Ato de Sororidade a Yakiri em São Paulo, presa por se defender de agressor sexual

Segunda, 24 de março às 11:00
Rua Holanda, 274. Jardim Europa – CEP 01446-030 – São Paulo/SP

mexico(3)No dia 9 de dezembro de 2013 Yakiri Rubí Rubio Aupart, uma jovem lésbica de 20 anos e de origem indígena da Cidade do México, DF, reagiu a uma brutal violência: sequestro seguido de estupro e tentativa de assassinato, perpetrada pelos agressores Luis Omar y Miguel Ángel Ramírez Anaya. Yakiri conseguiu desarmar um dos agressores que empunhava a faca que era utilizada para ameaçá-la, subjulgá-la e torturá-la e com a mesma arma conseguiu desferir um golpe em um deles, que, em consequência, acabou morrendo.

Yakiri conseguiu fugir e procurou a delegacia de polícia. Quando chegou lá foi surpreendida com a presença de um dos estupradores que lhe acusava de matar seu comparsa. E qual foi a reação da polícia? Proceder a exames de corpo de delito para tentar iniciar um processo que pudesse levar a Yakiri uma sensação de justiça? Não. A polícia, um dos braços repressivos mais eficazes em incutir nos nossos corpos de mulheres, lésbicas e pessoas trans as normas do heteropatriarcado, achou por bem indiciar a Yakiri por homicídio qualificado.

Deu-se início a toda uma série de trâmites dos sistemas de burocracia jurídica misóginos e lesbófobicos que só fizeram repetir uma e outra vez a violência da qual Yakiri logrou sobreviver. No final, Yaki foi enviada à prisão por “uso excessivo de autodefesa” e de onde só saiu depois de 86 dias e sob uma fiança exorbitante de 430 mil pesos mexicanos (o equivalente a 5 mil salários mínimos), preço que lhe obrigaram a pagar para aguardar o julgamento em “liberdade”.

O sistema jurídico e repressivo nesse caso mais uma vez atuou como parte de uma grande engrenagem de castigo que se debruçou sobre Yakiri assim como se debruça sobre cada uma de nós que ousa sair do espaço de submissão a nós reservado. Yakiri se defendeu, conseguiu não ser morta e lutou contra o destino que lhe traçaram: do estupro como castigo por sapatão e insubmissa e do feminicídio como assassinato político. Para essa gigantesca forma de opressão e repressão nos defender do abuso, da invasão dos nossos corpos e da aniquilação política é abusivo. É abuso de legitima defesa. E nesse sentido perguntamos: pode a autodefesa ser abusiva?

Yakiri foi sequestrada e violada por agressores machistas. Depois foi sequestrada e violada pelo estado porque as prisões não são nada mais do que a institucionalização do sequestro e da violação, a materialização brutal de violências heteropatriarcais, racistas e classistas. Por isso dizemos que esse sistema de justiça não é o nosso. Nunca poderemos obter justiça de instituições cujo objetivo é nos manter dóceis e sob controle para que privilégios heteropatriarcais possam seguir existindo. Contra a agressão machista, autodefesa feminista!
Por todas as mulheres, lésbicas e pessoas trans que sucumbiram nas ensanguentadas mãos do heteropatriarcado e que pagaram com suas vidas, com seus sonhos, ou que foram encerradas detrás das grades das prisões. Por todas as que resistiram e por todas as que resistimos.

Dizemos mais uma vez:
Nenhuma agressão sem resposta!
Nem uma morta a mais!
Abaixo os muros de todas as prisões, tanto as físicas e como as simbólicas!

#YakiLibre
#YakiriLibre

Coletiva amazonas em fúria

Mais info:
http://yakilivre.noblogs.org/post/2014/03/19/yakiri-livre/

https://rizoma.milharal.org/2014/02/10/eu-teria-feito-o-mesmo-campanha-pede-libertacao-de-mexicana-presa-por-matar-seu-estuprador/

ante-la-violencia-1024x837

feministas autonomas mexicanas se manifestam nas ruas pela liberdade de yakiri. Fonte http://lahoguera.confabulando.org

Neste 8 de março, queremos o fim da exploração sexual das mulheres!

IMG_20140308_100035_874_zps1dca2498

panfleto distribuído por Comitê de Abolição da Prostituição, na marcha de 8 de março em São Paulo

Mulher não é mercadoria! Pela abolição da prostituição!
(Para ter acesso ao formato panfleto, clique aqui)

O projeto de lei Gabriela Leite do deputado Jean Wyllys (PSOL), se aprovado, legalizará a prostituição. Embora haja um mito de que a legalização beneficia as mulheres em situação de prostituição, na realidade a legalização só beneficia os cafetões e os consumidores.
Esse projeto considera que a prostituição é um trabalho que algumas mulheres escolhem livremente. No entanto, a voluntariedade dessa escolha não é real, uma vez que essas mulheres entram na prostituição por necessidades financeiras, por terem aprendido a ver seus próprios corpos como mercadoria ou por terem sido forçadas por um terceiro. É inaceitável que a prostituição seja equiparada a qualquer “prestação de serviços”. Ela é intrinsecamente uma apropriação do corpo das mulheres pelos homens, uma violência condizente com toda a exploração da sociedade patriarcal e capitalista em que vivemos.
Com a proximidade dos Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), é grande a pressão para que esse projeto seja aprovado. Insistindo numa falsa diferenciação entre prostituição e exploração sexual, o PL de Jean Wyllys visa facilitar o lucro dos cafetões durante esses períodos de grande procura por turismo sexual. Além de não dispor sobre formas de garantir a segurança das mulheres em situação de prostituição, a justificativa do projeto dá a entender que o tráfico sexual seria uma demonstração de ‘solidariedade’ (!) e propõe alterações no atual Código Penal, que considera crime manter casas de prostituição.
Devemos pressionar para que o governo pense nos interesses das mulheres e não no lucro dos cafetões ou na comodidade dos consumidores!
Defendemos um modelo abolicionista da prostituição:

1. Nenhuma criminalização às mulheres em situação de prostituição. Por políticas que promovam a saída das mulheres da prostituição e da marginalização social.

2. Por uma lei que criminalize a compra de qualquer ato sexual. Pela responsabilização e criminalização do consumo de sexo.

3. Por mais fiscalização e pela criminalização de qualquer forma de agenciamento, controle ou aliciamento na prostituição. Pela criminalização da cafetinagem, das casas de prostituição e das redes de tráfico sexual.

4. Por mais políticas sociais voltadas para as mulheres, por equiparidade salarial entre homens e mulheres e por políticas e campanhas de prevenção à prostituição.

http://comiteabolicaoprostituicao.wordpress.com/

Tradução “Tesouras para Todas: textos sobre Violência Machista nos movimentos sociais”

tijera para todasColetânea traduzida para português coletivamente e editada pela Subta, reúne textos sobre violência machista nos movimentos sociais e sua gestão, em experiências em espaços ocupados na Espanha.

