“Daqui não sai”: Reflexões sobre o Rumor

Texto de Andrea Franulic, feminista chilena radical da diferença, sobre o papel do rumor (a fofoca) como instrumento patriarcal que parte da lógica da misoginia, no movimento de mulheres. Analisa o rumor como terrorismo político dentro do feminismo contra mulheres ativas, como reprodução da feminilidade e como um recurso aprendido dos sistemas opressivos sob os quais vivemos.


Daqui não sai: reflexões sobre a fofoca

Por Andrea Franulic e Jessica Gamboa
tradução por hembrista@riseup.net

“Eu te suplico
faça algo
aprenda um passo
uma dança
algo que a justifique
que lhe dê o direito de estar vestida de sua pele, seu cabelo.
Aprenda a caminhar e rir (…)
afinal
que tantas estejam mortas
e que você esteja viva
sem fazer nada de sua vida”
(Charlotte Delbo, 1970).

 

Viemos querendo escrever sobre o Rumor. Claro que não somos as primeiras a fazê-lo. As disciplinas patriarcais vieram realizando teorizações sobre o tema (a psicologia experimental, a psicologia social, a psicanálise, a teoria da comunicação e a sociologia). Não vamos nos basear nelas. Nosso interesse se encontra nos textos que pudemos encontrar na teoria feminista, devido a que as mulheres somos e viemos sendo o principal objeto do rumor no contexto de uma cultura misógina. Isso explica que, inclusive em espaços feministas, o rumor aparece como uma prática recorrente para desacreditar as mulheres pensantes e que se destacam por um trabalho consistente.

Dentro da teoria feminista, encontramos escritos de Audre Lorde (2003) sobre o que chama de ‘Tergiversação’[1], que no nosso entendimento, seria uma ‘versão torta’ e tendenciosa que o patriarcado faz circular por aí sobre a vida das mulheres. E que é o rumor senão uma versão torta, distorcida, de alguma realidade? Também Margarita Pisano escreve sobre os “Segretos, chantagens e rumores… os preconceitos” (2004). E menciona o conceito em seu livro ‘Julia, quero que seja feliz’ (2012) e em sua Biografia política (2009) que escreve junto com Andrea Franulic, onde se descreve sua própria experiência como objeto de rumor no processo de desmontagem do projeto “Casa da Mulher A Morada”.

Recentemente tivemos a sorte de obter, por meio de umas mulheres anarco-feministas, um fanzine entitulado “Coletânea sobre Sororidade Autocrítica ou sobre Violência entre Feministas” (2013) que começa com uma epígrafe muito inspiradora da feminista radical Phyllis Chesler, e que compartilhamos a seguir:

“Não comece rumores sobre outra mulher. Se você ouve um rumor, não o faça circular. Deixe que fique com você. Não é ético punir e sabotar outra mulher que você inveja ou teme, caluniando sobre ela ou colocando outras mulheres contra ela.”

O fanzine contêm artigos de diversas feministas. Lendo-os, encontramos trechos chamados de “comentários de amigas” sobre o texto “Segredos, chantagens e rumores… os preconceitos” de Margarita Pisano, que também aparece publicado no fanzine. Destes comentários, há uma consideração que diz que uma das características do rumor, ou melhor dizendo, de quem o exerce, seria a ausência, o vazio ou carência de uma identidade própria. Preferimos deixar o conceito de identidade de lado (por não estar de acordo com este enquanto categoria de análise) e falaremos de uma ausência de projetos de vida próprios ou vazio de conteúdo da própria existência e, por fim, da necessidade de preencher esse vazio assumindo a vida de outras pessoas. Desde esta carência e mediante o rumor, se estabelecem alianças na sombra com quem também gravita em torno deste vazio de um sentido de vida e confluem no desejo de subir em uma situação de privilégio e poder, tirando do caminho quem entorpece tal propósito, geralmente pessoas que contribuem com um trabalho concreto e de qualidade.

O rumor vem sendo uma prática patriarcal como tática de guerra, com fim de colonizar territórios, obter poder, ganhar eleições, conseguir lucros na bolsa, herdar bens, destruir lideranças, negociar tratados políticos, obter informação privilegiada, trocar mulheres, traficar armas, etc. É e vem sendo utilizado desde as direitas mais fascistas até as esquerdas mais revolucionárias. As táticas de guerra se herdam, se aprendem, se sofisticam e se naturalizam. O feminismo não escapou de nada disso. Principalmente se viu intervido pelo patriarcado de esquerda. Patético resulta – por nossa falta de história e genealogia, pelos custos que há em articular um trabalho autônomo e pela árdua tarefa de legitimar-nos entre mulheres – que o rumor perpetue a misoginia e desarme de tal forma a produção de mulheres. Este custo para nós mulheres é profundo, nos deixa vagando no Nada.

Celia Amorós (1987), embora seja uma feminista da igualdade, desenvolve acertadamente o conceito das Idênticas para referir-se à relação entre as mulheres na cultura patriarcal. Coloca que todas as mulheres cumprimos a mesma função social no patriarcado, ou seja, a funções próprias da feminilidade, e neste sentido, as mulheres somos substituíveis umas por outras e, o que é pior, somos descartáveis. Quando uma mulher sai do papel de ser uma idêntica, de uma igual a todas outras, e rompe com os desígnios da feminilidade, sobressaindo, isso gera misoginia, invejas e medos nas demais. Ela se transforma em uma ameaça para o grupo. Às mulheres não se perdoa tão facilmente exercer a capacidade de pensar, tampouco se lhes perdoa falar e escrever com inteligência. É mais aceito e aplaudido que se destaquem pelos trabalhos domésticos, ou por práticas do fazer, onde silenciosamente repetem uma e outra vez um destino não-criativo.

O rumor vem invadindo historicamente a vida das mulheres. Temos exemplos de perseguições promovidas pelo rumor. Somente para nomear um acontecimento muito emblemático, recordamos a matança das denominadas bruxas, levada a cabo entre os séculos XIV-XVII na Europa ocidental e central. Bastava que qualquer pessoa fizesse correr o rumor de que esta ou aquela mulher possuía pactos com o diabo, para que estas fossem acusadas de bruxas, e assim, torturadas, enforcadas ou queimadas vivas na fogueira da praça pública. As bruxas foram utilizadas como bodes expiatórios pelos homens.

