Cárceres e Mulheres: Carta de Olga Ikonomidou

Cárceres e mulheres: Carta de Olga Ikonomidou, Membra da O.R. C.C.F.

*A seguinte carta foi a contribuição de Olga Ikonomidou às jornadas “Mulheres frente ao encerro” realizadas de 10 a 11 de junho na casa ocupada Patisson 61&Skaramaga em Atenas.

Recordamos que a companheira Olga foi detida no 14 de março de 2011 em Volos junto a outros 4 companheir*s e logo assumiu o pertencimento à Conspiração das Células de Fogo.

Carta de Olga Ikonomidou

Em 19 de março em um jeep de EKAM (Unidade Especial Repressiva Antiterrorista) acopmpanhado por três carros patrulhas se para frente a uma enorme porta giratória de ferro. Um guarda pede os papéis. Tudo em ordem e… a porta está se abrindo. Enquanto que se vai fechando por trás de nós, um outro, cercado mundo aparece ante meus olhos. É a cárcere Eleonas de Thiva.

Saio de jipe acompanhada por duas mulheres da Seção Anti-terrorista que durante os quatro últimos dias cumpriam, com grande mérito, papel de minhas governantas. Precisaram de um par de minutos de espera para entregar-me aos novos tutores de minha vida. Durante esses poucos minutos escutei delas comentários no estilo “Que lindo está por aqui… bem mantido o edifício”. Pensei em me despedir-me delas dizendo “Se você gosta tanto, venha ficar aqui…”. Naturalmente, para um visitante, somente a idéia de que se pudesse ficar em qualquer cárcere o assusta, somente tal idéia faz às pessoas, e até aos infra-humanos, calarem a sua boca e simplesmente irem-se. A cárcere de mulheres de Thiva é uma recém construída monstruosidade progressista com retangulares e bifurcados corredores, câmeras de vigilância que cobrem a cada esquina e não deixam nenhum lugar “cego”, carcereiros mulheres e homens, portas automáticas com grades a cada 10 metros, pátios de cimento vazios e mais pequenos que o rancho de basquete, rodeados por muros que terminam com arame farpado. Atrás destes muros há um espaço de segurança que chega até o exterior e te separa da liberdade. Desde umas casinhas elevadas por cima dos guardas estão vigilando quase 24 horas ao dia para se talvez alguma encontre um buraco por onde escapar.

Um jardim zoológico pequeno e cercado se encontra entre a porta exterior a entrada principal da prisão. Não há acesso nem tampouco contato visual com esse jardim para as presas. Somente os vêem os visitantes, as presas que trabalham na limpeza e quando te levam ao despacho dos oficiais de guarda. Imaginavam que a paosagem parecesse mais natural se os animais encarcerados estivessem justo ao lado das pessoas encarceradas. A democracia além disso cuida em ‘adornar’ a seus monstrinhos.

Depois de passar 3 semanas na chamada ala de adaptação estou já de maneira fixa na ala 3, em uma célula em que cabem 14 pessoas. Não diria que a convivência forçosa com 12 mulheres é a coisa mais simples. Tendo zero de espaço pessoal e cada uma com um antojo ou rareza diferente, qualquer pessoa facilmente pode sobre-passar seus limites. A parte das 2 horas e meia por dia na qual eu posso sair ao pátio, as demais se limitam a uma sala 20 por 30 metros. Se trata do espaço permitido para mover-se. Nesta sala estou tomando o café, comendo, lendo, escrevendo, escutando música, pensando. Neste espaço estou passando minha vida os últimos dois meses e meio, e por um tempo ainda indefinido. As paredes estão pintadas até o teto com imagens de campinas, árvores, mares e peixes. Assim tentaram dar à carcere um aspecto mais humano. Fazer as presas acreditarem que a privação de uma paisagem natural se pode substituir com pinturas. Durante os primeiros dias me parecia uma piada de mal gosto, agora somente terminou sendo algo irritante.

O pessoal se move de uma maneira semelhantemente contraditória. Típicas carcereiras que tentam fingir que o trabalho que fazem pode ser livrado de culpa por sua natureza. Acreditam que até a cortesia é capaz de compensar à recontagem de manhã e de tarde, a insensibilidade e a indiferença que mostram quando as presas têm suas crises e com muita frequência raspam as mãos, em uns acessos próprios de toxicómanas. São as mesmas que generosamente repartem os medicamentos para assim evitar alvoroços, enquanto que ao mesmo tempo quando se trata de qualquer outra doença “a privada cura tudo”. Elas são as mesmas que, dependentes das ordems que recebem, não duvidarão em te levar para a célula de isolamento, te desnudar para o chequeio porque sim, elas são as mesmas que durante seu ‘tempo livre’ se assomarão descaradamente em cima das minhas cartas. São elas que, quando chega as 9 da tarde fecharão as portas atrás delas e com a mesma comodidade te dirão: ‘Boas noites’. A hipocrisia em toda sua grandeza. Aqui as bençãos não cabem. Nenhuma boa noite nem um bom dia existe na cárcel. Apenas há dias e noites.

A lógica de dominação está promulgando a divisão das pessoas segundo umas características aparentemente fragmentárias. Deste modo se criam umas aparentes comunidades com o resultado sendo o fortalecimento da desigualdade e do antagonismo. A ética da sociedade responde a esta chamada, não somente reproduzindo essa lógica, mas na maioria dos casos convertindo-se em su maior defensora. A classe social, a nacionalidade, o gênero são alguns dos exemplos que diariamente moldam as percepções e condutas. A cárcere é uma parte fundamental do sistema e a comunidade de pres@s constitui microcosmos de uma sociedade comprimida. Por conseguinte, os sintomas do mundo enfermo em que vivemos chegam também para dentro dos muros. A cárcere por um lado, de certa maneira, coletiviza aos presos obrigando-os a reconhecerem-se em uma identidade coletiva marcada pela condenação. Ao mesmo tempo, a divisão aparece em toda sua grandeza repartindo a homens e mulheres em diferentes penais. Uma vez mas repartirão também, tanto a mulheres como a homens, em alas de proteção, alas de toxicóman@s, de cigan@s, de menores, de mães com crianças, de indisciplinad@s, de células brancas. Cada categoria necessita ser gestionada e afrontada de modo diferente, correspondendo ao interesse que tenha o sistema. Os vermes submissos (dedo-duros) e os ex-servos do sistema (policiais corruptos queimados pelo sistema mesmo) serão protegidos, as mães com filh@s se convertirão em ferramenta para um aparente humanismo, os toxicómanos receberão o desprezo e a indiferença. Dignas mulheres presas que vivem baixo alguma de essas condições, como as das toxicómanas, seguramente poderão explicá-lo de maneira mais detalhada e descritiva às suas experiências.

