Ela foi vítima de trashing alguns anos depois).
Minha resposta a isso foi o espanto. Eu senti como se eu estivesse perambulando de olhos tapados em um campo cheio de objetos cortantes e buracos profundos enquanto eu era assegurada de que eu poderia ver perfeitamente e que estava em um pasto liso e verde. Isso seria se eu tivesse inadvertidamente entrado em uma nova sociedade, uma operando por regras as quais eu não estivesse consciente, e não poderia saber. Quando eu tentei fazer meu(s) grupo(s) discutir o que eu pensava que estava acontecendo comigo, elas simplesmente negaram minha percepção da realidade dizendo que nada estava fora do comum, ou desmerecendo os incidentes como triviais (que individualmente eram). Uma mulher, em conversação privada por telefone, admitiu que eu estava sendo tratada de maneira muito ruim. Mas ela nunca me apoiou publicamente, ou admitiu francamente que isso ocorria porque ela temia fazê-lo por poder temer a aprovação de grupo. Ela também havia sofrido ‘trashing’ em um outro grupo.

Mês após mês a mensagem estava sendo martelada: saia, o Movimento estava dizendo: cai fora, caia fora! Um dia eu me encontrei a mim mesma confessando a minha colega de quarto que eu não acreditava que eu existia; que eu era um fragmento da minha própria imaginação. Foi aí que eu soube que era o momento de eu deixar. Minha saída foi bem silenciosa. Eu falei a duas pessoas, e deixei de ir ao Centro de Mulheres. A resposta me convenceu de que eu tinha lido a mensagem corretamente. Ninguém chamou, ninguém me mandou qualquer correio, nenhuma reação surgiu dos rumores. Metade da minha vida foi anulada, e ninguém estava consciente disso senão eu mesma. Três meses depois uma palavra foi trazida de que eu tinha sido denunciada pela União da Liberação das Mulheres de Chicago, descoberto depois que eu deixei o Movimento, por eu ter permitido eu mesma ser citada em um artigo recente de notícias sem a permissão delas. Isso foi tudo.

A pior parte de tudo isso foi que eu realmente não sabia por que eu estava tão profundamente afetada. Eu tinha sobrevivido crescendo em um subúrbio bastante conservador, conformista, sexista, onde meu direito a minha própria identidade estava constantemente sob assalto. A necessidade de defender meu direito a ser eu mesma me fez mais dura, não miserável. Minha pele endurecida foi mais temperada pelas minhas experiências em outras organizações políticas e movimentos, onde eu aprendi a usar a retórica e a argumentação como armas na luta política, e como revelar conflitos de personalidade sendo mascarados como políticos. Tais conflitos eram usualmente articulados impessoalmente, como ataques às ideias de uma, e enquanto eles podem não ser produtivos, eles não eram tão destrutivos como aqueles que eu vi tempos depois no movimento feminista. Alguém pode re-pensar as ideias de uma como um resultado de terem sido atacadas. É muito mais difícil re-pensar a própria personalidade. Assassinato de caráter foi usado ocasionalmente, mas não era considerado legitimado, e logo foi limitado tanto em extensão como em efetividade. Enquanto as ações das pessoas contam mais que suas personalidades, tais ataques não deveriam tão imediatamente resultar em isolamento. Quando eles foram empregados, apenas raramente entraram na pele de uma.
Mas o movimento feminista entrou na minha. Pela primeira vez na minha vida, eu me encontrei a mim mesma acreditando nas coisas horríveis que as pessoas estavam dizendo sobre mim. Quando eu fui tratada como merda, eu interpretei isso como significando de que eu era merda. Minha reação me enervou tanto quanto minha experiência. Ter sobrevivido assim incólume, por que eu poderia sucumbir agora? A resposta me tomou anos para chegar. E é uma pessoalmente dolorosa porque ela admite a vulnerabilidade que pensei que eu tinha escapado. Eu sobrevivi minha juventude porque eu nunca dei a nenhum grupo o direito a me julgar. Aquele direito eu havia reservado para mim mesma. Mas o Movimento me seduziu por sua doce promessa de sororidade. Clamou prover um céu das devastações de uma sociedade sexista; um lugar onde uma poderia ser compreendida. Foi a minha própria necessidade por feminismo e feministas que me fez vulnerável. Eu dei ao movimento o direito a me julgar porque eu acreditei nele. E quando ele me julgou como sem valor, eu aceitei esse julgamento.

