Trashing: o lado feio da sororidade

texto sobre condutas destrutivas dentro das grupas, espaças, colectivas e movidas feministas, questões de agressividades não visibilizadas que acontecem com as próprias irmãs, ocasiando sua morte política por vários motivos, e que são silenciadas e não abordadas.

Destruição: O lado feio da Sororidade
Jo Freeman, 1976.

O movimento de liberação das mulheres não foi somente pão e rosas. Este artigo explora o destrutivo fenômeno do ‘trashing’ (destruição): ataques pesoais a outras mulheres no movimento. Jo Freeman foi a editora de “A Voz do Movimento de Liberação das Mulheres”, que foi o primeiro jornal nacional da liberação das mulheres. Ela também foi membro do Grupo Westside, um dos primeiros grupos de Liberação de mulheres dos EUA).

Este artigo foi escrito para a revista Ms. e publicado na edição de Abril de 1976, pg. 49-51, 92-98. Ele provocou mais cartas das leitoras que qualquer outro artigo previamente publicado na Ms., maior parte embora não todos contando suas próprias experiências de ter sofrido ’trashing’1. Algumas delas foram publicadas na edição subsequente de Ms.
Faz bastante tempo desde que eu fui ‘trashed’. Eu fui uma das primeiras no país, talvez a primeira em Chicago, a ter meu personagem, meu compromisso, e meu eu mesmo atacado de tal maneira pelo Movimento de mulheres que me deixou arrasada, em pedaços e incapaz de funcionar. Levou anos para que eu me recuperasse, e mesmo hoje as feridas não estão totalmente curadas. Desde então eu ando pelas margens do Movimento, ajudandoo porque eu preciso fazê-lo, mas com muito medo para lançar ao meio dele outra vez. Eu sequer sei bem do que eu tenho medo. Eu sigo dizendo a mim mesma que não há razão por que aquilo poderia acontecer outra vez – se eu for cautelosa – mesmo assim no fundo da minha mente há uma certeza pervasiva, irracional que diz que se eu esticar meu pescoço pra fora, serei novamente um alvo aceso para a hostilidade.
Por anos eu vim escrevendo esta peça na minha cabeça, usualmente como uma fala para uma variedade de audiências imaginárias do Movimento de Mulheres. Mas eu nunca tinha pensado em expresar a mim mesma publicamente porque eu vim sendo uma firme crente de não lavar as roupas sujas do Movimento em público. Estou começando a mudar minha mente.2

Antes que tudo, tantas das roupas sujas vem sendo publicamente expostas que eu duvido que o que eu tenha para revelar vá adicionar muito à pilha. Para aquelas mulheres que vem sendo ativas no Movimento, não é nem sequer uma revelação. Segundo, vim assistindo por anos com crescente consternação enquanto o Movimento conscientemente destrói qualquer pessoa nele que se destaque em qualquer maneira. Eu vim tendo antigas esperanças de que essa tendência auto-destrutiva poderia definhar com tempo e experiência. Deste modo eu simpatizei com, apoiei, mas não falei sobre, as muitas mulheres cujos talentos foram perdidos para o Movimento porque suas tentativas de usá-los foram recebidos com hostilidade. Conversações com amigas em Boston, Los Angeles, e Berkeley que foram destruídas tão recentemente como 1975 me convenceram de que o Movimento não aprendeu de sua experiência não-examinada. Pelo contrário: o trashing foi tomando proporções epidêmicas. Talvez então, trazer isso pra fora do armário possa limpar o ar.

Que seria o “trashing”, este termo que expressa tanta coisa, embora explique tão pouco? Não é desacordo, não é conflito, não é oposição. Estes são fenômenos ordinariamente perfeitos que, quando engajados em mutualismo, honestidade, e não excessivamente, são necessários para manter um organismo ou organização saudável e ativa. “Trashing” é uma forma viciosamente particular de assassinato de caráter que equivale ao estupro psicológico. É manipulativo, desonesto e excessivo. É ocasionamente disfarçado pela retórica do conflito honesto, ou encoberta por meio da negação de que qualquer desaprovação exista realmente. Mas não é algo feito para expôr desacordos ou resolver diferenças. É feito para depreciar e destruir.