Como anarquista revolucionária considero que a separação com base no gênero social é uma questão que tem suas extensões sociais tanto dentro como fora dos muros. É uma questão que na maioria das vezes fica subestimada, e em algumas outras vezes fica sobre-estimada de uma maneira distorcida. Considero que existe uma percepção muito enraizada durante os séculos entre as pessoas sobre quais características e comportamentos correspondem (e são apropriadas) somente para as mulheres e quais são apenas para os homens. Com base no gênero se haviam criado papéis e identidades sociais que cada um e uma adquire desde o momento em que nasce e então terão que carregá-las durante toda sua vida. Se trata de uma separação mais profunda que a sociedade havia aceitado.

A realidade social define a mulher como gênero débil e os reflexos disso na prática são de fato infinitos e ocorrem a cada dia. A reprodução de uma tal condição automaticamente define um sujeito como inferior, a apresenta como vítima e a afrontando como uma espécie protegida. No entanto, em cada relação há quem produz/emite algo e há quem o aceita/admite. O gênero feminino em sua maioria aceita sua identidade social e assim é levado à lógica de vitimização, seja para recusar às responsabilidades ou seja para sossegar-se justificando a sua própria inércia posto que assim as “exigências” se minimizam de maneira automática. O ponto de vista vitimizado de qualquer questão conduz ao derrotismo e à incapacidade de valorar as capacidades e habilidades d@ indivídu@. A força da individualidade própria e suas responsabilidades tanto ao nível pessoal como coletivo é o que promulga aos momentos, condições e ações libertadoras.

Falando de mim, nunca havia considerado que pertenço ao “gênero débil” e nunca quis ser um ser passivo. Me libertei das síndromes de culpa com os quais a sociedade nos carga e tracei meu caminho de acordo com meus próprios valores de “eu quero”. Em meu caminho muitas vezes havia encontrado os olhares que foram ainda enjauladas dentro dos estereótipos do gênero social. Segundo minha opinião, até no seio do âmbito anti-autoritário frequentemente as emboscadas do preconceito são montadas por parte de homens e da conformidade, que chega até o ponto de aproveitar-se deste, com seu papel por parte das mulheres. A meus próprios olhos não se pode chamar de pessoa rebelde alguém que não luta por abolir aos papéis sociais. Em primeiro lugar para si mesmo, ao nível interior, e logo em sua relação com os outros, no nível exterior. É um processo de busca interior, mas também de rechaço fundamental à este mundo.

Porque nesta vida nada que vale a pena mencionar fica dado gratuitamente, você mesma tem que reivindicá-lo. A essência está para mim em como finalmente a mulher mesma supere aos resíduos com os quais foi cargada pela sociedade e como se comportará libertada destes. Só então os papéis se rompem, desaparecem, dando lugar a uma postura ativa. Eu havia escolhido a postura ativa em um mundo de passividade. Havia escolhido de ativamente tomar parte em uma organização revolucionária. Não segui a ninguém, nem fui levada por algo. Decidi. Fui presentemente nos debates, quando se ia tomando decisões, durante as ações e agora, na hora de pagar por. Assumi a resonsabilidade de meus atos apesar de que pudesse me aproveitar de minha identidade como mulher e assim receber um trato mais favorável. Mas, como isso poderia ser digno? Na história, a mulher que está se implicando em projetos revolucionários na verdade logra romper dois papéis de uma só vez. Por um lado, de maneira consciente derroga a sua identidade de pessoa legal, questionando às leis e a ordem e então, em segundo lugar, derroga a sua identidade como mulher, superando ao conceito dos papéis de gênero social (mãe, esposa, companheira), os quais a sociedade mesma prestou a ela.

As autoridades alemãs na década dos 70, quando a organização revolucionária RAF era ativa e contava com bastante mulheres, havia emitido a ordem: “primeiro disparem as mulheres”. O fato de superar essencialmente a estes papéis fez às mulheres mais decididas, mais conscientes, mas também mais perigosas em comparação com os homens que, devido ao seu gênero, se supõe que são um elemento compatível com a delinquência (isso segundo a aproximação científica do Estado), seguiram um caminho mais natural.

No entanto, cada época tem suas próprias características e suas próprias condições.

O âmbito anti-autoritário frequentemente está buscando um sujeito revolucionário no seio dos ilegais, estimando que o fato de questionar as leis logo de cometer um ou mais atos ilegais supôe também questionar ao existente. De forma correspondente seria que a mulher que está questionando às leis, portanto questiona também, ainda que seja de maneira inconsciente, seu papel social.

Contudo, ao viver a realidade da cárcere de muheres, e a cárcere Eleonas de Thiva de maneira concreta, se pode comprovar que o comportamento moderno e pequeno burguês de acordo com papéis sociais assumidos havía também transladado para dentro dos muros. O ato ilegal que foi cometido não era nada mais que um momento. É característico que a maioria das mulheres não fale sobre o ‘crime’ que haviam cometido, senão que dizem que um homem a empurrou a fazê-lo. Ou seja, a este ato ilegal pelo qual está na cárcere não o sente sequer como parte dela mesma, e por isso reproduz a lógica vitimista. O papel de mãe foi deixado de lado para delinqüir, mas, ao viver a condição de encerro, rapidamente é recuperada a identidade de mãe-protetora. Sente que talvez assim pode se salvar de sua maldição posto que ficou obrigada a viver longe de s@@s filh@s. Muitas vezes seu papel a guiará no que se refere ao trato que recebe na cárcere, se converte em seu medo e em sua permissividade. O sistema penitenciário que saca tudo à ameaças pisará sobre essa debilidade reclamando todo tipo de coisas em troca, a prioridade sendo subordinação às regras carcerárias e os informes sobre outras presas. Ao mesmo tempo vai ocupar-se de humilhá-la de muitas maneiras, obrigando-a a suportar, ademais dos chequeios corporais, também o chequeio de s@@s filh@s, muitas vezes pequenos, caso queira vê-los na sala de visitas aberta. Diante desta condição tão ofensiva, ela mesma e sua incapacidade de superar às identidades sociais canalizam sua energia em tratar de sobreviver na cárcere fazendo a cotidianidade dentro dela parecida à que tinha fora. Freqüentes visitas ao cabeleireiro, intercâmbio ou venda de roupa, maquiagem.