Por pelo menos seis meses eu vivi em um tipo de desespero entorpecido, completamente internalizando minha falha como sendo uma pessoal. Em junho de 1970, eu me encontrei em Nova Iorque coincidentemente com várias feministas de quatro cidades distintas. Nos juntamos em uma noite por uma discussão geral sobre o estado do Movimento, e ao invés disso nos encontramos a nós mesmas discutindo o que aconteceu a nós. Tínhamos duas coisas em comum; todas tivemos amplas reputações no Movimento, e todas havíamos sofrido trashing. Anselma Dell’Olio nos leu uma fala chamada “Divisividade e Auto-Destruição no Movimento de Mulheres” que ela recentemente havia dado no Congresso Para Unir Mulheres (sic) como um resultado de sua própria experiência com trashing.

“Eu aprendi… anos atrás de que as mulheres sempre estiveram divididas umas contra as outras, auto-destrutivas e preenchidas com fúria impotente. Eu pensei que o Movimento poderia mudar tudo isso. Eu nunca sonhei que eu poderia ver o dia em que essa fúria, mascarada como um radicalismo pseudo igualitário (seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs de maneira a puní-las… “eu estou me referindo… aos ataques pessoais, ambos declarados e insidiosos, aos quais as mulheres no Movimento que tiveram dolorosamente manejado qualquer degrau de sucesso foram submetidas. Estes ataques tomam diferentes formas. O maior comum e difundido é o assassinato do caráter: a tentativa de solapar e destruir a crença na integridade de uma indivídua sob ataque. Outra forma é a ‘purgação’. A tática última é isolar ela… “E quem elas atacam? Geralmente duas categorias… realizações ou ganhos de qualquer tipo poderiam ser vistos como o pior crime: … faça qualquer coisa… que qualquer outra mulher secretamente ou do contrário sinta que ela pode também fazer – e… você estará sucetível a isso. Se então… você é assertiva, tem o que é geralmente descrito como uma ‘personalidade forte/se você não se encaixar no estereotipo convencional de uma mulher ’feminina’… Está tudo acabado. ‘Se você está na primeira categoria (a que possui realizações), você imediatamente é rotulada como uma oportunista, uma bruta mercenária, fazendo sua fama e fortuna em cima dos corpos mortos das irmãs sem egoísmo que estiveram enterrando suas habilidades e sacrificando suas ambições para a grande glória do Feminismo. Produtividade parece ser o maior crime – mas se você tem a má sorte de ser visível e articulada, você também é acusada de ser poderosamente maligna, elitista, facista, e finalmente o pior epíteto de tudo: identificada com os homens. Aaaarrrrggg!’”.

Enquanto eu a ouvia, um grande sentimento de alívio desbordava sobre mim. Foi minha experiência que ela estava descrevendo. Se eu estava louca, ao menos eu não era a única a sentir isso. Nossa conversa continuou pela tarde afora. Quando fomos embora, nos apelidamos ironicamente de “refugiadas feministas” e concordamos em nos encontrar outra vez. Nunca o fizemos. Ao invés disso cada uma de nós caímos novamente em nosso próprio isolamento, e lidamos com o problema apenas no nível pessoal. O resultado foi que a maior parte das mulheres no encontro terminaram caindo fora como eu tinha feito. Duas terminaram no hospital com ataques de nervos. Embora todas seguiram como dedicadas feministas, nenhuma realmente contribuiu com seus talentos para o Movimento como elas poderiam. Embora nunca nos tenhamos visto outra vez, nossos números cresceram enquanto a doença da auto-destrutividade lentamente engolfou o Movimento.