Fazendo a analogia, podemos dizer que a vítima do rumor funciona como um ‘bode expiatório’, o dizemos em um sentido literal e metafórico. A situação de debilidade, vulnerabilidade e super-exposição que afeta a vítima é utilizada com o objetivo de expiar nela as próprias misérias não-assumidas, os próprios pecados, de maneira catártica. Assim como para justificar a falta de auto-crítica, os próprios equívocos, a carências e as inseguranças de todo tipo. Isto se relaciona com o que foi dito em parágrafos anteriores: o rumor serve de veículo para tapar o próprios vazios. As mulheres, doutrinadas na moral e bons costumes, castigam o bode expiatório para projetar nele suas próprias dependências: ao amor, ao álcool, à droga, aos homens ou a suas instituições. E assim, se sentem puras e sábias.

Identificamos dois papéis na prática de circulação dos rumores. O primeiro se sustenta e opera desde o lugar do Poder. Neste caso, a pessoa possui uma insegurança encoberta que a perturba, e seu movimento é defender-se do medo que lhe gera a perda desse poder, do prestigio e dos privilégios. O segundo, o mais descrito até então, é aquele que funciona desde a Mediocridade. Este papel pode resultar mais perigoso, pois aqui “o fim justifica os meios” com a pretensão de concretizar interesses aspiracionais que podem ser de diversa índole: desde interesses econômicos até de tipo psicológico como o querer “ser alguém”. Este papel nos recorda, nos evoca, tem semelhanças ao que a filósofa Hannah Arendt (2003) chamou por A Banalidade do Mal. Porque, segundo ela, os crimes cometidos contra a humanidade, as torturas e genocídios, são executados por seres medíocres, não pensantes, que somente seguem ordens e regras mecanicamente, obedecendo… milicos de direita e de esquerda.

Albert Camus em seu livro O Homem Rebelde (2005) estabelece a diferença entre o ressentido e o rebelde. O primeiro tem uma ânsia voraz por ‘pertencer a’ e ‘ser’ aquilo que critica. Já o rebelde, se arrisca com sua solidão. Quem exerce o rumor, sobretudo desde o papel da mediocridade, deseja compulsivamente pertencer e busca as cumplicidades necessárias para cumprir esta meta. Em outras palavras, o rumor é uma prática oportunista. No fim, se atua desde o ressentimento, a condescendência e a adulação… jamais desde a rebeldia. Como contraponto, quem é vítima do rumor é deixada no vazio: deixa-se de falar com, deixando esta capturada em uma névoa espessa, rodeada de um arco invisível de desconfianças, marcada pelo estigma que a tacha e a reduz, absorvendo-lhe as forças pensantes e criativas, como se estas existissem de sobra neste mundo deshumanizado. Enquanto isso, o restante realiza um pacto sectário de silencio.

Quem padece o rumor sofre um tipo específico de maltrato: o isolamento, a incomunicação, o sentimento de culpabilidade, a ameaça da chantagem e a paranóica e confusa vivência de não saber como, quando, por quê, quê e quem(s). Sofre uma alteração em seu uso da linguagem, pois teme usar as palavras, que são a principal ponte de comunicação entre as pessoas. Como escrevemos por aí, a palavra ‘rumor’ vem de ‘ruído’ que, por sua vez, vem do latim ‘rugitus’ (rugido). Isso, segundo o dicionário etimológico de Corominas (2000). Se interpretamos um pouco e sem complexos com a obviedade, diríamos que ‘fazer ruído’ ou ‘rugir’ são contrários a falar, a usar as palavras. Se interpretamos um pouco mais, usar as palavras para nos entendermos nos faz justamente humanas, nos faz sentir bem quando encontramos pontes de profunda conexão. O rumor desumaniza.

Agora vejamos, quando se recebe um rumor, há escolhas: nos fazermos cúmplices na circulação deste e colaborarmos em deixar no vazio à pessoa em questão, ou então colocamos um limite a isso. Portanto, o ato de receber um rumor não é um ato passivo. Quem escolhe não participar nem prestar ouvidos ao rumor o detêm e pode, inteligentemente, perguntar-se sobre as outras versões da mesma realidade entre a dita. Pois a neutralidade na linguagem não existe. Por isso, é justa a possibilidade de pôr em dúvida as versões e as fontes: um exercício básico que realizamos com a mídia hegemônica por exemplo, quando somos críticos. Se esta versão provêm de quem detêm um poder ou é considerada uma pessoa ‘legítima’, ‘confiável’, é mais difícil ainda desmentir. E neste caso, a versão do rumor toma as características de uma ‘História Oficial’. Não é demais lembrar que, no patriarcado, a historiografia elaborou uma versão oficial do mundo enviesada e cheia de invisibilizações, e é exatamente assim que as mulheres viemos perdendo nossa história.

Podemos identificar alguns tópicos do rumor que condizem com os tópicos da História Oficial. Em primeiro lugar, a Mitigação e a Exageração. A mitigação (aliviamento), usada a favor de quem promove o rumor, consiste em ocultar, diminuir, abrandar, fazer pouco caso ou, inclusive, ironizar sobre as próprias equivocações e erros, no seu caso. Pode ir acompanhada de um certo grau de auto-compaixão. A exageração, por sua vez, se utiliza contra a outra pessoa; se exageram e dá dramaticidade aos erros da outra pessoa. Algumas vezes a exageração vai acompanhada de mitomania e megalomania. O “exageracionismo” é um recurso do rumor.

Um segundo tópico fundamental é a Descontextualização, onde a informação que circula é uma informação ‘descarnada’, ou seja, extirpada de seu contexto original, vital, que continha pessoas com corpos e olhares, entre quem existia intimidade e confiança e um percurso próprio e autêntico da relação particular. Assim como existiam momentos, lugares e circunstâncias específicos; sentidos e propósitos, angústias e alegrias. A informação é retirada do contexto e da experiência que lhe deu vida e se utiliza com fins utilitários (oportunistas). Porém, não há informação no ar, as mensagens mudam seu sentido e seu destino radicalmente, segundo o contexto onde se usem. Nunca voltam a ser a mesma mensagem nem voltam a ter o mesmo significado. A descontextualização como recurso ou tópico do rumor, se baseia na chantagem e usa falsas testemunhas, isso é, personagens que, revestidos de um empoderamento emprestado, se atribuem ou se auto-concedem a autoridade de juízo sancionador, fundado na mais profunda ignorância da história questionada. Esta ação muitas vezes se marca na triste história de traição entre mulheres.

Como toda História oficial, a falta de honestidade desde onde circula a versão, a ‘tergi-versão’ (tegiversação: versão torpe, torta) da realidade, se disfarça de discursos salvadores, bons e messiânicos, inclusive baseados no amor. Os quais na realidade escondem as inseguranças, os despejos, os posicionamentos e as acomodações mais obscuras. Esta tática perturba e confunde as verdadeiras e reais fontes da dominação (Denise Thompson, 2003).