Um tempo atrás a comunidade carcerária era constituída pelos fora-da-lei desesperados. Desde as pessoas a quem já não lhes restava nenhuma esperança de ver mudar a realidade na qual viviam, excluídas do consumo, marginalizadas pela sociedade. A designação forçosa, sem saída nenhuma, ao mais baixo escalão social, provoca raiva, que é pré-condição necessária para que nascesse qualquer tentativa de libertação. Igualmente, a raiva por si mesma não é nem política nem apolítica. Depende das maneiras em que uma quer ou pode expressá-la. Esta raiva parece que é o que falta hoje aqui dentro. Reina algo contrário, uma resignação. Enquanto que a maioria das mulheres aqui são estranjeiras e não sabem sequer sobre o que passou na rua Terceiro de Setembro nem sobre os acontecimentos que ocorreram então, está se criando um grande abismo entre uma simples sobrevivência e a sã conduta insurrecta. Desde um ponto de vista tão subjetivo como consciência sobre a situação real fora e sobre verdadeiros interesses, estas mulheres estão ainda muito confundidas. A cárcere não está composta por desesperad@s (o são somente os toxicômanos, que por um lado por sua dependência e de outro pela obstinada repressão por trás do restringido acesso aos medicamentos, têm as possibilidades limitadas). Nas cárceres de mulheres o crime econômico tanto como o tráfico de grandes quantidades de droga marcam a nossa época. Em nenhum caso já ficou alguém excluída do consumo, algo que canalize a raiva e, combinadamente com as identidades sociais, faz que as mulheres ao final sigam sendo as vítimas de suas próprias ilusões. Naturalmente, esta percepção não é universal. Há e sempre haverá aqui dentro algumas que guardam sua dignidade e cabeça erguida. Na mente das quais os “empregados”, como os querem agora que os chamem, siguem sendo carcereiros e seu uniforme esteja sempre na nossa mira. Para elas também a solidariedade com presos nunca perde seu sentido. Não no sentido de defender o papel de preso, senão sendo contra sua própria condição de encerro. A condição esta que nos priva do mais precioso bem, a liberdade física, e com a qual contudo estão conectadas penossas limitações de cada tipo. A interrupção das relações sexuais até a vexatória dependência dos mecanismos carcerários para a comunicação. Dentro deste marco há um gozo particular nestes pequenos agrados arrancados da máquina repressiva.

A solidariedade tem que ficar viva quando se trata das mobilizações de presos e intacta, objetiva e em alerta nos casos que têm haver com presos políticos. Segundo minha opinião, as concentrações solidárias não devem limitarem-se apenas a umas datas cerimoniosas como por exemplo o Fim de Ano, senão que têm que manter seus aspectos reflexivos de resposta imediata para deste modo converter-se em alavanca de pressão cada vez que os caprichos penitenciários pôem os presos à prova. A solidariedade tem que ser ferramenta que fará destacar aos casos de anarquistas aprisionados mas não enforcando-se em cada um por separado, não à base de relações pessoais, não à base de critérios como culpa ou inocência. Ademais, neste mundo ninguém é inocente, todas somos culpáveis. Umas por sermos conscientes e haver tomado ação contra o que nos oprimia e otr@s por sua tolerância com relação às instituições opressivas.

Mando minhas saudações revolucionárias a todas e todos que sob a pressão dos tempos que vivemos com insistência decidem tomar a ação.

Olga Ikonomidou,
Membra da O.R. Conspiração de Células do Fogo
Cárcere Eleonas, Thiva (Tebes)


Nota de tradução: Se refere aos seguidos pogroms fascistas (realizados com ajuda de vizinhos do bairro e polícias) contra os imigrantes, ataques que duraram várias semanas e resultaram em pelo menos um* imigrante mort* e dezenas ferid*s por facadas e golpes, ocorridos depois da morte de um* greg* mort* por imigrantes (motivo foi roubo) naquela rua do centro de Atenas em maio de 2011.

Por que falamos de Sexismo nos espaços liberados

Por que falamos de sexismo nos espaços liberados?

– Porque vivemos em uma sociedade capitalista e patriarcal, baseada no império do macho sobre a mulher, e fomos educad@s com base neste valores. E porque para construir uma alternativa a este sistema, o primeiro passo é mudar a nós mesmas. Em nossa concepção da vida, as relações, a sexualidade… A dificuldade não está em teorizar sobre a mudança, senão levá-la à prática. E isso é precisamente o que mais nos custa.
– Porque apesar de que somos todos e todas as que combatemos o Capital, o facismo e o sexismo, ainda há alguns que contam mais que outros. Talvez por veterania, costume ou simples tom de voz, em determinados lugares, assembléias, jornadas… se escuta e se dá mais credibilidade à voz destes.
– Porque não apenas queremos libertar espaços, senão também mentes e atitudes. E nas festas dos centros sociais ainda há pessoas que se liberam cantando às (e nao a_os_)que estão no balcão por puro disfrute, ou pior ainda, porque acham que é assim que se flerta.
– Porque não somos as namoradas nem as companheiras de, senão que temos suficiente entidade e personalidade por nós mesmas. Mas, para nosso ambiente alternativo, embora se fale de fulano como “aquele que é muito bravo e que está em tal coletivo” se esquecem que fulana, ademais de ser sua companheira, é tão insubmissa como ele mas talvez faça menos ruído.
– Porque ainda há gente que acredita que ser forte significa ser durão ou durona. E se avergonharia de mostrar debilidade em público, ou então despreza aqueles que o fazem. E já muita repressão temos sobre nós para reprimirmos as lágrimas ou a tristeza porque há quem não as considere revolucionárias.
– Porque nós mesmas em teoria tratamos de romper com os tópicos e papéis estabelecidos de familia, casal, relações… seguimos reproduzindo em muitas ocasiões a mesma repartição de papéis, a incomunicação e a incompreensão entre homens e mulheres.
– Porque todos enchem a boca falando de sexo seguro, mas ainda é lamentavelmente certo que, em muitos casos (relações estáveis, abertas, esporádicas, trios, noites loucas e demais), esta responsabilidade básica está longe de ser compartilhada por todas e todos, e a iniciativa continuamos assumindo aquelas que podemos ficar grávidas.
– Porque embora a sociedade avance para uma maior repressão da sexualidade das crianças, nos vendem que as mulheres nos libertamos porque já podemos ser militares e agressoras em vez de agredidas, enquanto continua a desigualdade dos sexos, a homofobia e, definitivamente, a perpetuação dos papéis sexistas, enquanto seguimos sofrendo o sexismo inclusive nos espaços liberados, ainda há quem não vê o anti-sexismo como uma luta coletiva, necessária e urgente. Ou não entende por que algumas mulheres escolhemos romper com estes abrindo espaços de debate, de ação, de festas… somente para nós mesmas. Não seria porque temos mais urgência?