Para baixar a coletânea tesouras para todas clique na imagem ou aqui.

abuso de confiança

Retirado do fanzine confabulando. Ele pode ser baixado aqui. (reservas quanto ao conteúdo pró-pornografia)

Dorme na cama acorda na lama . O feminismo acabou?

Tenho lido/ouvido/falado bastante com amigues sobre violência sexual, física e simbólica, praticada contra mulheres em cenas libertárias. Violência sexual, assédio e estupro são temas que marcaram minha vida, e a de muitas amigas. A quase totalidade de mulheres que conheço não só passou por experiências sexuais indesejadas como teve a descoberta de sua sexualidade inaugurada por algum tipo de violação física (que quase sempre deixou resquícios traumáticos ao longo de nossas vidas).
Essas ocorrências são tão usuais e freqüentes que fico espantada quando conheço alguém que não passou, por exemplo, por abuso na infância. E acho muito legal que possamos contar umas com as outras pra criar espaços seguros em que podemos, pelo menos, conversar sobre isso – nos fortalece, ajuda a dizer “não”, nos ajuda a localizar ou expressar nossa raiva, uma certa vergonha e o medo que temos quando não conseguimos dizer esse não, quando nosso não é ignorado.
( recentemente tenho pensado mais sobre isso, sobre o cara que, do outro lado – quando esse lado não é “em cima de você -, não é um cara genérico, um desconhecido que passa por você na rua e se sente no direito de fazer isso ou aquilo com seu corpo, ou com o corpo dele, de maneira a te intimidar, agredir, abusar. não é o estuprador sem nome, o que passa rápido por você na rua e passa a mão na sua bunda, o que, de dentro do carro, te chama disso ou daquilo. estou pensando no cara que tem um nome, que sai com a gente, que é amigo de outras amigas, que é militante ou toca numa banda. um ‘brother’, não um agressor. e mesmo assim é ele que se aproveita de quando você tá bêbada, ou cansada, ou de saia – entendendo isso como um sinal de que você quer trepar com ele, não importando o que você diga -. como é que esse cara consegue fazer isso com a gente e simplesmente continuar sua rotina no dia seguinte? como ele vai pra um ato, pra uma gig, pra uma reunião de coletivo, ou vai tomar uma cerveja e, no buteco, comenta com outros amigos (ou algumas amigas) sobre a noitada de ontem, depois de ter estuprado alguém?
Como ele consegue tirar a roupa de uma pessoa que ficou pra dormir na casa dele porque tava muito cansada ou bêbada (e agora pode estar acordada e chorando) e porque confia nele, de alguma forma, e penetrá-la contra sua vontade, passar a mão nela, imobilizá-la, ignorar seus gritos ou apelos ou pedidos?
Fico lembrando de quando as meninas íamos de saia pra ver umas bandas e não só estávamos sujeitas a dedadas (no mínimo), como também poderíamos ser ‘xingadas’ de promíscuas (“vadia”, “galinha”, “puta”, “piranha”, “já comi”) porque estávamos lá com aquelas roupas. o problema sempre somos nós e nossas roupas. nós e nossos corpos. Eles é que são óbvios e ficam marcados.
Não é óbvio que tal cara seja um estuprador. ninguém se refere a ele como “o fulano que embebeda as minas e estupra elas depois”. muito em parte porque

1) Além da mina e do cara, poucas pessoas vão saber disso e
2) Isso nem é considerado estupro por muitos caras. é como se fosse a punição por estarmos de saia dormindo/bêbadas/cansadas/ali.
no caso das meninas que gostam de beber essa punição é ainda mais exemplar, ela tem ares de castigo mesmo, já ouvi dois relatos de ocasiões diferentes sobre festas em que meninas bebiam, desmaiavam de bêbadas e eram sistematicamente estupradas por vários caras. Como se beber até cair, no caso das mulheres, fosse um convite explícito aos caras pra que façam fila e metam na gente enquanto estamos desacordadas, e depois ainda fiquem nos chamando de piranha pelas costas, com um ar de “ela mereceu”. Fico muito tempo pensando em como eles conversam sobre isso. Se não sentem constrangimento nenhum. Como nós temos nossas redes formais/informais/implícitas/explícitas de solidariedade feminina, eles terão espaços pra conversarem sobre esse tipo de coisa? Eles conseguem conversar com alguém sem acoplar um ar de conquista sexual à coisa? Eles dizem “fiz uma merda ontem”? Porque não é de um cara tosco que estou falando, é de um que não toma refrigerante porque boicota multinacional, é um militante de uma luta por mundos em que caibam outros mundos, um cara que faz escolhas políticas bacanas. como ele lida com essa separação entre o que é privado e o que é público? Por que caras que são legais em diversas instâncias continuam capazes de reproduzir os papéis mais cruéis do patriarcado? … e esse tanto de reflexão me traz de volta ao segundo título do texto.
E tenho visto (e sentido também) o cansaço de muitas feministas (ou mulheres que militam contra o patriarcado mas acham o rótulo “feminista” inadequado). às vezes não temos mais disposição pra sermos chamadas de “radical” o tempo todo. “chatas”, “loucas”, “exageradas”. e nos cansamos de ignorar certas piadas, comentários e olhares em nome de uma convivência ok com algumas pessoas. Isso significa que o feminismo acabou? Está ultrapassado?
É admissível que uma cena que se diga libertária tenha espaços pra violência e abuso baseadas em uma idéia de que alguns corpos estão a serviço de outros? Por que os discursos de liberação sexual não são acompanhados por práticas de libertação de papéis e comportamentos limitantes, exploradores, hierarquizantes, colonizadores?
Ainda estou tentando lidar com meu próprio cansaço. e esse texto é isso mesmo, um amontoado de perguntas que não consigo responder.

Consenso

1.
primeiro vai pedir. depois vai tentar. depois vai forçar. finalmente, vai tomar.
saia preta blusa roxa ou calça preta blusa preta? tênis, tênis confortável pra dançar (mas também correr se eu precisar) perfume brinco brilho gel no cabelo? gel no cabelo, ‘definidor de cachos’.

ele diz que é seu amigo. você pensa que é seu amigo. você age como amiga, não quer ser chata mesmo dizendo não.

barulho suor uma luz branca irritante tontura cerveja! cerveja! cerveja, eu adoro cerveja! ele dança, chega perto, sorridente, displicência, finje desinteresse mas passando a língua na boca daquele jeito nojento você tenta parar de mexer o quadril de um jeito determinado pra ele não entender errado.

ele entende errado. só entende o que quer. não respeita o que você não quer. não te respeita.

mais cerveja! eu adoro cerveja, cerveja me deixa alegre, a música me deixa alegre, dançar me deixa alegre, meu corpo cheio & tão leve cada vez mais alegre cada vez mais perto mais preocupada meio tonta sem noção mas sem vontade, nenhuma vontade de ficar com ele, mas se eu der um beijo nele ele vai embora? elemedeixa quieta? ele vai atrásdeoutra?

não vai. não deixa. ele fica, continua, contra a parede agora você não pode dançar nem respirar direito a língua dele corre como uma mão sufocando um pescoço mas suaboca suorelha, a mão dele é como uma língua pegajosa dentro do seu decote, dentro do decote, decote? por que eu vim de decote?

você bebeu demais, ele também. ele quer vomitar. ele te pede pra ir lá fora com ele, pede ajuda porque tá passando mal. você pode aproveitar pra ir embora, mas se ele tiver mentindo, mas se for só uma desculpa pra ficar longe de olhos além dos seus, o que você vai fazer? ele também usando tênis bom pra correr.