Os meios variam. Trashing pode ser feito privadamente ou em uma situação de grupo; na cara de um ou por trás das costas; por meio de ostracismo ou denunciação pública. A agente do trashing pode dar a você falsos relatos de que (coisas horríveis) outr*s pensam de você; contar a suas amig*s histórias falsas do que você pensa del*s; interpretar qualquer coisa que você diga ou faça da forma mais negativa; projetar expectativas irrealísticas em você para que então quando você falhe em alcançá-las, você se torna um alvo ‘legitimado’ para a raiva; negar sua percepção da realidade; ou fingir que você não existe. Trashing pode ser até mesmo finamente velado pelas mais novas técnicas de grupo de criticismo/auto-criticismo, mediação, e terapia. Quaisquer que sejam os métodos usados, trashing envolve a violação da integridade de uma, uma declaração da invalidez de uma, e impugnação dos motivos de uma. Em efeito, o que é atacado não é as ações de uma, as ideias de uma, mas o Eu de uma. Este ataque é realizado por meio de fazer sua vera existência é inimiga ao Movimento e que nada poderá mudar esta sorte de deixar de existir. Estes sentimentos são reforçados quando você é isolada de suas amigas assim que elas se tornam convencidas de que a associação delas com você é similarmente inimiga para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá amaldiçoá-las. Eventualmente todas suas colegas vão juntar-se ao coro da condenação que não pode ser silenciado, e você será reduzida a uma mera paródia do seu eu prévio. Levou três trashings para me convencer a cair fora. Finalmente, no fina de 1969, eu me senti psicologicamente estraçalhada ao ponto em que eu soube que não poderia seguir em frente. Até então eu interpretei minhas experiências como tendo haver com conflitos de personalidade ou desacordos políticos que eu poderia retificar com tempo e esforço. Mas quanto mais eu tentava, pior as coisas ficavam, até que eu finalmente fui forçada a encarar a realidade imcompreensível de que o problema não era o que eu tinha feito, mas o que eu era.
Isso foi comunicado tão sutilmente que eu nunca poderia conseguir qualquer pessoa com quem falar sobre isso. Não haviam grandes confrontações, apenas muitos pequenos desdéms. Cada um por si mesmo era insignificante; mas adicionados um ao outro eles eram como centenas de cortes com um chicote. Passo a passo eu era ostracizada: se um artigo coletivo era escrito, minhas tentativas de contribuir eram ignoradas; se eu escrevia um artigo, ninguém o leria; quando eu falasse em encontros, e então seguir a discussão como se eu não tivesse dito nada; datas de encontros eram mudadas sem que eu fosse avisada; quando era meu turno para coordenar um projeto de trabalho, ninguém iria ajudar; qundo eu não recebia correspondências, e então descobria que meu nome não estava na lista de correios, me diziam apenas que eu estive buscando no lugar errado. Meu grupo decidiu certa vez em juntar esforços de geração de fundos para enviar pessoas para uma conferência até que eu disse que gostaria de ir, e então foi decidido que todas pessoas estariam por sua própria conta (imparcialmente, uma membra me chamou mais tarde para contribuir com 5 dólares na minha tarifa, providenciou que eu não contasse a ninguém. Ela foi vítima de trashing alguns anos depois).
Minha resposta a isso foi o espanto. Eu senti como se eu estivesse perambulando de olhos tapados em um campo cheio de objetos cortantes e buracos profundos enquanto eu era assegurada de que eu poderia ver perfeitamente e que estava em um pasto liso e verde. Isso seria se eu tivesse inadvertidamente entrado em uma nova sociedade, uma operando por regras as quais eu não estivesse consciente, e não poderia saber. Quando eu tentei fazer meu(s) grupo(s) discutir o que eu pensava que estava acontecendo comigo, elas simplesmente negaram minha percepção da realidade dizendo que nada estava fora do comum, ou desmerecendo os incidentes como triviais (que individualmente eram). Uma mulher, em conversação privada por telefone, admitiu que eu estava sendo tratada de maneira muito ruim. Mas ela nunca me apoiou publicamente, ou admitiu francamente que isso ocorria porque ela temia fazê-lo por poder temer a aprovação de grupo. Ela também havia sofrido ‘trashing’ em um outro grupo.