Outros tópicos reconhecíveis são ‘Frases Feitas’ que servem para finalizar o relato do rumor, talvez como parte da estrutura do Rumor se o identificamos como um gênero discursivo em si mesmo. Estas frases são: “não comente isso por aí…”, “daqui não sai…”, “não fala pra ninguém…”, “eu te digo isso porque eu o vi na minha própria experiência…”, “estou te contando isso porque confio em você…”, e etc. Nesta mesma linha, contamos com refrãos ou ditos populares, sempre impregnados do imaginário patriarcal, regados de lugares comuns (preconceitos), que se utilizam para semear o medo. Para nosso específico tema do rumor, nos vêm à mente as inquisidoras e penalizadoras frases que dizem “quando o rio soa é porque pedras traz”[2], “algo ela fez para que falem isso”, “não faça o que não quer que façam pra você”, “tudo se paga nesta vida”, “tudo cai por seu próprio peso”.

Redundante dizer que as famosas e neoliberais “redes sociais” são terreno fértil para difundir o rumor: a vitrinização e o imediatismo do facebook, do chat, dos correios electrônicos, etc. Estes sistemas são facilitadores para a vertiginosa circulação dos rumores e para a ameaçadora chantagem, porque em geral servem às pessoas que, des-corporizadas, se escondem e se protegem atrás do meio tecnológico, por meio de seu uso anônimo e impessoal.

A misoginia é uma pesada realidade para todas. A reflexão sobre a falta de sororidade ou de affidamento[3] deve ser mais profunda e comprometida. É fundamental que a imagem de espelho que nos produz a outra, nossa igual, não se utilize como o faz a madrasta de Branca de Neves, senão como uma porta para as sólidas pontes feitas de palavras, estas que dão cabimento à confiança e ao entendimento, mas somente quando real e verdadeiramente existe a horizontalidade.
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Traduzido de https://andreafranulic.cl/misoginia/de-aqui-no-sale-reflexiones-sobre-el-rumor/

[1] Tergiversar segundo a própria autora é “mudar o sentido das coisas para sua própria conveniência e benefício. Etimológicamente, a palavra significa “dar as costas à”. Curioso. O patriarcado esteve “tergiversando”, históricamente, nossas experiências de mulheres(…) Impôe seu próprio sentido de realidade e inventa o relato que lhe convêm para manter seu domínio. A tergiversação é totalitária e auto-referente, porque o patriarcado é “um”, somente vê a si mesmo e a feminilidade existe para lhe devolver seu próprio reflexo. Desta maneira, se transforma em uma montanha gigantesca de parcializações, apagamentos e vazios a respeito de nós mulheres. Quê esgotador é defender-se de cada acusação patriarcal!”. (https://andreafranulic.cl/lenguaje/la-tergiversacion-de-la-experiencia/) A autora retirou esse conceito do texto de Audre Lorde, “A transformação do silêncio em linguagem e ação”, onde esta diz que o silêncio não nos protege, embora distorçam nossas palavras. Mais que falar, diz Lorde assim como Anzaldúa, devemos escrever, pois escrevendo nos tornamos existentes e confrontamos as ‘versões distorcidas’ de nossa história, pois as mulheres não possuem história e isso se conseguiu a base do rumor, pois a história oficial se constitui no conjunto de rumores dos homens sobre a realidade e o ocorrido, e as mulheres, tal importante mecanismo de poder o rumor representa. E escrever e falar, além de ser confronto das versões distorcidas/rumores, é constituir-se em sujeita histórica e assumir a tarefa de produzir história de mulheres.

[2] Um ditado específico da cultura chilena, quer dizer algo como “se falam isso deve ser porque algo fez de errado”, no caso dos rumores.

[3] Termo em italiano para sororidade, proposto pelas feministas italianas ‘da diferença’.

* Recomendamos também a leitura do texto “O rumor, a feminilidade, o patriarcado” por hembrista https://we.riseup.net/feminist_troll/o-rumor-a-feminilidade-o-patriarcado

Zine Consenso Sexual Lésbico

consensolesbozine consensa lesbica corrigida (pedir para ‘imprimir como livreto/folheto/booklet se tiver pdf. Se for linux tem que ser de outra forma, mais tarde explico)

+ capa

(ainda não juntei as duas, faço isso mais tarde)

“Zine sobre consenso sexual lésbico, misturando partes autorais com outras adaptações e inspirações em outras zines. Produzi para distribuir numa oficina de prevenção e visibilização de violência entre lésbicas, pra seguir bem de guia rápido de identificação de comportamentos.
A idéia é que sirva tanto para que nos pensemos como agressoras e evitemos os comportamentos mostrados, como para tomarmos consciência e assertar nossos limites. A idéia do zine e de promover essas ferramentas não é como individualismo liberal, como se empoderando a pessoa para colocar os limites seja suficiente, pois não depende só de um momento de zine para desconstruir toda uma trajetória de feminização e desempoderamento de vida, além de questões estruturais mais amplas (violência masculina sistemática) ou de ordem traumática, porém pode ser um começo. Não cabe as vítimas ‘se empoderarem’ e sim as agressões serem paradas e nos responsabilizarmos de mudar condutas. Empoderamento é um processo coletivo e muitas vezes longo. Também penso que podemos nos localizar seja nos lugares de perpetradoras seja no de agredidas, sendo a questão da violência e como a reproduzimos complexa.

Trago a reflexão sobre prevenção e responsabilização porque penso que as dinâmicas de flerte não-positivas ou de relações possessivas e chantagistas estão demasiado naturalizadas, cabendo a nós indagá-las e repensá-las para construir novos referenciais, saudáveis, de nos relacionar e cuidar. Penso que o tema das agressões/relações complicadas entre lésbicas é invisível ainda, assim como há invisibilidade lésbica. Acho que deve ser trabalhada pela comunidade lésbica, por isso não acredito em abordagem penal [1] nem em estigmatização destrutiva das pessoas. Acho que existe dois tipos de agressora: as que reconhecem e que desconheciam até então que comportamentos podiam ser violentos (pois podemos reproduzí-los seja porque vivemos em lares violentos, aprendemos essas linguagens, seja porque nos identificamos com o agressor ao sermos abusadas ou agredidas, seja porque se naturalizava até então, por conta de romantismo que se pauta na idéia de conquista e insistência…) e as que não reconhecem e negam qualquer autocrítica. A gestão das situações de violência deve ser oportunidade para se pensar e refletir sobre. Dizer que algumas pessoas realmente “erraram” não é minimizar a situação nem o dano que promove. Somente penso que se exortamos nossos demônios pra fora como se fossemos todas perfeitas, e as lésbicas que reproduzem agressões e comportamentos complicados fossem um monstro dos mitos e meios jornalísticos, não o pensamos como parte do funcionamento de uma comunidade e entorno comum e logo não é por meio do escrache de uma lésbica que a gente vai garantir uma comunidade livre de abusos. Demonizamos e vilanizamos sujeitas e achamos que resolvemos o problema expulsando ele pra fora, mas todas podemos cometer agressões uma vez que nascemos num heteropatriarcado e estamos em um trabalho contínuo de nos desfazer dele.