Fazer Limpeza

texto sobre gestão de violência em movimento social, extraído del períodico de Barcelona “Antisistema” número 15, junho de 2008.

No marco do movimiento libertário existe uma tendência unificadora que fortalece a coesão interna de um grupo já suficientemente isolado e rejeitado pelo exterior para que possa por em dúvida sua própria coerência desde dentro. Desta maneira, apesar das múltiplas diferenças ideológicas, as richas entre organizações e as disputas pessoais, sempre será arriscado pôr em dúvida a Correção política de um companheiro sobretudo no que se refere a tratamento desigual ou vexatório às mulheres. No caso das mulheres é diferente já que ao não vir acompanhada sua militância com uma auréola de entrega e heroísmo comparável a dos caras, tampouco sua falta de coerência é um feito grave ao considerarse que é de esperar sua falta de madurez política e sua debilidade ante as adversidades.

Acusar um “militante destacado” de agressão física, sexual ou psicológica a uma mulher (seja ou não sua companheira) supôe, em geral submeter-se a um interrogatório por parte de um entorno que atuará judicialmente, contrapesando a validez e a gravidade dos feitos, assim como os possíveis atenuantes do agressor para sua conduta (atitude e modo de vestir da menina, uso de alcool ou drogas…). A dúvida e a desconfiança será o primeiro com que se encontrará uma companheira ao denunciar públicamente uma situação de abuso, em parte por causa da busca de coesão interna para prevení-la des-membração de um grupo suficientemente ameaçado pelos perigos externos (isolamento social, repressão policial ,… ) mas sobretudo pela desvalorização da palavra da mulher em um movimento altamente masculino e masculinizante e pela percepção de “assuntos privados” que ainda pervive respeito às problemáticas de violência contra as mulheres.

Mas a dúvida sobre se os acontecimentos ocorreram realmente não será a única coisa com que terá que se enfrentar uma mulher que denuncia públicamente, no marco do políticamente correto, uma agressão por parte de um militante ou de um homem do entorno político. As mulheres que militam em organizações, grupos ou centros sociais de cariz libertário ou alternativo se auto-impôem, em muitas ocasiões, uma férrea dureza emocional para poder igualar-se com os homens que dificultará a própria percepção como mulher abusada ou agredida. Uma mulher feminista ou não sexista deve ser uma mulher autônoma e forte, imagem que se contrapôe no imaginário coletivo com a vítima de abusos ou de violência que se percebe como uma mercadoria defeituosa; uma mulher com baixa auto-estima, vulnerável e inclusive com desequilíbrios emocionais ou psicológicos derivados da agressão. Quê mulher feminista gostaria de identificar-se com esses parâmetros? E mais: da onde nasce essa percepção moralizante e vitimista das agressões físicas, psicológicas ou sexuais às mulheres?

Se partimos da base de que as mulheres que devem resolver e combater as agressões de nosso entorno, mediante a solidariedade e o apoio por uma parte e mediante a dureza e a violência por outra, então também devemos nós mesmas refletir sobre a violência e de nossa cumplicidade quanto a algumas condutas ou crenças que podem conduzir a ela.

A confissão por parte de uma mulher feminista OU “não sexista” de ser vítima de abusos, ou ter sido vítima de agressão sexual ou qualquer outra forma de violência genérica, corre o risco de converter-se em um talk-show mórbido e lacrimógeno e, no melhor dos casos, quer dizer, naqueles casos em que a mulher disponha de um grupo de mulheres de apoio, é muito provável que apesar de partir das melhores intenções, se acabe vitimizando à mulher fazendo ela se sentir ainda mais vulnerável. A reflexão, o apoio e a afetuosidade devem ser primordiais ao abordar uma problemática de violência contra uma companheira mas isso não nos livra de ter em conta que nenhuma característica define especialmente as mulheres agredidas, todas e cada uma de nós estamos em perigo, uma de nós está em perigo, partir de essa premissa nos afasta do vitimismo.

Vamos lá amigal! Quê você esperava? Isso podia acontecer com você, vamos combater juntAs!

O mito do “isso aqui não acontece” que se faz evidente na dúvida ante a denúncia pública de uma mulher vítima de abusos ou agressão por parte de um homem do entorno
político, nega a realidade e prejudica as mulheres. A ninguém lhes ocorreria duvidar de um companheiro que afirma ter sido vítima de violência policial ou de ter sofrido uma agressão por parte de um grupo fascista e muito menos se exigiria a este explicar detalhadamente como ocorreram os acontecimentos de tortura para verificar sua autenticidade. Porém ante uma agressão sexista a uma mulher muitos homens e mulheres se dotam da legitimidade para duvidar o interrogar a agredida e inclusive minimizar os fatos ou relegá-los à categoría de “assunto privado”. Posto que o pertencer a um movimento político não é garantia nem de pureza nem de retitude moral ou política ao não existir mais condição de pertinência que a própria iniciativa e posto que os assuntos relacionados com a luta das mulheres são minimizados, ridicuralizados ou diretamente rejeitados, podemos supôr que em nosso entorno hajam muitos homens com escasso compromisso com os valores anti-patriarcais e que alguns deles podem exercer como agressores ante um entorno que justificaria ou minimizaria sua ação. A crença de que as agressões às mulheres sucedem mais além de nosso entorno político, entorno que se mostra desde esta perspectiva, limpo e distante dos valores morais patriarcais, nos deixa indefesas ao negar uma realidade que se impôe de maneira brutal uma vez atrás da outra.

Por outro lado, alguns feminismos estiveram alimentando a idéia de que as mulheres devem permanecer distantes e protegidas do risco que supôe viver em um corpo sexuado de mulher e que deve ser a proteção estatal, a compreensão institucional e as medidas positivas as responsáveis de salvaguardar nossa integridade. Esta crença que se corresponde com um feminismo institucional e anti-revolucionário impregnando as crenças de muitos outros movimentos de mulheres anti-sexistas que se escandalizam ante os sucessos de violência de gênero ao comprovar que a via dialogada, mixta e apaziguadora não provocou mudança alguma nos homens de nosso entorno político ou no melhor dos casos há gerado um espaço de tolerância restrita aos preceitos feministas. O feminismo deve esvaziar-se da correção casposa que vem arrastando há décadas, as mulheres feministas devemos afastar-nos de uma vez por todas da comodidade da correção política e as pretensões de “intocabilidade” e aceitar que enquanto isto não mude (e não parece que isso vá ocorrer tão breve) em qualquer espaço público ou privado, político ou corrente corremos um risco. Agora, esse risco não deve perceber-se desde o medo e a aceitação passiva senão que desde o combate; assumir que o risco forma parte intrínseca de nossa existência como mulheres é aprender a combatê-lo e sobretudo é não derrubar-se quando o risco se converte em agressão: assim é a guerra!