Ao longo dos anos eu estive conversando com muitas mulheres que sofreram ‘trashing’. Como um câncer, os ataques se espalharam desde aquelas que tinham reputações para aquelas que eram apenas fortes; daquelas que eram ativas para aquelas que meramente tinham ideias; daquelas que se destacavam como individualidades para aquelas que falhavam em conformar rápido o suficiente aos balanços e mudanças da linha que se modificava no momento. Com cada nova história, minha convicção cresceu de que trashing não era um problema individual trazido por ações individuais; tampouco era o resultado de conflitos políticos entre aquelas que diferiam em ideias. Era uma doença social.

A doença foi ignorada por tanto tempo porque é frequentemente mascarada sob a retórica da sororidade. No meu próprio caso, a ética da sororidade preveniu o reconhecimento do meu ostracismo. Os novos valores do Movimento disseram que cada mulher era uma irmã, cada mulher era aceitável. Eu claramente não era. Ainda assim ninguém podia admitir que eu não era aceitável sem admitir que elas não estavam sendo irmãs. Era mais fácil negar a realidade da minha não-aceptabilidade. Com outros ‘trashings’, a sororidade tinha sido usada como uma faca ao invés de cobertura. Um modelo vago de comportamento sororário é estabelecido por meio de julgadoras anônimas que então condenam aquelas que não alcançam suas exigências. Enquanto o ideal for vago e utópico, ele nunca poderá ser atingido. Mas ele pode ser mudado com as circunstancias para excluir aquelas que não são desejáveis como irmãs. Assim sendo, o adágio memorável de Ti-Grace Atkinson que dizia “A Sororidade é poderosa: ela mata irmãs” é reafirmada outra e outra vez.

Trashing não é apenas destrutiva para as indivíduas envolvidas: serve como uma arma realmente poderosa de controle social. As qualidades e estilos que são atacados se tornam exemplos que outras mulheres aprendem a não seguir – para que o mesmo destino não toque às demais. Isto não é uma característica peculiar ao Movimento de Mulheres, ou mesmo a mulheres. Os usos de pressões sociais para induzir a conformidade e intolerância as individualidades é endêmica na sociedade norte-americana. A questão relevante não é porque o Movimento exerce tais fortes pressões para conformar a um modelo limitado, mas quê modelo que pressiona mulheres para que sejam conformadas a ele. Este modelo está vestido pela retórica da revolução e feminismo. Mas por baixo dele há algumas fortes ideias tradicionais sobre os papéis apropriados que as mulheres devem seguir. Eu observei que dois tipos diferentes de mulheres sofrem trashing. O primeiro é aquela descrita por Anselma Dell’Olio — a mulher com realizações e/ou assertiva, aquela a qual o epíteto “homem-identificada” é comumente aplicado. O tipo de mulher que sempre foi posta pra baixo em nossa sociedade pelos epítetos que variam desde “não muito dama” a “vadia castradora”. A razão primaria aí tem sido tão poucas “grandes mulheres ______” não é meramente que a grandeza tenha sido não-desenvolvida ou não-reconhecida, mas de que mulheres exibindo potencial por realizações são punidas por ambos homens e mulheres. O “medo do sucesso” é bastante racional quando uma sabe que as consequências do sucesso possam ser a hostilidade e as críticas.