Havia feito primeiramente com linguagem inclusiva porque achei que consentimento tinha que incluir o “respeito às identidades” e para dialogar com a pluralidade de pensamentos dentro do feminismo, mas como eu venho sendo crítica das categorias de análise propostas pelas políticas de identidade, e de forma a expressar meu  compromisso com mulheres e lesbiandade como projeto político e não identidade, eu retirei. 🙂 É só pra sapatão e mulher mesmo, logo é um zine específico.

Mais importante: a zine tá aberta a questionamentos e críticas e contribuições, principalmente se pensam que mais coisas poderiam ser agregadas a ela que tenham faltado, ou se querem questionar  e refletir a questão. Contatem hembrista @ riseup.net

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[1] A não ser que o caso seja muito grave e precise dos meios legais e institucionais para ser parado. Tudo depende do que decida sobrevivente e com apoio de seu entorno. Mas acredito que são casos realmente graves que se deva apelar a qualquer meio judicial, ainda assim não creio na abordagem punitivista e sou completamente contrária ao escrache de lésbicas, acreditando que precisamos desenvolver uma forma não-heterocentrada de abordar os nossos problemas entre lésbicas.

Uma discussão sobre o problema da Hostilidade Horizontal

Texto que fala sobre a violência, agressividade e destrutividade que ocorre entre feministas. Faz um análise do fenomeno e propôe que tenhamos condutas e auto-crítica que dêem conta desse problema para cuidar as nossas comunidades e lutar os verdadeiros inimigos.
baixe aqui o pdf

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Denise Thompson
– Novembro 2003

Este artigo não foi oferecido para publicação ou apresentado verbalmente. Foi escrito em resposta ao pedido de uma amiga sobre minhas próprias idéias sobre a hostilidade horizontal, em um momento em que ela sentia a si mesma lutando com o tipo de coisas discutidas aqui. Eu sei cuando terminei de escrever – março de 1993 – porque eu pûs data.

O termo, ‘hostilidade horizontal’, foi cunhada por Florynce Kennedy, em seu artigo de 1970, ‘Opressão Institucionalizada vs. a Fêmea’, impresso na antologia editada por Robin Morgan, “Sisterhood is Powerful” (“A Sororidade é Poderosa” 1, Penelope, 1992: 60). É um termo que data bem desde o começo da Liberação das Mulheres (seja em US ou onde quer que seu artigo haja sido lido). E se o nome é tão velho quanto a Liberação das Mulheres, o problema é ao menos tão velho, senão mais velho que este.

A Hostilidade Horizontal é uma forma de poder-como-dominação entre e em meio às mulheres. Por isso o melhor contexto a discutir isso é em termos de relações de poder entre mulheres.

O projeto feminista de identificar e desafiar a dominação masculina não significa que somente homens oprimen mulheres, e que mulheres são automaticamente isentas de valores, atitudes e comportamentos supremacistas masculinos, e nunca se comportem mal com outras mulheres. É importante manter em mente o principal inimigo, isto é, a dominação masculina. Mas porque a opressão é institucionalizada, e porque ela constitui o status quo e supostamente o mundo, é sempre muito fácil cair em maneiras impensadas de comportar-se que reforçam padrões de dominação.

De qualquer maneira, porque as mulheres são subordinadas e os homens são dominantes sob condições de supremacia masculina, os padrões de dominação típicos das mulheres são sistematicamente diferentes daqueles de homens, ou seja: são menos diretos, dissimulados, menos visíveis e ativos. O comportamento feminino que reproduz sentidos e valores supremacistas masculinos vai tender também a dar evidência da posição subordinada desde a qual as mulheres estão atuando, muito embora as as ações mesmas envolvam auto-agrandecimento as expensas de outra. Por isso hostilidade horizontal entre e em meio a mulheres tipicamente involve formas de poder-sobre que vêm desde uma posição de debilidade, não de força.

Hostilidade Horizontal pode envolver bullying para submeter alguém que é mais privilegiado em uma hierarquia das relações sociais supremacistas masculinas antes que aquela que acossa. Pode envolver tentativas de destruir a boa reputação de alguém que tem mais acesso aos níveis mais elevados de poder que aquelx que está espalhando o escândalo. Pode envolver tornar alguém responsável da opressão de outra pessoa, mesmo que ela também seja oprimida. Pode envolver demandas invejosas de que outra mulher pare de usar suas próprias habilidades, porque o sucesso de alguém melhor colocado que você mesma ‘faz’ você se sentir inadequada e sem valor. Ou pode envolver tentativas de silenciar criticismo por atacar aquela percebida como fazendo o criticismo. Em termos gerais, envolve percepções confundidas da fonte da dominação, localizando esta em mulheres que não estão comportando-se opressivamente (na medida de que não estão, claro). E isso é inspirado por ódio, aquela primeira força motivadora que mantém o motor da supremacia masculina rodando.

Florynce Kennedy foi direto ao coração da questão quando ela colocou sua discussão da hostilidade horizontal no contexto de consentir na opressão de uma mesma. Ela não estava argumentando que esse ‘consentimento’ era a causa da opressão. Muito embora ela disesse que “não pode haver um sistema realmente tão pervasivo de opressão, como aquele dos Estados Unidos, sem o consentimento d* oprimid*’ (p.492), ela não queria dizer que se parassemos de consentir o mesmo simplesmente desapareceria. Mulheres não consentem estupro, por exemplo, mas isso não há marcadamente diminuido sua ocorrência. Ela estava consciente de que mulheres não eram responsáveis por sua própria subordinação. Ela porém quis apontar que aquela opressão não era somente coagida ou violentamente forçada, mas que uma ordem social opressiva requeria um certo degrau de cumplicidade para sua continuada existência.

A cumplicidade requerida de nós sob condições de supremacia masculina é cumplicidade na ideologia da debilidade feminina. Mulheres devem ser ‘fracas’ para que então homens possam ser ‘fortes’. A força de homens é adquirida às expensas das mulheres. Esse requermento ideológico da fraqueza feminina não vá incontetada mesmo sob as condições do dia-a-dia da realidade falocrática.