A percepção da luta anti-patriarcal desde uma perspectiva mixta elude o componente do risco. Os ambientes mixtos geram um falso ambiente conciliador o qual faz parecer que os homens compartem nossas mesmas estratégias e finalidades, des-legitimando o uso da violência por parte das mulheres ao considerar que esta é uma medida extremista quando a mediação parece dar bons resultados. Bons resultados que desvanecem quando as exigências por parte das mulheres aumentam e quando estas já não estão dispostas a viver ou militar sob o jugo masculino.

Desta maneira, quando surgem iniciativas separatistas e excludentes que defendem o uso da violência contra os homens que se proclamem em guerra aberta contra as mulheres, o resto não será capaz de unir-se por cumplicidade ideológica senão que o farão por solidariedade de gênero. Ou seja, a tendência marjoritariamente masculina
será a de outros homens fazendo filas em torno a outros homens (incluindo em torno aos agressores) antes de mostrarem-se solidários com as mulheres, como exigiria uma lógica coerência, já que isso colocaria em entredito sua masculinidade e seria uma falta grave de incumprimento da normativa hegemônica de gênero segundo a qual, a irmandade masculina deve permanecer unida.

Assumindo os riscos intrínsecos de nossa própria condição o logro de nossa autonomia virá condicionado a nossa capacidade de combatê-los. O uso da violência e a prática agressiva será primordial para nos defender ante uma agressão mas a des-vitimização e des-categorização das mulheres agredidas também vai supôr uma prática libertadora, ao minimizar o poder e o domínio masculino e nos situar em igualdade de forças combativas. Supôr por exemplo que uma mulher que tenha sido agredida não poderá superar este fato traumático, ou ainda que este ocorrido condicionará suas atividades, será mais frágil ou vulnerável, dota ao homem agressor de um poder extra-limitado e ao mesmo tempo, infantiliza a mulher agredida. Razão pela qual muitas mulheres omitem o fato de terem sido vítimas de agressões ao não querer apresentar-se perante as demais deste modo – ocorrência que invisibiliza muitos casos de violência.

Quantas de nós conhecemos a homens com altas doses de sexismo, homens de tratamento pejorativo com relação às mulheres, homens que consideram as mulheres como objetos e que em troca gozam de uma consideração e de uma valorização excelente por parte do restante? Um homem prototípicamente revolucionário, um cretino e caricaturesco macho enérgico e ousado com capuz negro e pedra na mão que adora os ambientes mixtos que lhe permitem pavonear-se e mostrar seus dotes mas que detesta os grupos de mulheres que o excluem ao mesmo tempo que prescindem de seus encantos de sedutor. Este ou qualquer outro prototipo que nos venha à mente, capaz de criticar a uma mulher ou considerá-la menos inteligente por vestir-se demasiadamente feminina, e inclusive mulheres que reproduzem estes mesmos padrões, são comuns em nossos entornos políticos.

A surpresa e desconcerto que geram os episódios de violência contra as mulheres em nossos entornos politizados se nutrem do desconhecimento e da hipocrisia. A negação, a aceitação e inclusive a falta de contundência nas respostas ante os mais mínimos indícios são covardes cúmplices da violência contra as mulheres, e neste caso, em todas nós há algo que em maior ou menor medida cheira a podridão.

Façamos limpeza!

Laura

 

Como a polícia reforça a cultura de estupro

por stavvers

texto que fala papel que a polícia joga na legitimação da cultura de estupro

+Aviso de acionadores: esta postagem discute estupro, cultura de estupro e abuso de poder.+
A polícia, como sabemos, tem uma terrível e larga história com relação ao estupro. Alegações são muitas vezes não tomadas a sério e, em algumas situações, a polícia ativamente fabrica papéis para fazer os casos sumirem. É dificilmente uma surpresa o fato de que a vasta maioria dos casos de estupro não sejam reportados.

A mulher que foi desapontada pela polícia depois de ter encontrado a coragem para reportar seu estupro sabe isso muito bem, e três delas estão processando o funcionário pelo tratamento que receberam. Duas requerentes foram atacadas pelo estuprador serial John Worboys que poderia ter sido capturado anteriormente se a polícia tivesse escutado às mulheres.

A polícia não escuta. Porém, o oposto também é verdade

“Isso soa nos meus ouvidos ainda, o oficial dizendo ‘um taxista não poderia fazer isso'” ela (uma sobrevivente) diz.

“Isso parecia como se eles não quisessem saber. Em meus sonhos, eu gritava ‘por que você não acredita em mim?'”.
Meu coração dói por essa mulher. A esmagadora descrença em seu relato, depois de que uma violação horrificante ocorreu.

O comportamento do policial aqui é uma das manifestações mais declaradas da cultura de estupro: não acreditar na sobrevivente. Talvez o oficial tenha atuado de boa fé, não querendo maliciosamente jogar fora um caso de estupro (como muitos tiveram). Talvez o oficial apenas absorveu algumas frases de estoque e atitudes da cultura de estupro.

Isso não faz diferença. O policial possui uma posição única de poder: de última, eles decidem se eles vão se incomodar em ajudar uma sobrevivente. Cada momento da lógica da cultura de estupro está fracassando para a sobrevivente que pediu socorro. Cada investigação capenga e mal feita está falhando com a sobrevivente. Cada documento fraudulento jogado no caso está falhando com a sobrevivente. Estas sobreviventes escolheram perseguir um certo curso de ação, ativamente engajando-se com o estado para pedir o auxílio deste.

E eles estão falhando com esta.
Quem se beneficia destes arranjamentos? Estupradores. Cada vez que isso ocorre, as coisas se tornam um pouco mais fáceis pros estupradores. Elessabem que podem se sair bem dessa. Eles sabem que as chances estão a seu favor porque o estado os vai ajudar nessa.

A cultura de estupro apenas sempre beneficia estupradores, e a polícia está usando seu poder para reforçar isso.

Entre 2008 e 2012, houveram 56 casos documentados de estupro, agressão sexual e assédio. Em muitos destes casos, as reclamações foram encobertas e a sobrevivente desacreditada. Em um número assustadoramente largo dos casos, nenhuma acusação criminal foi sequer trazida. É duramente surpreendente, então, que a polícia possua um interesse implícito em manter a cultura de estupro em uma gritante boa saúde: eles estão se beneficiando disso.
Eu sou totalmente crítica da noção de que o poder que a polícia possui possa ser usado para o bem, para ajudar a superar a cultura de estupro desde cima. No melhor dos casos, a polícia pode apenas ser tão progressista quanto a sociedade que a gerou, então eles estarão ainda pisando na cultura de estupro. Isso sem calcular os efeitos psicológicos que tornam todos policiais em bastardos.