Mês após mês a mensagem estava sendo martelada: saia, o Movimento estava dizendo: cai fora, caia fora! Um dia eu me encontrei a mim mesma confessando a minha colega de quarto que eu não acreditava que eu existia; que eu era um fragmento da minha própria imaginação. Foi aí que eu soube que era o momento de eu deixar. Minha saída foi bem silenciosa. Eu falei a duas pessoas, e deixei de ir ao Centro de Mulheres. A resposta me convenceu de que eu tinha lido a mensagem corretamente. Ninguém chamou, ninguém me mandou qualquer correio, nenhuma reação surgiu dos rumores. Metade da minha vida foi anulada, e ninguém estava consciente disso senão eu mesma. Três meses depois uma palavra foi trazida de que eu tinha sido denunciada pela União da Liberação das Mulheres de Chicago, descoberto depois que eu deixei o Movimento, por eu ter permitido eu mesma ser citada em um artigo recente de notícias sem a permissão delas. Isso foi tudo.

A pior parte de tudo isso foi que eu realmente não sabia por que eu estava tão profundamente afetada. Eu tinha sobrevivido crescendo em um subúrbio bastante conservador, conformista, sexista, onde meu direito a minha própria identidade estava constantemente sob assalto. A necessidade de defender meu direito a ser eu mesma me fez mais dura, não miserável. Minha pele endurecida foi mais temperada pelas minhas experiências em outras organizações políticas e movimentos, onde eu aprendi a usar a retórica e a argumentação como armas na luta política, e como revelar conflitos de personalidade sendo mascarados como políticos. Tais conflitos eram usualmente articulados impessoalmente, como ataques às ideias de uma, e enquanto eles podem não ser produtivos, eles não eram tão destrutivos como aqueles que eu vi tempos depois no movimento feminista. Alguém pode re-pensar as ideias de uma como um resultado de terem sido atacadas. É muito mais difícil re-pensar a própria personalidade. Assassinato de caráter foi usado ocasionalmente, mas não era considerado legitimado, e logo foi limitado tanto em extensão como em efetividade. Enquanto as ações das pessoas contam mais que suas personalidades, tais ataques não deveriam tão imediatamente resultar em isolamento. Quando eles foram empregados, apenas raramente entraram na pele de uma.
Mas o movimento feminista entrou na minha. Pela primeira vez na minha vida, eu me encontrei a mim mesma acreditando nas coisas horríveis que as pessoas estavam dizendo sobre mim. Quando eu fui tratada como merda, eu interpretei isso como significando de que eu era merda. Minha reação me enervou tanto quanto minha experiência. Ter sobrevivido assim incólume, por que eu poderia sucumbir agora? A resposta me tomou anos para chegar. E é uma pessoalmente dolorosa porque ela admite a vulnerabilidade que pensei que eu tinha escapado. Eu sobrevivi minha juventude porque eu nunca dei a nenhum grupo o direito a me julgar. Aquele direito eu havia reservado para mim mesma. Mas o Movimento me seduziu por sua doce promessa de sororidade. Clamou prover um céu das devastações de uma sociedade sexista; um lugar onde uma poderia ser compreendida. Foi a minha própria necessidade por feminismo e feministas que me fez vulnerável. Eu dei ao movimento o direito a me julgar porque eu acreditei nele. E quando ele me julgou como sem valor, eu aceitei esse julgamento.

Por pelo menos seis meses eu vivi em um tipo de desespero entorpecido, completamente internalizando minha falha como sendo uma pessoal. Em junho de 1970, eu me encontrei em Nova Iorque coincidentemente com várias feministas de quatro cidades distintas. Nos juntamos em uma noite por uma discussão geral sobre o estado do Movimento, e ao invés disso nos encontramos a nós mesmas discutindo o que aconteceu a nós. Tínhamos duas coisas em comum; todas tivemos amplas reputações no Movimento, e todas havíamos sofrido trashing. Anselma Dell’Olio nos leu uma fala chamada “Divisividade e Auto-Destruição no Movimento de Mulheres” que ela recentemente havia dado no Congresso Para Unir Mulheres (sic) como um resultado de sua própria experiência com trashing.