Não apenas o Movimento falhou em superar essa socialização tradicional, mas algumas mulheres levaram isso a seus novos extremos. Fazer algo significante, ser reconhecida, alcançar logros, é implicar que uma está “fazendo fama em cima da opressão das mulheres” ou que uma se crê melhor que outras mulheres. Embora poucas mulheres possam pensar isso, muitas permanecem quietas enquanto as outras vão mostrando suas garras. A jornada por ‘falta de liderança’ que o Movimento tanto preza se tornou mais frequentemente uma forma de arrebatar aquelas mulheres que mostram qualidades de liderança, mais que desenvolver tais qualidades naquelas que não a possuem. Muitas mulheres que tiveram tentando dividir seus conhecimentos sofreram trashing porque assim assertavam que elas sabiam algo que outras não. O culto do Movimento ao igualitarismo é tão forte que se tornou confundido com nivelação. Mulheres que nos lembravam que não somos todas a mesma foram destruídas porque sua diferença é interpretada como significando que não somos todas iguais.

Consequentemente o Movimento fez as demandas erradas daquelas dentro dele que se destacavam. Pede por culpa e expiação ao invés de reconhecimento e responsabilidade. Mulheres que se beneficiaram pessoalmente da existência do Movimento devem a este mais que gratidão. Mas este débito não pode ser convocado por meio do trashing. Trashing apenas desencoraja outras mulheres de tentarem romper seus grilhões tradicionais.

O outro tipo de mulher comumente destruída é aquela que nunca poderia ser suspeita. Os valores do Movimento favorecem mulheres que são apoiadoras e auto-eclipsadas; aquelas que estão constantemente atendendo aos problemas pessoais de outras; a mulher que joga o papel de mãe muito bem. Ainda assim um número surpreendente de tais mulheres foram destruídas. Ironicamente sua habilidade mesma de performar esse papel é ressentido e cria uma imagem de poder que suas associadas acham ameaçador. Algumas mulheres mais velhas que conscientemente rejeitam o papel de mãe são exigidas jogá-lo para que possam ‘cair bem’ naquele contexto – e são destruídas caso rejeitem. Outras mulheres que voluntariamente jogam ele encontram suas expectativas de gênero que elas eventualmente não podem alcançar. Ninguém pode ser ‘todas coisas para todas pessoas’, então quando estas mulheres encontram a si mesmas tendo que dizer ‘não’ de modo a conservar um pouco do seu próprio tempo e energia para si mesmas ou tendem ao negócio político do grupo, são percebidas como rejeitadoras e tratadas com raiva. Verdadeiras mães claramente podem suportar alguma raiva de suas crianças porque elas mantém um alto degrau de controle físico e financeiro sobre elas. Mesmo mães nas profissões de ‘cuidado’ ocupando papéis suplentes de mães possuem recursos com os quais controlar a raiva de seus clientes. Mas quando uma é uma ‘mãe’ para a companheira, isto já não é possível. Se as demandas se tornam irrealísticas, uma ou recua, ou é destruída.

O trashing de ambos grupos possui raízes em comum nos papéis tradicionais. Entre mulheres estes são dois papéis percebidos como permissíveis: a ‘ajudante’ e a ‘ajudada’. Maior parte das mulheres são treinadas para atuar a um ou a outro em momentos distintos. A despeito dos grupos de auto-consciência e de um intenso escrutínio sobre nossa própria socialização, muitas de nós não tivemos liberado a nós mesmas de jogar esses papéis, ou de nossas expectativas de que outras o farão. Aquelas que desviam desses papéis – as bem sucedidas – são punidas por isso, assim como aquelas que falham em alcançar as expectativas dos grupos.

Embora apenas poucas mulheres atualmente se engagem em trashing, a culpa por permitir isso continuar recai sobre todas nós. Uma vez sob ataque, há muito pouco que uma mulher possa fazer para defender a si mesma porque ela estará por definição sempre errada. Mas há um bom negócio que aquelas que estão assistindo possa fazer para prevenir aquela de ser isolada e ultimamente destruída. Trashing apenas funciona bem quando suas vítimas estão sozinhas, porque a essência do trashing é isolar uma pessoa e atribuir os problemas de grupo a ela. Ajuda de outras rachaduras esta fachada e priva a que promove trashing da sua audiência. Torna um descobrimento em uma luta. Muitos ataques foram prevenidos pela recusa em associar-se a deixar a si mesmas intimidadas em silêncio e medo de que poderiam ser as próximas. Outras atacantes foram forçadas a clarificar suas queixas ao ponto em que elas poderiam racionalmente lidar com isso.