Há um vasto caminho para a melhora depois da revolução, no entanto. Eles podem, muito facilmente, parar de tão ativamente reforçar a cultura de estupro começando por uma posição de sempre acreditar na sobrevivente, mesmo que seja seu parceiro o acusado. Eles podem, muito facilmente, na verdade se importar em investigar os casos de estupro apropriadamente, respeitando a coragem da sobrevivente de ter seguido adiante com a denúncia. Melhoras são possíveis. Eu desejaria ser menos pessimista sobre o desejo das forças policiais em tentá-lo.

https://stavvers.wordpress.com/2012/07/21/how-the-police-enforce-rape-culture/

Aliado Checklist

“texto que funciona como checklist para quem deseje ser aliad*. Me parece que originalmente em inglês está destinado a homens que querem ser aliados de feministas, mas achei que alguns tópicos servem para pensar o ser aliad* em geral… tradução por chuy”.

***


Ser um aliado – não é uma identidade…

1- Você se precipita em criticar a maneira como outr*s respondem á sua opressão ao invés de reconhecer seus problemas?

2- Com que frequência você e seus amigos verificam entre cada um se estão acolhendo cultura patriarcal?

3- Você pensa sobre como seu privilégio impacta tudo o que você faz, todos os dias?

4- Você já foi a um encontro, reunião ou outra conversa em grupo sem dizer nada?

5- Você escuta a outras pessoas? O que escutar significa para você? O que escutar significa para as outras pessoas?

6- Quando você está conversando você percebe se está passando mais tempo explicando do que realmente conversando?

7- Você consistentemente levanta a mão imediatamente em reuniões sem deixar espaço para xs menos assertiv*s ou aquel*s precisando de mais tempo para se voluntariar para participar?

8- Quando você começa uma conversa você estabelece parâmetros como até onde a conversa vai e e quando outr*s participam?

9- Você declara o fim de uma conversa assumindo que outr*s também estão satisfeit*s com esse resultado?

10- Quando você participa em conversas e outras situações você assume que outr*s são menos inteligentes/informad*s do que você?

11- Você já descontou/desencorajou a(s) experiência(s) de alguém por mencionar fontes acadêmicas no assunto como “mais relevantes”?

12- Você reconhece que invisibilizar [“insira grupo oprimido aqui”] minimiza a experiência e luta do grupo oprimido?

13- Você reconhece que invisibilizar [“insira grupo oprimido aqui”] pode ser uma tentativa de minimizar seu papel em tal opressão?

14- Em situações de ação você toma o papel de líder e protetor?

15- Você tende a não criar amizades com mulheres que sejam realmente sinceras?

16- Você assume que problemas ditos por mulheres sobre homens são baseados em desavenças pessoais ao invés da questão em si?

17- Quando alguém está criticando outro sexo você provavelmente vai ficar do lado do cara?

18- Quando um amigo seu é criticado por comportamento patriarcal você faz desculpas para esse comportamento?

19- Você considera sentimentos expressados por um homem mais seriamente do que a mulher que disse a mesma coisa minutos antes?

20- Quando pessoas desafiam suas palavras e ações, você imediatamente responde de maneira defensiva sem considerar a validez da crítica das pessoas?

21- Você assume que caras identificados como libertários* são menos suscetíveis a serem perpetuadores de abuso sexual?

22- Você já pensou como você e sua comunidade iriam lidar com alguém na sua comunidade que sobreviveu a um abuso sexual?

23- Você já pensou como você e sua comunidade iriam lidar com alguém na sua comunidade que perpetua abuso sexual?

24- Você leva em conta como certas palavras e ações podem ser impactante a outr*s?

25- Você expressa verbalmente consentimento em todos os níveis de atividade sexual antes de proceder?

26- Você expressa verbalmente consentimento todas as vezes independente do histórico sexual passado?

27- Você espera até que você ou outr*s estejam intoxicad*s para começar interações íntimas e sexuais?

28- Com que frequência você pensa sobre suas próprias violações de consentimento?

29- Você sabe que é uma violação de consentimento se alguém “aceita” depois de pressiona-l*?
(pressão pode vir na forma de continuar pedindo repetidamente apesar de receber respostas negativas ou passivas, ou de fazer alguém se sentir culpadx de não participar)

30- Você assume que porque você é um homem radical você “é feminista”?

31- Você busca amizades com mulheres por quem você se sente atraído com a possibilidade de que algo mais poderia resultar disso?

32- Você busca amizades com mulheres por quem você se sente atraído com o objetivo de que algo mais poderia resultar disso?

33- Você faz amizades com mulheres por quem você não sente atração?

34- Você faz amizades com mulheres que você acredita que nunca sentirão atração por você?

35- Você leva em consideração as identificações das pessoas e as necessidades específicas que vem junto a elas em suas interações com elas?

36- Você pensa sobre como seu privilégio impacta tudo o que você faz, todos os dias?

37- Você reconhece que as diferenças de gênero e privilégios continuarão a desempenhar um papel na nossa insurreição?

38- Você acha que pensar sobre privilégio é uma luxúria ou é menos importante do que quebrar o Estado?

39- Você conhece as melhores maneiras para grupos oprimidos responder á sua opressão?

40- Você percebe que ás vezes você pode ser incapaz de compreender a experiência de alguém? Você pode aceitar isso e proceder com respeito?

projeto: violência nas relações lésbicas

‘sobre:viventes’: rompendo o silêncio sobre relações de maltrato e abuso entre lésbicas

 
A convocatória se destina a todas as lésbicas que desejem romper o silêncio ao falar, de preferência em primeira pessoa, sobre o tema e começar a pensar, discutir e visibilizar a questão da violência nas nossas comunidades e vínculos lésbicos. Esse exercício é um movimento afirmativo que pode ser recebido como o início de um processo de cura pessoal e coletiva. Ao compartilharmos, ainda que de maneira anônima e indireta, experiências pessoais, além de diminuirmos nosso isolamento, iniciamos a nossa recuperação.Utilizaremos o fanzine como espaço protegido, auto-gerido, livre de julgamento e que garante o anonimato, destinado a acolher relatos escritos (sempre que possível em primeira pessoa) sobre nossas historias focalizando as relações íntimas que tivemos nas quais vivenciamos violência sexual, maltrato emocional, físico e abuso. São encorajadas também as iniciativas que abrigam relatos de quando agimos como perpetradoras dessas dinâmicas, para que pensemos as modificações que podemos fazer sobre nossas condutas.Cuidar de nossas comunidades e curá-las da violência implica entender suas origens e relações com as heranças da cultura de abuso e almejar modificar comportamentos assumindo praticas cotidianas e intimas que desconstruam a mesma. Por isso incentivamos a todas que busquemos, na medida do possível, formas e termos não heterocentrados para nos referirmos às nossas herstórias e que tentemos preservar esse espaço como “um lugar de fora” (elsewhere), tão marginal quanto possível em relação aos aparelhos de captura do sistema heteronormativo.