“Eu aprendi… anos atrás de que as mulheres sempre estiveram divididas umas contra as outras, auto-destrutivas e preenchidas com fúria impotente. Eu pensei que o Movimento poderia mudar tudo isso. Eu nunca sonhei que eu poderia ver o dia em que essa fúria, mascarada como um radicalismo pseudo igualitário (seria usado dentro do Movimento para derrubar irmãs de maneira a puní-las… “eu estou me referindo… aos ataques pessoais, ambos declarados e insidiosos, aos quais as mulheres no Movimento que tiveram dolorosamente manejado qualquer degrau de sucesso foram submetidas. Estes ataques tomam diferentes formas. O maior comum e difundido é o assassinato do caráter: a tentativa de solapar e destruir a crença na integridade de uma indivídua sob ataque. Outra forma é a ‘purgação’. A tática última é isolar ela… “E quem elas atacam? Geralmente duas categorias… realizações ou ganhos de qualquer tipo poderiam ser vistos como o pior crime: … faça qualquer coisa… que qualquer outra mulher secretamente ou do contrário sinta que ela pode também fazer – e… você estará sucetível a isso. Se então… você é assertiva, tem o que é geralmente descrito como uma ‘personalidade forte/se você não se encaixar no estereotipo convencional de uma mulher ’feminina’… Está tudo acabado. ‘Se você está na primeira categoria (a que possui realizações), você imediatamente é rotulada como uma oportunista, uma bruta mercenária, fazendo sua fama e fortuna em cima dos corpos mortos das irmãs sem egoísmo que estiveram enterrando suas habilidades e sacrificando suas ambições para a grande glória do Feminismo. Produtividade parece ser o maior crime – mas se você tem a má sorte de ser visível e articulada, você também é acusada de ser poderosamente maligna, elitista, facista, e finalmente o pior epíteto de tudo: identificada com os homens. Aaaarrrrggg!’”.

Enquanto eu a ouvia, um grande sentimento de alívio desbordava sobre mim. Foi minha experiência que ela estava descrevendo. Se eu estava louca, ao menos eu não era a única a sentir isso. Nossa conversa continuou pela tarde afora. Quando fomos embora, nos apelidamos ironicamente de “refugiadas feministas” e concordamos em nos encontrar outra vez. Nunca o fizemos. Ao invés disso cada uma de nós caímos novamente em nosso próprio isolamento, e lidamos com o problema apenas no nível pessoal. O resultado foi que a maior parte das mulheres no encontro terminaram caindo fora como eu tinha feito. Duas terminaram no hospital com ataques de nervos. Embora todas seguiram como dedicadas feministas, nenhuma realmente contribuiu com seus talentos para o Movimento como elas poderiam. Embora nunca nos tenhamos visto outra vez, nossos números cresceram enquanto a doença da auto-destrutividade lentamente engolfou o Movimento.

Ao longo dos anos eu estive conversando com muitas mulheres que sofreram ‘trashing’. Como um câncer, os ataques se espalharam desde aquelas que tinham reputações para aquelas que eram apenas fortes; daquelas que eram ativas para aquelas que meramente tinham ideias; daquelas que se destacavam como individualidades para aquelas que falhavam em conformar rápido o suficiente aos balanços e mudanças da linha que se modificava no momento. Com cada nova história, minha convicção cresceu de que trashing não era um problema individual trazido por ações individuais; tampouco era o resultado de conflitos políticos entre aquelas que diferiam em ideias. Era uma doença social.

A doença foi ignorada por tanto tempo porque é frequentemente mascarada sob a retórica da sororidade. No meu próprio caso, a ética da sororidade preveniu o reconhecimento do meu ostracismo. Os novos valores do Movimento disseram que cada mulher era uma irmã, cada mulher era aceitável. Eu claramente não era. Ainda assim ninguém podia admitir que eu não era aceitável sem admitir que elas não estavam sendo irmãs. Era mais fácil negar a realidade da minha não-aceptabilidade. Com outros ‘trashings’, a sororidade tinha sido usada como uma faca ao invés de cobertura. Um modelo vago de comportamento sororário é estabelecido por meio de julgadoras anônimas que então condenam aquelas que não alcançam suas exigências. Enquanto o ideal for vago e utópico, ele nunca poderá ser atingido. Mas ele pode ser mudado com as circunstancias para excluir aquelas que não são desejáveis como irmãs. Assim sendo, o adágio memorável de Ti-Grace Atkinson que dizia “A Sororidade é poderosa: ela mata irmãs” é reafirmada outra e outra vez.