Há, claramente, uma linha fina entre destruir e luta política, entre assasinato de caráter e objeções legítimas a comportamento indesejável. Discernir as diferenças leva esforços. Aqui há alguns ponteiros a seguir. Trashing envolve forte uso do verbo “ser” e apenas um uso muito breve do verbo “fazer”. É algo que uma é e não o que uma faz que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente fraseadas em termos de comportamentos específicos indesejáveis. Promotoras de trashing também tendem a usar substantitvos e adjetivos de um leque vago e geral para expressar suas objeções a uma pessoa particular. Estes termos caregam uma conotação negativa, mas não realmente te dizem o que está errado. Isso é deixado à sua imaginação. Aquelas que sofrem trashing não podem nunca fazer nada direito. Porque elas são más, seus motivos são maus, e portanto suas ações são sempre más. Não há correção para erros passados, porque estes são percebidos como sintomas e não como equívocos.

O teste de acidez, porém, vem quando uma tenta defender a pessoa sob ataque, especialmente quando ela não está mais ali. Se tal defesa é tomada a sério, e alguma preocupação é expressada de que se escute todos os lados e juntar todas evidências, trashing provavelmente não está ocorrendo. Mas se sua defesa é desmerecida com um “Como você pode defender ela?”; se você se tornar amaldiçoada pela suspeita de tentar tal defesa; se ela em fato é indefensável, você deve tomar um olhar mais próximo àquelas fazendo as acusações. Há mais coisa ocorrendo que um simples desacordo.

Enquanto o trashing foi se tornando mais prevalente, eu vim me tornando mais intrigada pela questão de por quê. O que há com o Movimento de Mulheres que apoia e mesmo encoraja a auto-destruição? Como podemos acionar o debate sobre encorajar as mulheres a desenvolver suas próprias potencialidades individuais e sobre as que esmagam aquelas entre nós que o fazem? Por que condenamos nossa sociedade sexista pelo dano que promove contra mulheres, e então condenamos aquelas mulheres que não parecem severamente danificadas por ela? Por que que a prática de auto-conscientização não nos conscientizou sobre o trashing?

A resposta óbvia é que a raíz de nossa opressão como mulheres, e do auto-ódio de grupo que resulta de sermos criadas para acreditarmos que mulheres não são merecedoras de muita coisa. Ainda assim tal resposta é muito fácil; obscuresce o fato de que trashing não ocorre randomicamente. Não todas mulheres ou organizações de mulheres o fazem, ao menos não à mesma extensão. É muito mais prevalente entre aquelas que chamam a si mesmas radicais que entre aquelas que não; entre aquelas que pôem acento em mudanças pessoais que entre aquelas que acentuam mudanças institucionais; entre aquelas que não podem ver vitórias que não sejam a da revolução que entre aquelas que conseguem se satisfazer com sucessos mais graduais; e entre aquelas em grupos com objetivos vagos que aquelas em grupos com objetivos mais concretos. Eu duvido que haja qualquer explicação única para o trashing; é mais facilmente devido a combinações variadas de circunstâncias que não são sempre aparentes mesmo para aquelas que o estão experienciando. Mas das histórias que eu escutei, e dos grupos que eu observei, o que me impressionou mais é o quão tradicional é isso. Não há nada de novo sobre desencorajar mulheres de sairem do lugar pelo uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas que veio colocando mulheres para baixo por anos; é uma coisa que feminismo foi suposto nos liberar. Ainda assim, ao invés de uma cultura alternativa com valores alternativos, nós criamos meios alternativos de reforçar os valores e cultura tradicionais. Apenas o nome mudou. Os resultados são os mesmos.