Envie seu relato para: sobre.viventes@riseup.net

Aconselhamos também o uso de e-mail seguro para envio de propostas e asseguramos que será mantido o anonimato de todas as pessoas citadas nos relatos.

Prazo para envío de escritos: por hora em aberto

Porque a crítica à Marcha das Vadias não é puritanismo

Segue outro texto sobre a Marcha das Vadias. O texto trata sobre um dos argumentos usados por algumas das pessoas que não compreendem as verdadeiras razões da crítica à Marcha, ou seja é uma resposta a esta crítica.Obviamente nem todas as pessoas engajadas na Marcha usam deste argumento.

A apropriação do termo Vadia – utilizada pela Marcha das Vadias – é criticada como estratégia feminista por muitas de nós, provocando um longo debate. Eu compartilho da opinião de que a apropriação do termo não trará mudanças, que pelo contrário o termo Vadia contribui para nos objetificar e subjugar, que não ajuda como estratégia contra o estupro, e que ignora a realidade de muitas de nós, principalmente das mulheres e crianças prostituídas, embora pareça se solidarizar.

Neste debate surgiu o argumento de que seria por conservadorismo e por uma sexualidade reprimida que se critica a apropriação do termo. Em contraponto, se passou a assumir como uma espécie de “vantagem” inerente às pessoas que são a favor da apropriação da palavra vadia, como sendo bem resolvidas* e/ou sexualmente ativas.

A primeira coisa que me salta aos olhos é que sexualidade reprimida não é um defeito, é um problema, e como tal não serve como acusação nem ofensa. Dizer que as pessoas são muito reprimidas como crítica a este comportamento, é culpá-las pelo que lhes foi imposto. Já, alertar para isso e incentivar que as pessoas lutem contra esta repressão é algo construtivo. Além disso, não são todas as pessoas reprimidas que são como os estereótipos que se tem de pessoas quadradas e conservadoras. Não são também todas as pessoas que não tem sexualidade ativa que são de fato reprimidas, elas podem ter outros motivos para não serem ativas, e nem é verdade que as pessoas ativas são necessariamente felizes sexualmente.

Este tipo de afirmação parte do ponto de que sexo é algo bom sempre. Sexo nem sempre é bom, porque depende da situação, do momento, com quem, e do prazer. É uma afirmação também que ignora completamente as pessoas assexuais – que não sentem desejo sexual. Pode ser difícil da gente pensar assim num primeiro momento, já que existe uma forte repressão sexual e que somos impelidxs a pensar que a luta por uma sexualidade livre significa fazermos sexo quando bem entendermos com quem bem quisermos, quando na verdade sexualidade livre significa além disso é claro, que nossas opções sexuais não sejam motivos para sermos perseguidxs, e tampouco que as pessoas sejam perseguidas ou inferiorizadas quando não são sexualmente ativas, por opção ou não.

Apropriar-se do termo vadia não é sinônimo de uma sexualidade bem resolvida. Vai muito além da sexualidade de uma pessoa (embora possa fazer parte) as opções e táticas políticas que ela toma para si. Eu diria que optar por não usar o termo vadia tem muito mais a ver com uma preocupação quanto a sexualidade mal resolvida da sociedade e todas as implicações disso (estupro, controle, objetificação…) do que com a própria sexualidade (ainda que esta seja também mal resolvida). E embora uma mulher possa adotar o termo vadia como tática política, não significa que uma mulher que se apropria do termo vadia, se torna automaticamente politizada e liberta.

Ir para a Marcha usando “roupas de vadia” e se apropriar do termo vadia, passaram a ser considerados símbolos de autonomia e de se estar bem resolvida, naturalmente que ao criticar essas formas de ação ficamos vulneráveis para sermos consideradas mulheres fechadas, conservadoras. É bem fácil de entender o receio que muitas podem sentir em questionar a Marcha, já que nos exclui automaticamente do círculo de vanguarda.

Não podemos ignorar que existe uma pressão também na mulher para provar sua feminilidade, sexualidade e sua capacidade de fêmea. A nossa sexualidade é controlada através de repressão e também de cobranças das nossas “capacidades e poderes” sexuais. É consenso de que o termo vadia é usado quando querem nos xingar, mas não é também usado para designar mulher boa de cama no imaginário machista? Estaríamos nós inconscientemente atreladas á opinião dos outrxs quanto às nossas capacidades de sedução, porque de certa forma queremos ser aceitas, estar incluídas, mesmo que numa sociedade que nos machuca? Não estou dizendo que este sentimento é o que leva à existência da Marcha, longe disso, estou apenas colocando que este sentimento pode estar presente dificultando desassociar sexualidade com participação na Marcha (que não se trata de sexualidade mas de estupro), podendo também gerar constrangimento para quem a critica, por ter sua sexualidade questionada.

Assim as mulheres questionadoras da simbologia adotada pela Marcha das Vadias são taxadas de conservadoras e de “mal resolvidas”. Pensem bem, isso não é muito diferente de dizer que feminista é mal amada,que falta um homem no seu corpo.

*O termo bem resolvida(o) também está atrelado as especificidades no contexto patriarcal, nem sempre significa algo positivo, as vezes parece até dar uma idéia contrária, de conformidade. Ademais é bastante difícil identificar conceitos como esse, numa sociedade patriarcal onde a sexualidade é um tabu. Isso passa também pela questão do consentimento, pois uma pessoa bem resolvida pode não estar atenta aos desejos dx(s) sux(s) parceirx(s) e numa outra escala, às vontades das pessoas a quem ela tenta suas investidas.

enila dor.
Outubro 2012

http://anarcopunk.org/acaoantisexista/texto/porque-a-critica-a-marcha-das-vadias-nao-e-puritanismo/

A Prostituição é Violência: Entrevista com Sonia Sánchez

A PROSTITUIÇÃO é VIOLENCIA

entrevista a Sonia Sánchez
baixe o artigo “a prostituição é violência” em pdf

Sonia Sánchez vem da Bolivia, lá esteve dando oficinas e apresentando o livro “Ninguna Mujer Nace para Puta” (traduzivel como “Nenhuma mulher nasce para puta”) que escreveu junto a Maria Galindo de Mujeres Creando. O encontro tardou, mas quando finalmente se deu, a história de Sonia e suas reflexões surgiram com uma claridade que a cronista decidiu que falem por elas mesmas.

“Vim a Buenos Aires, desde o Chaco, para trabalhar como empregada doméstica, com quase 20 anos. Sem conhecer absolutamente nada, assim que os patrões foram me esperar em Retiro, e aí me levaram a Floresta (bairro de Buenos Aires). Estive quase 8 meses, manejava a casa, o subsolo, primeiro e segundo andar; muito grande e era eu para tudo. Me levantava às 5:30 da manhã e ia dormir às 1:30 da madrugada. Tinha que preparar o café da manhã para meus patrões, dar banho nas crianças, levar eles à escola, e depois limpar toda a casa.