Mulheres constantemente resistem a subordinação à homens de maneira a sacar alguma liberdade de ação e influencia própria. Maneiras convencionais de resistir, porém, reinforçam antes de desafiar o status quo. Derrotar o opressor em seu próprio jogo, por exemplo, deixa as regras do mesmo intactas, mesmo quando uma mulher ocupa a posição mais alta na hierarquia. As perspicácias e seduções femininas inflam o ego masculino ao mesmo tempo em que elas conferem as mulheres benefícios a curto-prazo. Lágrimas e tantras, ou frieza e afastamento, podem fazer ele ser mantido sob controle temporariamente, mas ele usualmente possui algum lugar mais para ir uma vez que o mundo é construído em sua própria imagem e semelhança. Mesmo quando uma muher individual maneja derrotar um homem individual ou homens, o que surge não é um relacionamento de igualdade. O papel da mulher ‘dominadora’ é permitido por dentro da forma falocrática de vida, seja como uma maneira de intimidar mulheres a subordinação – a ‘vadia’, a ‘histérica’, a ‘enchedora de saco’, a ‘fêmea castradora’ – ou como uma form de erotizar culpa masculina, por exemplo a ‘dominatrix’ no encontro sexual sadomasoquista. Paradoxicalmente a ideologia da fraqueza feminina requere uma grande quantidade de violência para ser mantida. Hostilidade Horizontal é o uso em meio às mulheres dessas técnicas desenvolvidas no contexto de resistencia ao poder masculino. A intenção é induzir a submissão a outra que é percebida como enormemente poderosa, enquanto que, ao mesmo tempo, reforçar a idéia de que mulheres não podem ter poder.

Kennedy mencionava como ‘mulheres sendo utilizadas como agentes para opressores’ (p.493), mas sua discussão sobre hostilidade horizontal, que ela também chamava como ‘descarte’2, era tentadoramente breve. Ela não dava exemploss da ocorrência disso entre feministas. Ela tinha mais a dizer sobre o controle do self, que sobre as maneiras nas quais tentamos controlar umas às outras. ‘Mulher’, ela diz, ‘em sua condição consentual cabeço-lavada frequentemente atuam fora de seu papel de mãe rondante sem nenhuma pressão notada de ninguém. Observe ’notada’ (p. 494). Ela, de qualquer forma, se referia à parte jogada pela ‘hostilidade horizontal’ na ‘demolição … de alguns grupos políticos radicais, e é triste dizer, alguns grupos de liberação de mulheres’ (p.495). Ela sigue adiante para dizer que isso é parte das ‘Técnicas de dividir-e-conquistar do Establishment’:

“Pessoas oprimidas são frequentemente bem opressivas quando primeiramente liberadas. E porque não deveriam ser? Elas sabem bem ambas posições. A bota de alguém no seu pescoço ou a bota del*s no pescoço de alguém… mesmo se est*s se agrupam juntos na atmosfera fria, úmida da sua recém descoberta libertação… mulheres… muitas vezes se chocam umas com as outras antes de aprender a compartir e disfrutar sua recém descoberta liberdade (pp. 495-6).”

Suas sugestões sugeridas são também breve e não-elaboradas. Ela diz:

“Para evitar esses efeitos destrutivos da hostilidade horizontal, as mulheres necessitam um despertar político e/ou social da patologia do oprimido quando confrontadas pelos expertos do ‘dividir-e-conquistar’” (p.495).

Ela também sugere abster-nos de enfuriar-nos com individualidades, e ao invés disso, dirigir nossa raiva a alvos mais apropriados, isto é, sistemas e instituições ao invés de pessoas.

“Chutar o balde” – ela diz, “deveria ser apenas para onde há um balde protegendo o Sistema” (p.499). Esse comentário mostra que ela estava consciente que suas soluções sugeridas eram menos que perfeitas, uma vez que as instituições funcionam por meio de ações, atitudes e compromisso de individualidades. Contudo, suas recomendações servem como um alerta para nós para manter em mente o inimigo principal. E a despeito da brevidade de sua explicação, está claro que ela considerava a hostilidade horizontal como uma forma de ‘poder sobre’ recriado por mulheres contra mulheres, e que essa invariabilidade servia aos interesses do opressor e trabalhava contra os interesses das mulheres. Neste sentido, era uma re-elaboração dos padrões de comportamento dominantes adquiridos como um resultado da participação na realidade falocrática.

Julia Penelope está de acordo substancial com Florynce Kennedy. Ela também vê isso como uma forma de consentimento para opressão. Ela se refere a isso como ‘opressão internalizada’, e descreve como:

“Hostilidade Horizontal é o melhor método do heteropatriarcado para nos manter em ‘nossos devidos lugares’; nós fazemos o trabalho dos homens e suas instituições por eles… (…) ela nos faz direcionar nossa raiva – que surge de nosso estatuto marginal e subordinado no heteropatriarcado e que deveria ser dirigida à nossos opressores – à outras Lésbicas e mulheres, porque sabemos que é mais seguro… Elafunciona para garatir nossa continuada vitimização dentro dos nossos próprios grupos, e nos mantêm silenciadas quando a maioria queremos falar; nos mantêm passivas quando a maiora queria desafiar, porque não queremos ser o alvo da raiva de outra Lésbica.” (Penelope, 1992: 60).

Insultos

Uma das formas de hostilidade horizontal discutidas por Penelope é o ‘chamar de’. Ela diz que o insulto é ‘um substituto medíocre à análise reflexiva’ (p65). Ela pontua que o chamar alguém de algo é fácil. Fácil de fazer, fácil de acreditar e fácil de lembrar, porque, como ela diz, ‘requere absolutamente nenhuma reflexão, nenhuma análise, e nenhuma justificação’ (p.69). Rotular outros com nomes como ‘Nazi’, ‘facista’, ‘racista’, ‘etarista’, ‘classista’, ‘polícia sexual’ 3, ‘puritanas’, ‘moralistas’, etc. é também perigoso se é bem sucedido em conseguir o que isso pretende, isto é, intimidar aquelas etiquetadas em silêncio e parar qualquer desafio ou debate. Aquelas que acreditam que estes nomes dizem algo certo sobre aquelas que foram rotuladas, sem pensar sobre o que essas palavras significam, ou sem perguntar por substância ou evidência, também participam em hostilidade horizontal, mesmo se estas pessoas não são as originais rotuladoras. O xingamento busca destruir a boa reputação daquelas pessoas rotuladas, controlar seus pensamentos e ações, e aterrorizar elas ao silêncio. Trivializa os verdadeiros horrores do facismo, racismo, opressão classista e supremacia masculina, e diminui as agonias daquelas e aqueles que hajam sofrido mais sob esses regimes. Embaça distinções importantes entre, por um lado, aquel*s que, como supremacistas brancos, neo-Nazis, ideológos supremacistas masculinos, violadores, etc., que advogam, glorificam e praticam violência e comportamento desumanizante sobre aqueles que estes definem como ‘inferiores’, e aquelas de nós que, por outro lado, podem reter atitudes racistas, etc., atitudes a despeito as nossas melhores intenções. E estabelece distinções preconceituosas entre nós mesmas por meio de enfatizar aquelas opressões que nos dividem, às expensas de e para a exclusão da opressão que temos em comum como mulheres e lésbicas