Enquanto as táticas são tradicionais, a virulência não o é. Eu nunca vi mulheres ficarem tão bravas com outras mulheres como elas ficam no Movimento. Em parte isso é porque nossas expectativas de outras feministas e do Movimento em geral são muito altas, e então difíceis de alcançar. Não aprendemos ainda a sermos realistas em nossas demandas sobre nossas irmãs e com nós mesmas. Isto é também porque outras feministas estão disponíveis como alvos para a fúria.

Fúria é o resultado lógico da opressão. Demanda um escape. Devido a maior parte das mulheres serem cercadas por homens de quem elas aprenderam que não é esperto atacar, sua fúria muitas vezes retorna para dentro. O Movimento está ensinando as mulheres a pararem este processo, mas em muitas instâncias não pode prover alvos alternativos. Enquanto os homens são distantes, e o “sistema” é muito grande e vago, a ‘irmã’ de uma está perto e a mão. Atacar outras feministas é fácil e os resultados podem ser mais rapidamente vistos que atacar instituições sociais amorfas. Pessoas são machucadas; elas vão embora. Uma pode sentir uma sensação de poder que vem do ter feito ‘alguma coisa’. Tentar mudar uma sociedade inteira é algo bastante lento, um processo frustrante cujos ganhos são incrementais, as recompensas difusas, e os reveses frequentes. Não é uma coincidência que o trashing ocurra mais seguidamente e mais viciosamente por aquelas feministas que vêem pequeno valor em mudanças pequenas, impessoais e então muitas vezes se encontram a si mesmas inaptas para agir contra aquelas instituições específicas.

A ênfase do Movimento no “o pessoal é politico” tornou mais fácil para o trashing ocorrer. Começamos por derivar algumas de nossas ideias políticas de nossas análises de nossas vidas pessoais. Isto legitimou para muitas a ideia de que o Movimento poderia nos dizer que tipo de pessoa deveríamos ser, e por extensão que tipo de personalidades deveríamos ter. Enquanto nenhuma fronteira foi traçado para definir os limites de tais demandas, foi mais difícil impedir abusos. Muitos grupos procuraram remodelar as vidas e mentes de suas membras, e alguns destruíram aquelas que resistiram. Trashing é também uma maneira de atuar a competitividade que transcorre nossa sociedade, mas de uma maneira que reflete os sentimentos de incompetência que as promotoras exibem. Ao invés de tentar provar que uma é melhor que qualquer outra, uma prova que outra pessoa é pior. Isto pode providenciar o mesmo sentido de superioridade que a competição tradicional promove, mas sem os mesmos riscos envolvidos. No máximo o objeto da ira de uma é colocada para a vergonha pública, no pior dos casos a posição de uma está segura dentro das mortalhas da justa indignação. Francamente, se formos ter competição no Movimento, eu prefiro a do velho tipo. Tal competitividade tem seus custos, mas há também alguns benefícios coletivos das realizações que os competidores alcançam enquanto tentam desfazer as das demais. Com o trashing não há beneficiárias. No final tod* mund* perde.

Para apoiar as mulheres acusadas de subverter o Movimento ou de minar seus grupos toma coragem, enquanto isso requere de nós esticar nossos pescoços pra fora dele. Mas os custos coletivos de permitir que o trashing siga assim tão longa e extensivamente como o temos hoje é enorme. Já perdemos neste momento algumas das mentes mais criativas e ativistas dedicadas no Movimento. Mais importante, desencorajamos muitas feministas de se destacarem, por medo de que o fizessem poderiam ser também destruídas. Não logramos providenciar um ambiente suportivo para que todas desenvolvessem suas potencialidades individuais, ou no qual reunir forças para as batalhas com as instituições sexistas que precisamos confrontar dia a dia. Um movimento que um dia esteve rebentando de energia, entusiasmo e criatividade terminou atolado na sobrevivência básica – sobrevivência uma das demais. Não é o momento de pararmos de buscar inimigas entre a gente e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?