Este texto deseja recolher as impressões, debates e discussões que muitas de nós mantemos diariamente sobre o sexismo na nossa comunidade, e acreditamos que ele reflete muito bem nossa realidade. Não se trata de fazer críticas destrutivas, senão de romper com o que nos impôem com um pouco de auto-crítica sincera e rindo-nos de nós mesmas.

Saúde e Anti-sexismo! 1

Texto escrito por Las Tensas (As Tensas), coletivo feminista do centro social ocupado La Hamsa, publicado no Infousurpa, 1998.

[1] uma maneira de ressignificar o ‘Saúde e Anarquia!’, forma de saudação anarquista.

Falando sobre Gênero – Debbie Cameron

Falando Sobre Gênero

Na London Feminist Network’s “Feminar” em maio de 2010, Debbie Cameron e Joan Scanlon falaram sobre gênero e o que isso significava para o feminismo radical. O que segue é uma cópia editada de seus comentários.

Debbie Cameron:

O propósito da discussão de hoje é tentar destrinchar a confusão teórica e política que agora ronda o conceito de gênero, e é provavelmente útil iniciar se perguntando o que está causando essa confusão.

Conversas sobre “gênero” hoje em dia frequentemente levam a problemas porque as pessoas estão utilizando a mesma palavra para querer dizer mais ou menos a mesma coisa mas, num exame mais apurado, elas não estão falando sobre o mesmo conjunto de coisas do mesmo ponto de vista. Por exemplo, quando lançamos o T&S Reader na feira de livros radicais de Edinburgh, algumas estudantes vieram depois dizer que estavam contentes que produzimos o livro, mas surpresas que ele não falava muito sobre gênero. Na realidade, é tudo sobre gênero no sentido feminista radical – relações de poder entre mulheres e homens -, então esse comentário não fazia muito sentido para nós. De início, Joan ficou completamente perplexa com isso; eu entendi o que elas deveriam estar compreendendo somente porque eu ainda sou uma acadêmica, e na academia você ouve “gênero” sendo muito utilizado dessa forma. O que está acontecendo é que durante os 1990s, teóricos e ativistas queer desenvolveram uma nova maneira de falar sobre o gênero: ele possuía pontos de coincidência com a forma do feminismo antigo falar, mas a ênfase era diferente, a teoria por trás dele era diferente (basicamente era a teoria pós-moderna de identidade associada à filósofa Judith Butler, embora eu não acredite que Butler em si mesma diria que feministas não tinham análise crítica do gênero), e a política que surgiu disso foi muito diferente. Para as pessoas cujas ideias eram formadas seja pelo encontro com a teoria feminista acadêmica ou pelo envolvimento na política e ativismo queer, esse se tornou o significado de “gênero”. Elas acreditavam o que lhes tinha sido dito, que feministas nos 70s e 80s não possuíam uma análise crítica do gênero, ou que possuíam a análise errada porque suas ideias sobre gênero eram “essencialistas” ao invés de “construcionistas sociais”.

Não acreditamos nisso, e em um minuto explicaremos o porquê. Mas primeiro vale a pena fazer um “compare e contraste” geral sobre a “antiga” visão feminista do gênero e a nova versão que saiu da política/teoria queer dos 1990s.

O Que é Gênero?

“Antigo” Gênero: Um sistema de relações sociais/de poder estruturadas em uma divisão binária entre “homens” e “mulheres”. A categorização está usualmente na base do sexo biológico, mas o gênero como o conhecemos é uma coisa social ao invés de biológica (por exemplo, masculinidade e feminilidade são definidos diferentemente em diferentes tempos e espaços).

“Novo” Gênero: Um aspecto da identidade pessoal/social, usualmente atribuída para você de nascimento na base do sexo biológico (mas essa conexão “natural” é uma ilusão – assim como é a ideia de que devem haver dois gêneros porque existem dois sexos).

O Que é Opressivo Sobre o Gênero?

“Antigo” Gênero: O fato é que ele é baseado na subordinação de um gênero (mulheres) pelo outro (homens).

“Novo” Gênero: O fato de que é um sistema binário rígido. Ele força toda pessoa a se identificar como homem ou como mulher (não nenhum dos dois, ambos ao mesmo tempo, algo entre eles ou alguma coisa totalmente diferente) e pune qualquer um que não se conforme. (Isso oprime tanto homens quanto mulheres, especialmente aqueles que não se identificam inteiramente com o modelo prescrito para o seu gênero)

O Que Seria Uma Política de Gênero Radical?

“Antigo” Gênero: Feminismo: mulheres organizadas para desmantelar o poder masculino e, assim, o inteiro sistema de gênero. (Para feministas radicais, o ideal número de gêneros seria… Nenhum.)

“Novo” Gênero”: “Genderqueer”: mulheres e homens rejeitam o sistema binário, identificam-se como “foras-da-lei do gênero” (por exemplo, queer, trans) e demandam reconhecimento por uma série de identidades de gênero. (Dessa perspectiva, o número ideal de gêneros seria… Infinito?)

Existem tanto similaridades quanto diferenças entre as duas versões. Para ambas, o gênero está conectado ao sexo mas não é o mesmo que ele; para ambos, o gênero como o conhecemos é um sistema binário (existem, basicamente, dois gêneros); e ambas abordagens provavelmente concordariam que o gênero é sobre poder E identidade, mas suas ênfases em um ou outro diferem. Elas também diferem porque os que sustentam a teoria queer não pensam em termos de homens oprimindo mulheres, eles pensam as normas de gênero como tais como mais opressivas do que a hierarquia de poder, ou querem “mais” gênero ao invés de menos ou nenhum. Para realizar um entendimento dessas ideias e decidir o que você pensa delas, é útil entender um pouco de história – a história das ideias radicais sexuais e feministas. Existem três perguntas principais que pensamos valerem a pena de serem desenvolvidas com maiores detalhes: É verdade que o feminismo radical é/foi “essencialista” em sua visão do gênero? O que é, e o que foi, a relação entre as políticas de gênero e sexualidade? O que o feminismo radical e queer ou a política “genderqueer” têm em comum, e quais são as diferenças básicas, e quais são seus respectivos objetivos políticos?

É/Foi o Feminismo Radical Essencialista?

Vamos tirar algo do caminho: existem variedades essencialistas do feminismo, correntes de pensamento no qual, por exemplo, poderes místicos são atribuídos ao corpo feminino ou acredita-se que os homens são naturalmente maus, e algumas das mulheres que aderem a essas ideias podem usar ou serem dadas o rótulo de “feminista radical”. Mas se considerarmos o feminismo radical como uma tradição política que produziu, entre outras coisas, um corpo de textos feministas que vieram a ser considerados como “clássicos”, é surpreendente (dada quão frequente tem sido feita a acusação de essencialismo) quão consistentemente não-essencialista sua visão de gênero tem sido.