Sentimentos não são o suficiente

Outro tipo de hostilidade horizontal que Penelope discute é o uso de ‘declarações psicológicas’ (psych-predicates). Essas são formas de uso de linguagem que descrevem como nos sentimos sobre e reacionamos às demais, de uma maneira que atribui uma fonte desses sentimentos a alguém. Dizer de alguém que ela é ‘intimidante’ por exemplo, Penelope diz, ‘requere a experiência do sentimento específico nomeado pelo verbo para descrever a ela mesma como um objeto a ser atuado sobre pelo comportamento ou atitude de alguém’ (p. 73). O uso de predicados psicológicos permite àquela que o diz a evitar responsabilidade pelos seus sentimentos, e pôr essa responsabilidade em alguém. Também permite atribuir intenções à suposta ‘intimidadora’ que esta pode não ter, e acusar ela do desejo de dominar que ela pode não querer, e assertar que a visão daquela que denuncia como a única interpretação possível. Falar sobre este processo em termos de uso de linguagem, Penelope diz, não é negar a realidade de nossos sentimentos. É, ao invés disso, alertar-nos de que é sempre fácil culpar a outras e acusar falsamente – a linguagem é construída para isso. Penelope comenta de que o uso de tal linguagem ‘mantém a ficção heteropatriarcal de que somos emocionalmente dependentes’ (ibid.). Eu acrescentaria que isso também reforça a crença de que somos fracas e desprotegidas e completamente à merce de outros todo-poderosos. Porque tal desproteção tende a ser defendida, tendemos a atacar de maneira a aniquilar aquelas que percebemos como a fonte dessa sensação. É esse senso de desproteção que é a verdadeira fonte da hostilidade horizontal. Isso é sugerido por algo que Vera Ray diz em seu artigo ‘Uma investigação da Violência em relações diadicas Lésbicas’. (Ray, 1991). Ela diz que, muito embora haja similitudes entre o abuso de mulheres por homens em relações heterossexuais e a violência em relações lésbicas, há uma diferença crucial. Onde o homem usa violência para manter e reforçar sua dominação na relação, a agressora lésbica usa violência para ‘equalizar’ o que ela percebe como um desbalance de poder. Ela percebe a ela mesma como ‘fraca’ e sua parceira como ‘forte’, e ela a ataca de maneira a demolir aquela ‘força’ que ela (erroneamente) sente que é a fonte de sua própria ‘fraqueza’. Isso não excusa a violência, como aponta Vera. Ninguém ‘merece’ ser agredida. Mas isso indica que a violência entre mulheres origina-se na debilidade e não na força. Como Vera coloca, nesta instância mulheres ‘são corrompidas por um senso de falta de poder’ (p.46). A mesma observação foi feita por Joanna Russ em seu artigo ‘Poder e Vulnerabilidade no Movimento de Mulheres’ (Russ, 1985). Neste artigo, Russ critica o que ela chama ‘o grande Imperativo Feminino’, a expectativa de que ‘mulheres são supostas fazer as outras pessoas sentirem-se bem, a suprir a necessidades de outres sem ter nenhuma necessidade própria’ (p.43). Ela descreve com este imperativo é enforçado nas mulheres por outras mulheres por meios de sindrome de “Mamãe Mágica/Irmã temblante”. Uma ‘Irmã temblante’ (IT), ela diz, é uma mulher que abraçou sua própria indenfensidade e inefectividade de maneira a evitar a culpa servicial de satisfazer suas próprias necessidades, exercitando suas próprias habilidades, e alcançando seu próprio sucesso. Uma IT elevada ao status de ‘Mamãe Mágica’ (MM) qualquer mulher que alcançou algo que ela mesma foi incapaz de alcançar. Ela culpa a MM pelos maus sentimentos que ela tem sobre sua própria falta de conquistas, e procede para demandar que a MM tome conta dos sentimentos feridos (da TS), e tome conta dela. Uma vez que isso é impossível, a IT se torna enfurecida e ‘lincha’ a MM. A MM, que a esse ponto pode haver estado inconsciente de seu status ‘mágico’, cai na cilada ela aceita a visão da IT. Ela se torna uma MM por meio de reaconar com culpa, por tentar abrandar os sentimentos feridos, por desculpar-se por desprezar seus próprios ganhos, empreendendo-se em ajustar tudo e fazer todo mundo se sentir bem. Dada a impossibilidade disso, sua resposta atual é medo e paralisia face aos permanentes gritos de raiva da IT.

Russ sugere que o caminho para fora do círculo vicioso de culpa, auto-recriminação e paralisia para as mulheres é reclamar nossas próprias conquistas e valor próprio. A IT precisa dar-se conta que, embora seus sentimentos de desolação podem ser resultado de relações de poder fora do seu controle, eles também podem não ser. Ela precisa aprender que ela retém sua própria agência moral mesmo sobre condições de opressão (usar o conceito desenvolvido por Sarah Hoagland-Hoagland, 1988), e que há ainda algumas coisas que ela pode fazer, que ela ainda tem alguma responsabilidade, mesmo que sua liberdade de ação é constrangida por condições objetivas.
Ela precisa aprender que atribuir enormes quantidades de poder a outra muher é uma ilusão, assim também é seu sentido de que ela mesma é completamente desamparada. E ela precisa aprender que o oprimido também pode ser opressivo. Não apenas pode o oprimido partilhar, ainda que minimamente, dos estatus e privilégios dos dominantes às expensas de outr*s oprimid*s, mas também oprimid*s também possuem maneiras de manipular os dominantes. A IT precisa proteger-se usando essas técnicas contra outras mulheres, técnicas de dissimulação vitimista, de birras, de demandas de que alguém resolva seus problemas para ela, e considere seus sentimentos feridos à exclusão de seus próprios projetos.