Trashing não é apenas destrutiva para as indivíduas envolvidas: serve como uma arma realmente poderosa de controle social. As qualidades e estilos que são atacados se tornam exemplos que outras mulheres aprendem a não seguir – para que o mesmo destino não toque às demais. Isto não é uma característica peculiar ao Movimento de Mulheres, ou mesmo a mulheres. Os usos de pressões sociais para induzir a conformidade e intolerância as individualidades é endêmica na sociedade norte-americana. A questão relevante não é porque o Movimento exerce tais fortes pressões para conformar a um modelo limitado, mas quê modelo que pressiona mulheres para que sejam conformadas a ele. Este modelo está vestido pela retórica da revolução e feminismo. Mas por baixo dele há algumas fortes ideias tradicionais sobre os papéis apropriados que as mulheres devem seguir. Eu observei que dois tipos diferentes de mulheres sofrem trashing. O primeiro é aquela descrita por Anselma Dell’Olio — a mulher com realizações e/ou assertiva, aquela a qual o epíteto “homem-identificada” é comumente aplicado. O tipo de mulher que sempre foi posta pra baixo em nossa sociedade pelos epítetos que variam desde “não muito dama” a “vadia castradora”. A razão primaria aí tem sido tão poucas “grandes mulheres ______” não é meramente que a grandeza tenha sido não-desenvolvida ou não-reconhecida, mas de que mulheres exibindo potencial por realizações são punidas por ambos homens e mulheres. O “medo do sucesso” é bastante racional quando uma sabe que as consequências do sucesso possam ser a hostilidade e as críticas.

Não apenas o Movimento falhou em superar essa socialização tradicional, mas algumas mulheres levaram isso a seus novos extremos. Fazer algo significante, ser reconhecida, alcançar logros, é implicar que uma está “fazendo fama em cima da opressão das mulheres” ou que uma se crê melhor que outras mulheres. Embora poucas mulheres possam pensar isso, muitas permanecem quietas enquanto as outras vão mostrando suas garras. A jornada por ‘falta de liderança’ que o Movimento tanto preza se tornou mais frequentemente uma forma de arrebatar aquelas mulheres que mostram qualidades de liderança, mais que desenvolver tais qualidades naquelas que não a possuem. Muitas mulheres que tiveram tentando dividir seus conhecimentos sofreram trashing porque assim assertavam que elas sabiam algo que outras não. O culto do Movimento ao igualitarismo é tão forte que se tornou confundido com nivelação. Mulheres que nos lembravam que não somos todas a mesma foram destruídas porque sua diferença é interpretada como significando que não somos todas iguais.

Consequentemente o Movimento fez as demandas erradas daquelas dentro dele que se destacavam. Pede por culpa e expiação ao invés de reconhecimento e responsabilidade. Mulheres que se beneficiaram pessoalmente da existência do Movimento devem a este mais que gratidão. Mas este débito não pode ser convocado por meio do trashing. Trashing apenas desencoraja outras mulheres de tentarem romper seus grilhões tradicionais.

O outro tipo de mulher comumente destruída é aquela que nunca poderia ser suspeita. Os valores do Movimento favorecem mulheres que são apoiadoras e auto-eclipsadas; aquelas que estão constantemente atendendo aos problemas pessoais de outras; a mulher que joga o papel de mãe muito bem. Ainda assim um número surpreendente de tais mulheres foram destruídas. Ironicamente sua habilidade mesma de performar esse papel é ressentido e cria uma imagem de poder que suas associadas acham ameaçador. Algumas mulheres mais velhas que conscientemente rejeitam o papel de mãe são exigidas jogá-lo para que possam ‘cair bem’ naquele contexto – e são destruídas caso rejeitem. Outras mulheres que voluntariamente jogam ele encontram suas expectativas de gênero que elas eventualmente não podem alcançar. Ninguém pode ser ‘todas coisas para todas pessoas’, então quando estas mulheres encontram a si mesmas tendo que dizer ‘não’ de modo a conservar um pouco do seu próprio tempo e energia para si mesmas ou tendem ao negócio político do grupo, são percebidas como rejeitadoras e tratadas com raiva. Verdadeiras mães claramente podem suportar alguma raiva de suas crianças porque elas mantém um alto degrau de controle físico e financeiro sobre elas. Mesmo mães nas profissões de ‘cuidado’ ocupando papéis suplentes de mães possuem recursos com os quais controlar a raiva de seus clientes. Mas quando uma é uma ‘mãe’ para a companheira, isto já não é possível. Se as demandas se tornam irrealísticas, uma ou recua, ou é destruída.