Como forma de ilustrar isso, juntei algumas citações dos escritos de mulheres que são geralmente consideradas como feministas radicais arquetípicas – juntamente com Simone de Beauvoir, frequentemente considerada como a fundadora antepassada da moderna “segunda onda” feminista, cujo livro O Segundo Sexo (publicado pela primeira vez na França em 1949) é anterior em 20 anos. Beauvoir não era essencialista e, apesar de que ela não usou um termo equivalente a gênero (isso ainda não é comum em francês), ela faz muitos comentários que dependem em distinguir o biológico dos aspectos sociais de ser uma mulher. Um dos meus favoritos, por causa de seu tom sarcástico seco, é esse: “Todo ser humano fêmea não é necessariamente uma mulher; para ser assim considerada ela deve participar dessa realidade misteriosa e ameaçada conhecida como feminilidade”.

Uma pioneira feminista de segunda onda que tem sido frequentemente castigada por essencialismo (porque ela sugeriu que a subordinação das mulheres deve originalmente ter ocorrido devido a seu papel na reprodução e nutrição) é Shulamith Firestone, autora de The Dialectic of Sex (1970). Mas, na verdade, Firestone não via a hierarquia social construída na diferença sexual como natural e inevitável. Ao contrário, ela declara no Dialectic que

assim como o objetivo final da revolução socialista seria não somente a eliminação do privilégio de classe econômica mas a distinção da classe econômica em si mesma, assim também o objetivo final da revolução feminista deve ser (…) não somente a eliminação do privilégio masculino mas a distinção de sexo em si mesma: diferenças genitais entre seres humanos não mais importariam culturalmente.

Pouco depois, no escrito da feminista materialista radical francesa Christine Delphy, o gênero é teorizado como nada mais que o produto das relações de poder hierárquicas; não é uma diferença pré-existente na qual essas relações são então sobrepostas. A visão de Delphy é uma na qual menos pensadores radicais veem como extrema, mas o que quer que pensem, isso dificilmente poderia ser menos essencialista. Como Delphy mesma diz:

Não sabemos com o quê os valores, os traços de personalidade individual ou a cultura de uma sociedade não-hierárquica se pareceriam, e temos grande dificuldade de imaginar isso. (…) Talvez só seremos capazes de pensar sobre o gênero no dia em que pudermos imaginar um não-gênero.

Todas as escritoras que eu acabei de citar são mulheres que “podem imaginar um não-gênero (e assim o fazem)”. Essa boa vontade de pensar seriamente sobre o que, para a maioria das pessoas, incluindo muitas feministas, é impensável – que um mundo verdadeiramente feminista não somente operaria sem as desigualdades de gênero mas efetivamente sem distinções de gênero -, é, nós argumentaríamos, uma das marcas do feminismo radical, uma das maneiras que ele se supõe como “radical”.

Outra coisa que faz o feminismo radical se destacar é a maneira pela qual ele relaciona o gênero com a sexualidade e, ambos, com o poder. Os escritos de Catharine MacKinnon fazem essa relação particularmente forte, como na seguinte passagem tomada de Feminism Unmodified (1987):

A teoria feminista do poder é a de que a sexualidade é “generizada” e o gênero é sexualizado. Em outras palavras, o feminismo é uma teoria de como a erotização da dominação e submissão cria o gênero, cria mulheres e homens na forma social na qual nós os conhecemos. Portanto, a diferença de sexo e a dinâmica dominação-submissão definem uma à outra. O erótico é o que define o sexo como desigualdade e, por isso, como uma diferença significativa. Isso é, na minha visão, o significado social da sexualidade, e a consideração distintamente feminista da desigualdade de gênero.

Isso mostra que algumas célebres feministas radicais tomaram uma visão não-essencialista da sexualidade assim como do gênero. De fato, uma das considerações mais radicalmente não- ou anti-essencialistas da sexualidade que pudermos pensar – tão radical quanto qualquer trabalho de teóricos queer em rejeitar a ideia de identidades sexuais fixadas e finitas – vem da feminista radical Susanne Kappeler em seu livro The Pornography of Representation (1986):

Numa perspectiva política, a sexualidade, como a linguagem, pode cair na categoria das relações intersubjetivas: intercâmbio e comunicação. As relações sexuais – o diálogo entre dois sujeitos – determinariam, articulariam, uma sexualidade dos sujeitos como a interação do discurso geraria papéis comunicativos nos interlocutores. A sexualidade não mais nos falaria muito sobre a questão da identidade, de um papel fixo na ausência de uma praxis, mas a possibilidade com o potencial de diversidade e intercambialidade, e a possibilidade crucialmente dependente de um interlocutor e codeterminada por ele, outro sujeito.

Mais tarde explicaremos porquê pensamos que essas ideias feministas radicais sobre gênero, sexualidade, identidade e poder, na realidade, emitem um desafio muito mais radical ao status quo do que as ideias da política queer.

Joan Scanlon:

Como a Debbie disse anteriormente, fiquei completamente aturdida quando as duas jovens em Edinburgh perguntaram porque não havia mais sobre gênero no The Trouble & Strife Reader (2009). Liguei para Su Kappeler (veja a citação dela acima) e ela disse: “O negócio é o seguinte, Joan: é como o que Roland Barthes escreveu em algum lugar, que se você tem um guia da Itália, você não vai encontrar “Itália” no índice – você vai encontrar Milão, Nápoles ou o Vaticano…” Então eu pensei sobre isso, e percebi que, enquanto isso era certamente verdadeiro, havia algo a mais acontecendo: é como se o mapa da Itália tivesse desaparecido (bastante útil como uma forma de relacionar Milão, Nápoles e o Vaticano) e, ao invés disso, a realidade geográfica, política e econômica da Itália fora substituída por um espaço virtual no qual a Itália poderia ser um baile de máscaras, uma bandeira tricolor, um salão de sorvete – ou qualquer combinação de flutuantes significantes livres. E, assim, retornando ao conceito de gênero, compreendi que precisamos reconstruir o mapa, e que precisávamos olhar historicamente para a pergunta para dar sentido a essa mudança de significado.

É claro que os mapas mudam, assim como as fronteiras políticas mudam – mas você não vai longe sem uns ou outros. Precisamos, portanto, examinar o porquê das feministas terem adotado o termo gênero para descrever a realidade material – o cumprimento sistemático do poder masculino – e como uma ferramenta para a mudança política. Eu vou começar com algumas definições e então falar brevemente sobre a história da sexualidade, a relação entre gênero e sexualidade, e como essa relação entre essas duas construções mudou desde o início do século passado. Também vou examinar brevemente no que o feminismo tem em comum com a política queer, e aonde residem suas diferenças fundamentais.