A MM, por outro lado, precisa aprender que ela não é infinitamente disponível, incomensuravelmente suportiva, eternamente paciente, ou seja, que ela não é a ‘mamãe’ de ninguém (no sentido supremacista masculino de absoluto auto-sacrifício). Ela também precisa aprender que, como Russ coloca, ’sentimentos de culpa não automaticamente significam que ela está para ser culpada de tudo, ou mesmo de qualquer coisa que seja, e deve portanto fazer reparação por meio de colocar tudo em ordem. A culpa é tão endêmica na população feminina, e funciona tão sistemicamente para manter mulheres a serviço dos homens, que ela pode simplesmente ter mudado para o seu partilhamento do padrão generalizado. Neste caso, desde que não há nada para corrigir, ela deve simplesmente lidar com os sentimentos de culpa até eles irem embora.

Como reconhecer Hostilidade Horizontal

É importante distinguir entre hostilidade horizontal e criticismo genuíno, porque o criticismo é geralmente confundido com hostilidade. Enquanto que o criticismo infundado é destrutivo e paralisante, o criticismo é ainda assim necessário se o feminismo está para continuar crescendo e se desenvolvendo e mantendo-se relevante, e não degenerar-se em um dogma papagaiante. Enquanto o feminismo necessita criticismo, ele não precisa o terrorismo irracional da hostilidade horizontal. Enquanto ambos podem se sentir daninhos e humilhantes, a hostilidade horizontal é duramente cruel, não tem outra motivação que não seja a de machucar. É uma cega castigação e criação de bode expiatórias daquelas que estão acessíveis porque elas não são tão diferentes em poder e privilégio. Criticismo, por outro lado, não possui a intencionalidade de ferir, mas de remover as névoas e desmascarar a verdade da questão. É considerado e considerante. Envolve um intento genuíno de trabahar o que está indo, e mostra consideração pela outra por meio de não ser deliberandamente e cruelmente ingentil. Assim que possível, é caracterizado por uma discussão considerada, bem pensanda e substancial.

Mesmo que isso não seja sempre possível, especialmente no calor do momento, o criticismo é até o último momento sincero nas questões que coloca. Não é uma competição sobre quem esta certa e quem está errada, sobre quem vence e quem perde. Ao invés disso, o criticismo está preocupado em desvendar a verdade, e está oposto à mentiras, segredos e silêncios, trapaças e rumores sem substância. Não é necessário ter tudo ordenadamente trabalhado antes de expressar dúvidas. Mas é vital perguntar para saber e avaliar as reações de uma própria. É importante perguntar a si mesma questões como: Estou sentindo-me ameaçada pelo que ela está dizendo? E se for, por quê? Estou justificada em sentir-me incômoda? Qual é a fonte de meu desconforto? Há suficientes evidências? etc.
Algumas vezes as questões vão ter respostas imediatas. Mas reservar julgamentos é também uma forma de criticismo, e uma maneria de recusar-se a engajar em hostilidade horizontal.
Enquanto criticismo é caracterizado por uma busca cuidadosa do sentido do que está sendo dito, a hostilidade horizontal é sem sentido, porque a informação contida em um nome indecente é tão esparsa. Quê significa, por exemplo, chamar a outra feminista de ‘racista’ ou ‘classista’ ou ‘fascista’, sem ir além em justificar isso e dar razões? A palavra ‘facista’ tem algum significado aplicado a outra mulher, dada a história do Facismo e os males perpretados sob sua influência? A acusadora deve estar clara de sua própria mente sobre o significado dos termos que ela aplica a outra mulher, e a forma particular ou as formas nas quais a acusada foi ofendida. É melhor permanecer em silêncio, que ganhar uma vitória fácil sobre outra mulher que provavelmente já tem um vasto estoque de culpa generalizada pela acusação para acionar.

Deve ser assumido que essas recomendações são relevantes não somente para aquelas com treinamento em pensar, argumentar e raciocinar, isto é, aquelas com educação terciária. Mas podemos todas pensar. Não é uma técnica confinada às instituições do ‘alto saber’. Todas podemos também saber nossas próprias mentes. Podemos todas separar verdade de falsidade, o inimigável do amigável, o que é meramente confuso ou ignorante daquilo que é deliberadamente errado. Um bom argumento não é necessariamente um sofisticado e largo. Todas podemos dar razões pelo que fazemos, mesmo se não estamos inicialmente conscientes das razões e que tome algum tempo para encontrá-las. E todas somos capazes de entender que cometemos erros, reconhecendo eles e aprendendo deles. Todas somos capazes de decidir se há ou não suficiente evidência, e de reservar julgamento até que possamos fazer uma que seja informada. Todas somos capazes de substanciar o que falamos, e de confirmar nossas asserções com as evidências. Também somos capazes de respeitar a boa reputação de cada uma. E somos todas capazes de examinar nossos próprios motivos. Longe ed ser o caso de que essas habilidades estejam confinadas a uma elite pequena, é vitalmente importante que todas feministas as desenvolva. Fracasso em fazê-lo nos mantera na cilada dos jogos de poder da ideologia supremacista masculina