A autora gostaria de agradecer a Linda, Maxine, e Beverly por suas sugestões que ajudaram na revisão deste artigo.

O Machismo Também Saiu às Ruas

texto/relato sobre a opressão do machismo manifestada nos protestos. para uma reflexão e questionamento da normalização das discriminações.

Nos protestos pelo Brasil pudemos observar que o machismo também “saiu às ruas”. É importante ressaltar isso, principalmente porque o machismo é sempre abrandado, quando não negado, e historicamente ignorado devido a “coisas mais importantes para se resolver ou para se focar”. Desta vez porém, referente aos protestos, observamos e denunciamos o sentimento ufanista, a necessidade desesperada de caracterizar o movimento como pacifista, a violência perpetuada contra pixadorxs, a perseguição de manifestantes alcunhadxs como vândalxs, a tentativa de cooptação da direita, a infiltração de neonazis e da própria polícia, entre outras questões. Nada menos do que imprescindível nos atermos sobre questões que sim, não tenham impedido os protestos de continuarem, mas que incomodaram uma grande parcela de manifestantes, principalmente mulheres e que podem sim terem impedido algumas de continuarem participando. Geralmente em eventos públicos, com aglomeração de pessoas, a gente vê manifestações de racismo, machismo e heterossexismo, e normalmente as pessoas ficam caladas. Tais preconceitos não acontecem apenas em eventos e aglomerações obviamente, diariamente nos deparamos com situações machistas, racistas e heterossexistas e nem sempre temos na ponta da língua uma resposta, ou não dispomos de energia, ou “presença de espírito” para respondermos, ou simplesmente percebemos outras problemáticas implícitas numa possível explicação. Além do que, estes preconceitos são reproduzidos de forma sistemática e normalizada, o que dificulta tentativas de diálogo que são tratadas com hostilidade, descartando que hostil é a manifestação do preconceito em primeiro lugar. De certa forma poderia ser mais fácil confrontar preconceitos em situações similares a protestos como este, onde é trazido à tona as desigualdades, já que existe um terreno propício ao questionamento. Mas parece não ser tão fácil assim. Os protestos estão dizendo que não aguentamos mais as desigualdades sociais e de classes, e que estamos dispostxs a lutar por demandas que nos são importantes e necessárias para nossas vidas e para a sobrevivência de vários grupos. Desta forma precisamos dar atenção para não oprimirmos outros grupos que sofrem outras opressões. Durante estes protestos surgiram cartazes e gritos machistas, como os referentes a Dilma não enquanto presidente, mas enquanto mulher, como no cartaz que dizia: “de quantas mulheres precisa pro Brasil afundar? Di(u)ma.” Piadas como esta, estão carregadas de misoginia mas são encaradas com naturalidade, e fazem “todo mundo” rir. Exceto a quem ela atinge, como são as piadas de negrxs e de “viado” ou “sapatão” em que as pessoas dizem “não sou racista/homofóbicx mas escuta essa!” Ouvi em diferentes momentos mulheres serem chamadas de vadia no meio dos protestos, por não corresponderem ao esperado delas. Argumentei com estas pessoas que não fazia sentido elas se referirem assim àquelas mulheres e recebi de volta comentários de desprezo também por eu ser mulher. É importante combatermos as opressões, incorporando como ação importante nas nossas lutas e no nosso cotidiano, até que o machismo, a misoginia e o preconceito encontrem resistência, e passem a não ser mais uma normalidade.

http://enilador.tumblr.com/post/54771514407/o-machismo-tambem-saiu-as-ruas

http://anarcopunk.org/acaoantisexista/texto/nao-seremos-massa-de-manobra/