Definições: Feminismo, Gênero, Sexualidade

Quando eu estava escrevendo uma coisa com Liz Kelly no final dos 1980s, nós decidimos que, com a proliferação dos “feminismos”, nós precisávamos afirmar que o termo feminismo não possuía sentido se ele somente significasse o que qualquer indivíduo quisesse que ele significasse. Em outras palavras: você não pode ter um plural sem um singular – então nós definimos o feminismo simplesmente como “um reconhecimento de que mulheres são oprimidas, e um comprometimento em mudar isso”. Além disso, você pode ter qualquer número de diferenças de opinião sobre porquê as mulheres são oprimidas e um número de diferenças sobre estratégias de mudar isso. Em 1993, na nossa 10ª edição de aniversário do T&S, nós então pedimos a várias mulheres para que definissem o feminismo radical. As definições que todas tinham em comum eram: elas tomam como central que o gênero é um sistema de opressão, e que homens e mulheres são dois grupos socialmente construídos que existem precisamente por causa da relação de poder desigual entre eles. Ainda, todas elas afirmam que o feminismo radical é radical porque ele questiona todas as relações de poder, incluindo formas extremas como violência masculina e a indústria do sexo (algo que sempre tem sido extremamente controverso no interior do movimento das mulheres e uma questão extremamente impopular de se fazer campanha contra). Ao invés de mexer nas bordas da questão do gênero, o feminismo radical consigna o problema estrutural que subjaz a ele. Para definir gênero, portanto, parece ser um passo necessário a compreensão da proliferação dos significados que surgiram em seu uso plural de agora. O gênero, como feministas radicais sempre o compreenderam, é um termo que descreve a opressão sistemática de mulheres, como um grupo subordinado, pelo benefício do grupo dominante, os homens. Este não é um conceito abstrato – ele descreve as circunstâncias materiais da opressão, incluindo o poder masculino institucionalizado e o poder no interior das relações pessoais – por exemplo, a divisão desigual de trabalho, o sistema de justiça criminal, a maternidade, a família, a violência sexual… E assim por diante. Aqui eu devo dizer que poucas feministas argumentariam que o gênero não é socialmente construído; acredito que o feminismo radical só é acusado de essencialismo biológico porque ele tem sido central na campanha contra a violência masculina e, por alguma razão, nós somos portanto acusadas de pensar que todos os homens são violentos de maneira inata – o que eu nunca entendi. Se você está envolvido numa política de mudança, seria completamente sem sentido pensar que qualquer coisa que você busca mudar é inato ou imutável. Se o gênero é visto, no patrtiarcado, como emanando do sexo biológico – a sexualidade é essencializada se alguma coisa ainda mais –, é visto como emanando da nossa própria natureza, de desejos e sentimentos que estão consideravelmente fora de nosso controle, mesmo se o nosso comportamento sexual pode ser regulado por códigos morais e sociais. E, para concluir com as definições, pegarei emprestado a definição de sexualidade de Catherine MacKinnon como um “processo social que cria, organiza, direciona e expressa desejo”. Além de pontuar que isso claramente indica que feministas radicais compreendem a sexualidade como sendo socialmente construída, não vou destrinchar mais isso aqui, assim como espero que tenha ficado claro a partir do que vou dizer.

Uma Breve História da Sexualidade

É somente a partir de cerca de 1870 em diante que o discurso médico, científico e legal começou a classificar e categorizar indivíduos por seu tipo sexual – e produziu o que historiadores agora reconhecem como uma específica identidade homossexual ou lésbica. Antes do final do século XIX, o comportamento sexual foi concebido em termos de pecado e crime – em termos de atos sexuais e não identidades sexuais. No Reino Unido, a homossexualidade masculina foi criminalizada até 1967, e a lesbianidade, apesar de nunca ilegal, foi reprimida de outras formas; não era uma opção econômica para mais do que um pequeno número de mulheres privilegiadas com recursos independentes até depois da Segunda Guerra Mundial. A sexualidade feminina sempre foi controlada por coerção física, por dependência econômica dos homens, e não menos pela ideologia – o ensaio de Adrienne Rich “Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica” (1979) mostra a variedade e inventividade desses meios de controle.

O gênero é uma das formas nas quais a sexualidade é mais efetivamente policiada: dado o constante reforço do sistema binário de gênero como uma forma de controle social, se você pisa fora do seu papel de gênero imposto, você é provável de ser estigmatizado como homossexual, e vice-versa. Em outras palavras, se você se abstém das recompensas da feminilidade – através, por exemplo, de se tornar uma encanadora, não raspar suas pernas, dizer para um homem se foder se ele está te assediando – você é provável de ser acusada de ser lésbica. (Um homem que não se conforma com as convenções da masculinidade, e é visto empurrando um carrinho de bebê, vestindo rosa, ou que não gosta de futebol, é igualmente provável de ser acusado de ser gay.) E, similarmente, se você é mesmo lésbica, você é provável de ser esperada de agir como um homem, de exibir desejo masculino – e mulheres heterossexuais são prováveis de se preocuparem se você gosta delas, e são encorajadas a evitar espaços exclusivos de mulheres no caso de que existe o risco de ser atacada (isso pode ser menos verdadeiro agora, mas sempre foi uma questão considerando-se os eventos exclusivos de mulheres quando eu primeiro me envolvi com o feminismo – ou seja, que mulheres heterossexuais pensavam que “mulheres somente” significava lésbico e que, por isso, presumiam que tais espaço/eventos seriam sexualizados.) De qualquer forma, isso é parte do que Catherine MacKinnon quis dizer quando ela disse que “o gênero é sexualizado, e a sexualidade é ‘generizada’” – em outras palavras, a diferença de poder entre homens e mulheres é erotizada, e não reconheceríamos algo como sexual se isso não fosse sobre poder. Então qualquer coisa que é percebida como sexual – tal como a identidade gay e lésbica – é lida através dessas lentes e, assim, “generizada”.

Os primeiros sexólogos tiveram papel significativo em criar e consolidar esse mito de que lésbicas eram inerentemente mulheres masculinizadas, e que homens homossexuais eram inerentemente femininos. Está também no trabalho de, por exemplo, Richard von Krafft Ebing, que você primeiro encontra a ideia de um homem nascido no interior do corpo de uma mulher e vice-versa. Apesar dos primeiros sexólogos dissiparem muitos outros mitos sobre o comportamento sexual, e contribuírem para desafiar a criminalização da homossexualidade por apresentá-la como “natural” e inata, ao assim fazer, também afirmavam a ideia de que a sexualidade era uma parte essencial da natureza humana que era também perigosa e precisava ser controlada pela intervenção médica, ou uma força positiva que precisava ser liberada das restrições repressivas da civilização. Eles frequentemente discordavam entre si, e contradiziam a si mesmos, mas coletivamente eles criaram e confirmaram o mito de que todos temos uma “identidade sexual verdadeira”, que a ciência da sexualidade pode ajudar a revelar. Alguns de seus escritos parecem agora como completo nonsense, mas é impossível subestimar a importância desses textos na literatura e na imaginação popular da época.