Como evitar Hostilidade Horizontal

Por ‘evitar hostilidade horizontal’, eu não quero dizer encontrar maneiras de evitar ser submetida a isso, ou proteger alguém de ser submetida a isso. À medida de que ela não se origina comigo, não há nada que possa fazer para pará-la de acontecer. Se não é meu comportamento, a decisão de se engajar-se ou não nisto não é minha para fazer. Há, é claro, numerosas maneiras nas quais eu poso reagir uma vez que ela aconteceu, e essas maneiras podem ser mais ou menos apropriadas, mas ou menos deliberadas, mais ou menos empoderantes. Eu posso reagir com vergonha ou culpa, e permtir que isso me silencie; ou posso aceitar as coisas negativas ditas sobre alguém, sem pensar e sem perguntar por verificação e evidência. Ou podemos engajar em batalhas verbais que podem terminar ou não em uma inimizade de longo termo e recusa em nunca mais falar-se uma com a outra novamente.
Alternativamente, a batalha deve limpar o ar e acabar com uma convencendo a outra, ou com um acordo em discordar. Ou pode ser legal, desapegado, respeituoso e razoável, requere que a outra dê suas razões pelo que ela está dizendo, e avalie as razões para o melhor da minha habilidade. Na ausência do que eu sentiria como razões adequadas, eu posso suspender julgamento a menos que haja suficiente evidência. Mas se a razão falha em convencer, nada mais vai funcionar sequer. Mas se eu não posso parar outras de serem hostis, eu posso recusar a engajar-me em hostilidade horizontal eu mesma. Eu posso tomar conta para não cair em padrões automáticos e impensados de dominação. Eu posso perguntar a mim mesma, como Julia Penelope diz, se eu realmente quis dizer o que eu disse. Eu posso perguntar eu mesma se o que eu digo é verdade. Eu posso peruntar quais são minhas motivações – Estou buscando apenas machucar, humilhar, e demolir, ou estou defendendo o que eu acredito, tentando esclarescer coisas, tentando ajustar o filme? Eu respeito a ourta mesmo se eu discordo dela, mesmo se eu sei (ou eu penso que sei) que ela está errada?
Precisamos estar aptas para decidir o que é hostilidade horizontal e o que não é. Precisamos exercitar uma grande quantidade de cuidado em discernir comportamentos que podem ser justificadamente identificados como opressivos, abusivos ou dominantes, dos quais não são. O processo de discernição requeere auto-conhecimento, uma habilidade de pensar problemas, e um certo degrau de desapego dos sentimentos como raiva, humilhação e vingança. Também requere auto-respeito e respeito pelos demais. E isso requere a rejeição da violência, física ou verbal, e uma maneira de endereçar percebidos desbalances de poder. A tarefa crucial neste contexto é desenvolver maneiras de decidir quando estamos justificadas em perceber outras mulheres como comportando-se opressivamente e quando elas não estão, e de discernir os métodos apropriados e inapropriados de lidar com aquele comportamento. Acima de tudo, envolve identificar supremacia masculina como o inimigo principal, e reconehcer que os valores e significados desta ordem social são o status quo a menos que estejamos conscientemente comprometidas na sua recusa.

  • * *

1 Usei o termo ‘sororidade’ embora a tradução direta pudesse ser ‘irmandade’ porque o termo sororidade está mais difundido e reconhecido pelas pessoas, equanto ‘irmandade’ pode ter outras conotações que não são tão agradáveis para a intenção do termo em inglês que é o reconhecimento das outras mulheres como companheiras ou a identificação entre mulheres.

3 Fazendo um paralelo pra pensar hoje em dia, outras formas atuais de censurar o debate e a reflexão feminista é acusar feministas (radicais por exemplo, ou mais críticas ou que pensam criticamente sexualidade e as políticas de identidade atuais) de ‘transfóbicas’, ‘cissexista’, ‘moralistas’ (termo que todo homem acusou feministas, baseado na sua cultura de estupro) ou o termo atual ‘polícia feminista’. Gostei que em um encontro quando houve uma assembléia sobre consentimento e acordos coletivos, alguém usou isso de acusar de polícia a delimitação de limites de alguém, essa pessoa foi imediatamente cortada por essa amiga que disse ‘Não gente, a polícia não está aqui, ela não veio, ela não está nesse encontro’. Temos que lembrar que é muito forte e difamante quando alguém é acusada de coisas graves ou associadas com figuras fortes de maltrato como policiais. Pensemos se não é forma de hostilidade horizontal, e de que certas opressões como a transfobia são exercidas não por individualidades como outras feministas senão por instituições. Dá a parecer que a transfobia é uma prática de certas feministase os esforços se concentram mais sobre essas que sobre o Estado e suas instituições que mantém e perpetuam a transfobia que mata travestis e trans, enquanto que algumas feministas somente querem se reunir entre mulheres biológicas e lésbicas por motivos até bastante plausíveis.
Outro exemplo é aquele cartaz que diz ‘Microfacismo em cada coração anti-trabalho sexual’, ataques deste tipo recebem feministas com uma perspectiva abolicionista do que entendem como sistema prostitutinte e, a despeito do debate que se queira instalar, é outra forma de desqualificação, bastante parecida com a acusação de ‘feminazi’ que vem sendo por sorte ridicularizada. Entendo todos esses ataques e desqualificações fáceis e discursos vazios e desonestos como misoginia e anti-feminismo (Nota da tradução).

References
Hoagland, Sarah (1988) Lesbian Ethics: Toward New Value Palo Alto, CA: Institute of
Lesbian Studies
Kennedy, Florynce (1970) ‘Institutionalized Oppression vs. the Female’, in Morgan, R., ed.
Sisterhood Is Powerful New York: Vintage Books/Random House
Penelope, Julia (1992) ‘Do We Mean What We Say? Horizontal Hostility and the World
We Would Create’, in Penelope, J., Call Me Lesbian: Lesbian Lives, Lesbian Theory
Freedom, CA: The Crossing Press
Ray, Vera (1991) ‘An Investigation of Violence in Lesbian Dyadic Relationships’ Journal of
Australian Lesbian Feminist Studies 1(1), pp.40-48
Russ, Joanna (1985) ‘Power and Helplessness in the Women’s Movement’, in Magic Mommas,
Trembling Sisters, Puritans and Perverts Trumansburg, NY: The Crossing Press

projeto: violência nas relações lésbicas

‘sobre:viventes’: rompendo o silêncio sobre relações de maltrato e abuso entre lésbicas

 
A convocatória se destina a todas as lésbicas que desejem romper o silêncio ao falar, de preferência em primeira pessoa, sobre o tema e começar a pensar, discutir e visibilizar a questão da violência nas nossas comunidades e vínculos lésbicos. Esse exercício é um movimento afirmativo que pode ser recebido como o início de um processo de cura pessoal e coletiva. Ao compartilharmos, ainda que de maneira anônima e indireta, experiências pessoais, além de diminuirmos nosso isolamento, iniciamos a nossa recuperação.Utilizaremos o fanzine como espaço protegido, auto-gerido, livre de julgamento e que garante o anonimato, destinado a acolher relatos escritos (sempre que possível em primeira pessoa) sobre nossas historias focalizando as relações íntimas que tivemos nas quais vivenciamos violência sexual, maltrato emocional, físico e abuso. São encorajadas também as iniciativas que abrigam relatos de quando agimos como perpetradoras dessas dinâmicas, para que pensemos as modificações que podemos fazer sobre nossas condutas.Cuidar de nossas comunidades e curá-las da violência implica entender suas origens e relações com as heranças da cultura de abuso e almejar modificar comportamentos assumindo praticas cotidianas e intimas que desconstruam a mesma. Por isso incentivamos a todas que busquemos, na medida do possível, formas e termos não heterocentrados para nos referirmos às nossas herstórias e que tentemos preservar esse espaço como “um lugar de fora” (elsewhere), tão marginal quanto possível em relação aos aparelhos de captura do sistema heteronormativo.

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