A questão é que eu sempre gostei de ler, deixei de estudar para trabalhar. Nos domingos, que eram os únicos dias livres que eu tinha, eu lia o jornal. Lia tudo, até os classificados e me dei conta que não chegava a cobrar nem a quarta parte do salário que anunciavam ali. Deixei passar assim um mês. Um dia me sento com meus patrões e lhes digo ‘Olha, eu preciso que me aumentem porque estou mandando dinheiro a Chaco, e além disso eu leio e não estão me pagando o que me corresponde.’ Eles muito tranquilamente me disseram: ‘Olha, se quiser esta vai ser sua remuneração, nós não vamos aumentar’. Acreditavam que eu ia seguir aceitando porque não tinha nenhum familiar aqui, nenhum conhecido, e a onde iria. Então lhes disse que buscassem a alguém porque eu me iria. Não sabia a onde, cada vez que saía ia com uma livretinha anotando porque não conhecia nada. Logo em seguida, conseguiram outra pessoa e eu me fui. O mês inteiro de pagamento me alcançou para quinze dias em um hotel de quinta, e deixei alguma coisa de dinheiro para comprar o jornal. Aí me dei conta que não tinha nenhuma referência para conseguir trabalho. Podia falar muito bem, podia pedir que me coloquem a prova, cuidar a senhoras, cuidar crianças, limpar pratos. Mas ninguém me deu trabalho porque não tinha referências. Terminei dormindo em Praça Once. Estive uns cinco meses dormindo aí. De dia dormia no trem de Once a Moreno; e de noite, o monumento ainda não estava cercado por grades, e me acomodava em um cantinho mas passava acordada pelo medo. Toquei portas por todos lados, fui ao exército da salvação, porque queria me lavar para seguir buscando trabalho. A marginação é uma cadeia. Tinha que ter um peso, dois pesos, para tomar banho ou dormir aí. Eu lhes dizia ‘estou dormindo em Praça Once, não me podes pedir um peso porque eu nã tenho’. Recolhi a comida dos tachos de lixo, mas não dava mais. Não dava mais a fome, o medo que sentia, de não ter um teto e poder descansar bem. E além disso, a humilhação que me faziam passar as mulheres, que ainda hoje seguem limpando os banheiros da estação, porque as vezes me encostava no sofá e não me deixavam dormir. Estava muito desesperada. Nesses quase cinco meses via a essas mulheres, mas eu sempre estive na minha nuvem. Venho de uma família muito pobre, mas minha mãe sempre nos fez estudar. Ela limpava uma casa, esfregava em outra, e nós o único que faziamos era estudar. Eu estava no meu mundo de estudante, não sabia o que era a prostituição, não sabia o que era uma travesti. Não conhecia nada deste mundo. Eu o que via eram essas mulheres, aí paradas que se arrumavam, iam e vinham, mas não sabia nada.

Um dia me aproximei e disse a uma delas ‘olha, eu me chamo Sonia Sánchez, estou dormindo na praça, não posso mais’. O único que tinha era uma carteira e o único que salvei foi meu documento. Lembro de seu rosto, era uma mulher de uns quase 50 anos, e me disse ‘olha, eu faço isso, você é jovem’, claro eu tinha apenas 21 anos. ‘Ollha, eu te dou uma grana, você anda a comprar um shampoo, um creme condicionador e vem; apenas vão acercar-se a você’. E depois não lembro bem, foi minha maneira de defender-me. Sei que fui ao chuveiro, me arrumei, me banhei, me pus uma roupa bonita. E aí fui ao primeiro passo, como se diz, não lembro quanto durou, se foram quinze minutos, três horas ou dez horas. Essa foi a segunda relação que tive. Deve ser tão traumática que por isso eu não a lembro. Depois não sei quantas horas posso ter estado debaixo do chuveiro. Quando volto em mim de novo, sei que tenho que voltar a fazer isso para ter um teto no dia seguinte.

Fui prostituída cinco anos da minha vida. Nunca o vivi como um trabalho, sempre vivi como uma violência. E isso posso discutí-lo com quem seja. A prostituição não é um trabalho, é violência que se exerce contra o corpo das mulheres, além disso é violência psíquica. É terrível. O corpo pode perder a memória mas aqui na cabeça fica. Me pergunto se ser estuprada é trabalho, se ser manuseada é trabalho, se ser violentada sistematicamente é trabalho. A cada quinze minutos, a cada hora; ISSO é trabalho? Porque isso é a prostituição. Ser esfomeada é trabalho? Isso não é trabalho. É violência. A prostituição tem um único idioma: violência.”

MULHERES EM SITUAÇÃO DE PROSTITUIÇÃO

Já havia deixado a prostituição depois de quatro anos. Volto ao Chaco, me compro uma casa, ponho um negócio de roupa. Em um mês me roubam cinco vezes e não logro me reerguer. Volto à rua humano más e aí se completam cinco para poder pagar advogados e todas essas coisas. Aí é quando fico para viver em Buenos Aires. Conhecia às mulheres, aos calabouços da Comissaria 50, ou do asilo San Miguel onde estavamos 21 dias detidas. E sempre me insistiam ‘Sonia você tem que vir à organização’. Um dia fui e comecei a aprender o que era a organização, quer era AMMAR, aprendi alguns direitos, comecei a conhecer o que era a CTA1 por dentro.
E depois, foram passando coisas muito fortes, e em 2000 começaram a meter a gente nessa coisa de “trabalho sexual”.
Nós as putas somos absolutamente mentira, não há uma parte da puta que seja verdade. A puta dorme em um colchão de mentiras, todo o tempo, porque senão não poderia suportar nada. E compra todos os versos. Eu comprei o de trabalhadora sexual quando estava dentro da CTA. Me apresentava assim e nunca me pus a pensar por quê. Só que a mim me aliviava, eu estava maquiando uma realidade. Nós mesmas jamás discutimos se isso era trabalho ou não. Para as pessoas da CTA, ‘Você É TRABALHADORA, você é COMPANHEIRA’.

Quando armam uma reunião para fazer o sindicato legal, estava tudo preparado, até de Genaro2 nos estava esperando, faltava a nossa firma. E aí entramos em pânico, nunca o havíamos discutido entre as putas. Não posso discutir se a prostituição é trabalho ou não com um sindicalista, quando o cara é um prostituinte3.Começamos a ver como discutir com as mulheres da rua. E quando discute com as putas da rua, todas nos pedem trabalho. Te estão dizendo que isso não é trabalho. Quando vão buscar sus filhes na escola, não dizem ‘sou trabalhadora sexual’, dizem ‘cuido a crianças, cuido a idos*s, sou uma mulher desocupada’.