Só para dar-lhes um exemplo: Richard von Krafft Ebing (de cujos estudos de caso Radclyffe Hall baseou seus personagens no Well of Loneliness) argumentou que homossexuais não eram nem doentes mentalmente nem depravados moralmente – vez que eles sofreram uma inversão congênita do cérebro durante a gestação do embrião. Além disso, ele estava convencido de que você poderia encontrar evidência de masculinidade em mulheres “invertidas” (homossexuais) para confirmar a causa genética de sua condição. Havelock Ellis, que escreveu o prefácio para Well, concordou com essa posição, e continuou a argumentar que você poderia distinguir entre verdadeiras mulheres “invertidas” cuja natureza era permanente e inata, e aquelas mulheres que eram atraídas a “invertidas” porque, apesar de elas serem mais femininas, elas “não estavam bem adaptadas para a criação de filhos” e, por isso, não serviam para o sexo heterossexual procriativo. Uma visão mais clara foi articulada por Edward Carpenter, reformista socialista e filósofo utópico: Carpenter, que usou o termo Urano (dos céus) para descrever indivíduos que eram atraídos por outros do mesmo sexo, tinha uma visão mais mística e lírica do sujeito completo (ele é facilmente ridicularizado porque ele tinha uma espécie de comitiva de culto e não somente fez suas próprias sandálias como também as fez para o resto de sua comunidade, que vivia em uma comuna perto de Sheffield), mas ele é, em muitos sentidos, o mais radical de todos eles. Ele era muito mais interessado em temperamento e sensibilidade que em sinais exteriores (biológicos) de desvio das convenções da masculinidade e feminilidade, e ele também acreditava que aqueles que pertenciam ao “sexo intermediário” poderiam construir diferenças de classe e raça, e serem intérpretes entre homens e mulheres, vez que compartilhavam das características de ambos. Economistas e políticos do movimento pensaram as visões de Carpenter como um nonsense sentimental, mas ele se torna próximo de todos os sexólogos dizendo que o gênero em si é o problema, e que extremos do sistema binário de gênero são prejudiciais ao tipo de sociedade ideal que ele imagina.

Não vou desenvolver meu caminho através de todos os sexólogos do século XX – sem dúvidas que vocês estejam mais familiarizados com os experimentos de laboratório dos Masters e Johnson, e as célebres pesquisas em comportamento sexual por Alfred Kinsey e Shere Hite dos 1950s e 1980s respectivamente, que abalaram o establishment ao mostrar, dentre outras coisas, a diversidade do comportamento sexual e o predomínio do desejo homossexual entre a população heterossexual em geral nos EUA. A questão principal sobre os primeiros sexólogos, o que eles têm em comum, é que eles fizeram do sexo o sujeito do estudo científico, e muitos poucos deles olharam para o gênero per se, ou para o contexto social e significado da sexualidade.

A relação do gênero com a sexualidade mudou no final dos 60s e 1970s, em grande medida por causa da emergência do movimento de mulheres o o movimento de liberação gay. Com a ascensão do feminismo e a publicação de inúmeros textos-chave tais como Política Sexual (1970) de Kate Millet, a lesbianidade não era mais vista como uma subcategoria da homossexualidade masculina, e não somente como uma identidade sexual, mas como uma identidade política, dentro do contexto das relações de poder “generizadas” – em outras palavras, foi possível poder ver ser uma lésbica como ser uma mulher, desafiar a heterossexualidade como uma instituição, e desafiar o poder no interior de relações pessoais. Eu penso que sou extraordinariamente sortuda por ter encontrado o feminismo no final dos 1970s (quando eu estava em meus iniciais 20s) – vez que eu seria, do contrário, completamente persuadida de que eu era uma “inversão” ou, deus me livre, uma Urano, ou o quer que seja, se eu tivesse nascido numa época anterior. O movimento de mulheres do final dos 60s e 70s ofereceram a várias mulheres uma oportunidade sem precedente para fazer sentido de suas experiências como mulheres, teorizar sobre, e fazer algo sobre.

Nós frequentemente esquecemos que pensadores no interior do movimento de liberação gay na atualidade tinham muito em comum com o feminismo: desconstruir a masculinidade, questionar a família nuclear, desafiar a misoginia e buscar uma sexualidade da igualdade. Apesar de que feministas continuaram a trabalhar muito em parceria com homens gays, contra uma opressão comum – a heterossexualidade institucionalizada – nós também vimos que nosso foco na construção social da sexualidade estava em desacordo com a visão predominante no movimento gay de que a sexualidade era inata. Por exemplo, no final dos 1980s, durante a campanha contra o artigo 28 do projeto de lei do governo local (que proibiu autoridades locais de “promover” a homossexualidade e “simulou”, isto é, famílias de mesmo sexo, nas escolas), o principal argumento dentro do movimento gay era de que você não poderia fazer alguém gay, que gays somente representavam 10% da população, que você nascia gay e, por isso, não representava nenhuma ameaça ao establishment. E, é claro, como feministas, estávamos argumentando o oposto, de que você poderia de fato mudar sua sexualidade, e que certamente buscávamos ser uma ameaça ao establishment. A epidemia da AIDS politizou grandes números de homens gays ao redor da sexualidade, defendendo a liberdade sexual individual contra as políticas repressivas da extrema direita mas, ao recorrer novamente ao apelo pela tolerância do mundo heterossexual, e um pedido pela inclusão no privilégio heterossexual (uniões civis, etc.) – que foram estrategicamente bem-sucedidos em obter tais objetivos precisamente porque não eram vistos como ameaçando o establishmente liberal – é possível que esse movimento tenha pavimentado o caminho para uma política que não somente questionava o comportamento heterossexual, mas buscava criar um espaço para essas vítimas do gênero que se encontravam fora do sistema binário de gênero e fora de uma concepção binária paralela da sexualidade. Você pode muito bem dizer que o feminismo parecia oferecer tal política e tal espaço, então é importante olhar, portanto, para as diferenças entre o feminismo e a política queer.

O que o feminismo radical tem em comum com a política queer é:

– Uma compreensão de que o gênero e a sexualidade são socialmente construídos.

– Um reconhecimento de que os papéis de gênero binários são opressivos.

– Uma compreensão de que os papéis de gênero são produzidos através da performance, e confirmados pela sua constante re-atuação.

– Um comprometimento em desafiar as suposições e práticas heteronormativas.

As diferenças entre o feminismo radical e a política queer são:

– O feminismo radical é uma análise materialista que argumenta que o gênero não é produzido meramente através do discurso e performance, mas é um sistema no interior do qual um gênero (masculino) tem poder econômico e político, e o outro (feminino) não tem – e o grupo dominante tem um investimento em manter isto dessa forma.

– O feminismo radical envolve uma compreensão de que você não pode produzir (ou questionar) o sistema de gênero através do discurso ou da performance individual – ao adotar certas roupas, linguagem, ou mesmo desafiando seu corpo anatômico. Fora de certos contextos limitados, a cultura dominante ainda vai interpretar esses gestos de acordo com os códigos sociais dominantes, e tentar te categorizar como homem ou mulher. (Em outras palavras, no metrô, no supermercado, no trabalho, esses gestos individuais ou afirmações performativas serão ininteligíveis, e bastante ineficazes como um desafio ao sistema de gênero.)

– Judith Butler argumenta que o feminismo, ao afirmar que mulheres são um grupo com características e interesses comuns, tem reforçado a visão binário do gênero, no qual os gêneros masculino e feminino são construídos em corpo masculinos e femininos. Feministas de fato argumentam que mulheres tem um interesse político comum (em vez de exibirem características comuns), e que mulheres sofrem de uma opressão comum (na qual experienciam de diferentes formas de acordo com outras formas de relações de poder, incluindo raça e classe), e que os corpos de mulheres são o local para muito dessa opressão, mas isso não é argumentar que a categoria mulher é uma categoria indiferenciada. É somente argumentar que tão logo mulheres são oprimidas como mulheres, existe a necessidade de uma identidade política comum, de forma a se organizarem efetivamente para resistir a essa opressão.

– O feminismo radical é comprometido em mudar o sistema de gênero, em desafiar a opressão em todas as suas formas. Nós, portanto, não temos nenhum investimento em sermos fora-da-lei, que vem de uma noção romantizada da opressão. Além disso, se sentir oprimido não é o mesmo que ser oprimido. De forma a celebrar sua identidade como um fora-da-lei, você deve ter um investimento no sistema que faz com que você seja um fora-da-lei. O queer me parece abranger as mais extremas vítimas do sistema de gênero, e criar um guarda-chuva que cobre aqueles que são relutantes foras-da-lei sociais (usualmente dos grupos mais pobres e privados de direitos da sociedade, com nenhum amortecedor contra o preconceito social – ou seja, aqueles que são foras-da-lei sem escolha) e aqueles para o qual brincar de ser um fora-da-lei é um jogo de privilégio intelectual ao invés de realidade duramente vivida.

– O queer é, por sua própria definição, tudo o que está em desacordo com o normal, o legítimo, o dominante. O queer, então, demarca “não uma positividade, mas um posicionado vis-à-vis ao normativo”. Segue-se a isso que a política queer não tem objetivos políticos particulares, à parte de desafiar os discursos normativos dominantes e, se eles mudam, a política queer deve então ter que mudar sua posição em oposição ao que quer que seja atualmente normativo. Não está claro para mim, então, quais são seus objetivos políticos específicos.

– O queer abrange uma ampla matriz de identidade e práticas sexuais não-normativas, incluindo algumas que são heterossexuais: “Sadismo e masoquismo, prostituição, inversão sexual, transgeneridade, bissexualidade, assexualidade, intersexualidade são vistos pelos teóricos queer como oportunidades de investigação entre as diferenças de classe, raça e etnicidade, e como oportuniddes de reconfigurar compreensões do prazer e desejo.” Por exemplo, Pat Califia, em Feminism and Sadomasochism, escreve sobre como o sadomasoquismo encoraja à fluidez, e questiona a naturalidade das dicotomias binárias da sociedade:

A dinâmica entre o superior e o inferior é bastante diferente da dinâmica entre homens e mulheres, negros e brancos ou pessoas da classe alta e trabalhadora. Este sistema é injusto porque ele designa privilégio baseado em raça, gênero e classe social. Durante um encontro sadomasoquista, papéis são adquiridos e usados de formas muito diferentes. Se você não gosta de ser um superior ou um inferior, você muda. Tente fazer isto com seu sexo biológico ou raça ou seu status socioeconômico.

– Esse ponto de vista posiciona esses estudiosos da teoria queer em conflito com a visão feminista radical de que sadomasoquismo, prostituição e pornografia são todas práticas opressivas.

– O feminismo radical argumenta que todas as diferenças de poder são sexualizadas, incluindo aquelas construídas através de raça e etnicidade, classe e incapacidade, e que a pornografia e a indústria do sexo como um todo é uma das manifestações mais claras e mais perniciosas disso – diferença de poder erotizado é o negócio da pornografia, e isso é feito em corpos reais, não na imaginação do consumidor. Além disso, devemos ser claros sobre o prazer e desejo de quem estamos falando – em uma indústria baseada na exploração sexual e abuso. O sadomasoquismo foi sujeito de muitos debates acalourados no interior do feminismo nos 1980s e, aqui, novamente, o feminismo radical não viu nada de novo ou radical sobre recriar a dinâmica de dominação e subordinação – já prevalecente dentro da heterossexualidade – no interior de relações não-heteronormativas. Todo esse fenômeno, adotado como anti-heteronormativo (pela política queer), já está incluído pelo patriarcado, então não existe grande revolução aqui. Feministas radicais buscam não meramente desafiar, mas desmantelar as estruturas do patriarcado; o desafio que o queer oferece à cultura normativa é uma provocação sem nenhum objetivo político em desmantelar o normativo, do qual, por sua própria definição, dele depende para sua existência como uma posição oposta. Parece que o queer não está, assim, tentando buscar a libertação do sistema de diferença de gênero, mas simplesmente buscando tomar liberdades com ele.

– De forma a mudar o sistema social que cria a diferença de gênero como nós conhecemos, você deve consignar as estruturas subjacentes que produzem e sustentam a diferença de gênero – e você deve buscar erradicar o próprio gênero.

– Sem o gênero, sem a diferença de poder, a sexualidade pode ser simplesmente a expressão de desejo entre sujeitos iguais. (Veja a citação de Sue no folheto.)

– No início desta conversa, Debbie citou Shulamith Firestone e, por isso, parece totalmente apropriado para mim concluir retornando ao argumento central do “The Dialectic of Sex”, um que encapsula a abordagem feminista radical do gênero: “A tarefa intelectual e teórica do feminismo é compreender o gênero como um sistema de cria e mantém a desigualdade. A tarefa política do feminismo é erradicar o gênero.”