Então por quê sindicalizar? Por quê legalizar, ou branquear4 algo quando vai seguir sendo tapada? Lhes vai fazer jogo ao governo, a três ou quatro proxenetas que viajam pelo mundo com esse verso e que não param nunca em uma esquina e vivem das que siguem na rua. Isso de trabalho sexual é um discurso fracassado.

Com essa postura no ano 2002 me expulsaram da CTA. Era um lugar onde as putas não tinhamos decisão própria. Aí armamos AMMAR Capital. Começamos sozinhas a trabalhar, as reuniões as fazíamos na cozinha da minha casa, e depois a Igreja Metodista do bairro de Flores nos deu um lugar para compartir a caixa de mercadoria. Era em 2001, todas passávamos muita fome. Estavamos sentadas no solo e a pergunta era ‘Quê somos?, quem somos? A onde vamos?’. Nos acabavam de expulsar de um espaço ‘progressista’ por não querer que nos imponham uma identidade. Quê somos se não somos trabalhadoras sexuais? Não podíamos pronunciar a palavra prostituta. Nos queimava. Mas antes que isso, eu perguntava, quê somos? O já havíamos nascido prostitutas? Não. Uma dizia mãe. Não, antes que isso somos mulheres. Foi toda uma tarde até que pudemos dizer a palavra mulher”.

Então decidimos apresentar-nos como mulheres em situação de prostituição.

Em 2006 eu renunciei a AMMAR Capital. Por que temos que distribuir camisinhas? Nos vendem o discurso de que é para que as putas se cuidem. É mentira, é para que o prostituinte não se enferme, quando ele é o que infecta a você. Que passava quando dizíamos que a prostituição não é trabalho? Queremos trabalho. Não temos educação, queremos educação. Pedíamos essas duas coisas e o governo nos respondia com 7000 camisinhas e 240 cestas básicas por mês.

Queríamos micro-empreendimentos, a puta não tem a cultura do trabalho, tem a cultura da exploração. Havíam anotadas 50 e nos dava para 10. Aprendiam a fazer coisas, mas para vender onde. Se as vendiam na rua, te perseguíam como aos vendedores ambulantes. Tínhamos um espaço que se chamava ‘espaço mulher’, era todas as quartas e debatíamos sobre o tema da violência intra-familiar e institucional, chegamos a nomear ao marido como cafetão, a dizer que éramos violadas quando não tinhamos vontade de fazer sexo. Três cafetões participaram de algumas reuniões porque as mulheres os traziam para que escutassem. Foi um espaço muito forte, muito enriquecedor, que se acabou quando caíram duas de nossas companheiras, Marcela Sanagua y Carmen lfrán, presas pela legislatura.

MUJERES CREANDO

Em 2006, María Galindo faz uma mostra, “Nenhuma Mulher Nasce para Puta” (Ninguna Mujer Nace para Puta), e me convida. Trazemos essa mostra a Argentina, ao Centro Cultural Borges, e por aí passaram mais de 5000 pessoas. Aí começamos a desenhar as fronteiras do Patriarcado para que existam as boas e as más. A iniciativa nasceu desde a puta. Aí tivemos voz própria desde um lugar não permitido. Não era a rua, nem o bordel. E aí operaram os parasitas, os que vêm a ajudar mas que em realidade te expropriam a sua luta. Operaram no pior de nós, termina a mostra, e AMMAR com uma ruptura. Para mim a Organização tinha sentido para pensar-nos e pensar, correr-nos de lugar. Diga trabalho ou diga “situação de prostituição”. Eu não me organizei para seguir estando presa.

Os guetos são um fracasso. A puta tem um roteiro oficial que é o da AIDS, IPS5 e camisinha. A puta discute sobre economia, política ou educação? Está com a goela cheia de camisinhas! Seus interlocutores são outras putas e o cafetão. É um mundo muito pobre.

Em troca se você se organiza com outras mulheres teu mundo cresce, se faz muito mais rica a discussão.

Agora estou em Lavaca que é uma cooperativa de jornalistas, embora não sou jornalista me abriram esse espaço. Formamos um grupo que se chama Las Locas. É uma palavra que nos dizem às mulheres para desqualificar-nos. E desde a loucura você pode criar. Há jornalistas, há uma puta, tem profesoras, uma estudante, diversos mundos de mulheres que não temos medo de dizer o que sentimos, de fazer um escrache e de sustentar um debate político sobre nós mesmas nessa sociedade. Começamos este ano em um Congresso de HIV AIDS de America Latina e Caribe. O organizaram as trabalhadoras sexuais da CTA e vieram de Brasil e outros países, muito dinheiro. Cobravam 250 dólares para entrar.

Fizemos um panfleto que dizia “enquanto vocês falam as putas seguem se infectando”. E disso não falam. A camisinha que te dão o saca o prostituinte6 com 5 pesos mais. Te prostitui a fome por 15 pesos, o prostituinte te dá 20 mas tira a camisinha. Com a fome não há negociação possível. Devemos discutir isso, mas não entre as putas, não se pode mais meter mais culpa a essas mulheres. Essa mulher que não usou a camisinha, não vem ao outro dia dizer ‘olha eu não usei’porque lhe dá vergonha, porque no dia anterior e no anterior e no anterior te vêm escutando como ao papagaio.

Tem que discutir com o Ministério da Saúde, com as ONGs porque isso não serve.
Hoje ao SIDA custa 5 pesos para entrar na sua vida. Não se discute ao fundo o tema da prostituição. Se fala na zona vermelha, das travestis, das putas; mas nunca do prostituinte7.Ao que consome, ao homem que busca nunca se o coloca em questão. Nem sequer às organizações de putas. O cafetão, a polícia e o prostituinte estão os três no mesmo nível. É uma cadeia de exploração. Isso as organizações de putas não o questionam. E tampouco questionam o lugar das mulheres nesta sociedade, que eu não chamo de patriarcal, que eu chamo de Estado Proxeneta. O lugar sexual nosso como objetos sexuais, por isso digo todas temos cara de putas. Toquemos mais a fundo, toquemos o corpo, toquemos a tudo isso.

1 Sigla para Central de Trabalhadores Argentinos, uma central sindical (seria equivalente a CUT no Brasil, Central Única d*s
Trabalhador*s).

2 Prostituinte aqui seria a tradução feita para designar aquele que prostitui. Segundo a compreensão abolicionista, o termo ‘cliente’ é uma maneira de naturalizar essa relação social. A pessoa que se beneficia do uso do corpo de uma pessoa que é
prostituída para sua própria satisfação está prostituindo essa pessoa e não ‘consumindo’, a existência da demanda possibilita que exista a exploração sexual chamada socialmente de ‘prostituição’.

aqui se refere a ‘trabalhar em branco’, ou seja ter carteira assinada. O contrário seria na argentina, ’trabalhar em

negro’, ou seja, em situação ilegal e não reconhecida, sem direitos garantidos como seguro saúde ou desemprego.

4 O ‘cliente’, no caso.

5 Novamente, nunca custa lembrar, o tal cliente de prostituição ou explorador sexual com dinheiro