O trashing de ambos grupos possui raízes em comum nos papéis tradicionais. Entre mulheres estes são dois papéis percebidos como permissíveis: a ‘ajudante’ e a ‘ajudada’. Maior parte das mulheres são treinadas para atuar a um ou a outro em momentos distintos. A despeito dos grupos de auto-consciência e de um intenso escrutínio sobre nossa própria socialização, muitas de nós não tivemos liberado a nós mesmas de jogar esses papéis, ou de nossas expectativas de que outras o farão. Aquelas que desviam desses papéis – as bem sucedidas – são punidas por isso, assim como aquelas que falham em alcançar as expectativas dos grupos.

Embora apenas poucas mulheres atualmente se engagem em trashing, a culpa por permitir isso continuar recai sobre todas nós. Uma vez sob ataque, há muito pouco que uma mulher possa fazer para defender a si mesma porque ela estará por definição sempre errada. Mas há um bom negócio que aquelas que estão assistindo possa fazer para prevenir aquela de ser isolada e ultimamente destruída. Trashing apenas funciona bem quando suas vítimas estão sozinhas, porque a essência do trashing é isolar uma pessoa e atribuir os problemas de grupo a ela. Ajuda de outras rachaduras esta fachada e priva a que promove trashing da sua audiência. Torna um descobrimento em uma luta. Muitos ataques foram prevenidos pela recusa em associar-se a deixar a si mesmas intimidadas em silêncio e medo de que poderiam ser as próximas. Outras atacantes foram forçadas a clarificar suas queixas ao ponto em que elas poderiam racionalmente lidar com isso.

Há, claramente, uma linha fina entre destruir e luta política, entre assasinato de caráter e objeções legítimas a comportamento indesejável. Discernir as diferenças leva esforços. Aqui há alguns ponteiros a seguir. Trashing envolve forte uso do verbo “ser” e apenas um uso muito breve do verbo “fazer”. É algo que uma é e não o que uma faz que é objetado, e essas objeções não podem ser facilmente fraseadas em termos de comportamentos específicos indesejáveis. Promotoras de trashing também tendem a usar substantitvos e adjetivos de um leque vago e geral para expressar suas objeções a uma pessoa particular. Estes termos caregam uma conotação negativa, mas não realmente te dizem o que está errado. Isso é deixado à sua imaginação. Aquelas que sofrem trashing não podem nunca fazer nada direito. Porque elas são más, seus motivos são maus, e portanto suas ações são sempre más. Não há correção para erros passados, porque estes são percebidos como sintomas e não como equívocos.

O teste de acidez, porém, vem quando uma tenta defender a pessoa sob ataque, especialmente quando ela não está mais ali. Se tal defesa é tomada a sério, e alguma preocupação é expressada de que se escute todos os lados e juntar todas evidências, trashing provavelmente não está ocorrendo. Mas se sua defesa é desmerecida com um “Como você pode defender ela?”; se você se tornar amaldiçoada pela suspeita de tentar tal defesa; se ela em fato é indefensável, você deve tomar um olhar mais próximo àquelas fazendo as acusações. Há mais coisa ocorrendo que um simples desacordo.

Enquanto o trashing foi se tornando mais prevalente, eu vim me tornando mais intrigada pela questão de por quê. O que há com o Movimento de Mulheres que apoia e mesmo encoraja a auto-destruição? Como podemos acionar o debate sobre encorajar as mulheres a desenvolver suas próprias potencialidades individuais e sobre as que esmagam aquelas entre nós que o fazem? Por que condenamos nossa sociedade sexista pelo dano que promove contra mulheres, e então condenamos aquelas mulheres que não parecem severamente danificadas por ela? Por que que a prática de auto-conscientização não nos conscientizou sobre o trashing?

A resposta óbvia é que a raíz de nossa opressão como mulheres, e do auto-ódio de grupo que resulta de sermos criadas para acreditarmos que mulheres não são merecedoras de muita coisa. Ainda assim tal resposta é muito fácil; obscuresce o fato de que trashing não ocorre randomicamente. Não todas mulheres ou organizações de mulheres o fazem, ao menos não à mesma extensão. É muito mais prevalente entre aquelas que chamam a si mesmas radicais que entre aquelas que não; entre aquelas que pôem acento em mudanças pessoais que entre aquelas que acentuam mudanças institucionais; entre aquelas que não podem ver vitórias que não sejam a da revolução que entre aquelas que conseguem se satisfazer com sucessos mais graduais; e entre aquelas em grupos com objetivos vagos que aquelas em grupos com objetivos mais concretos. Eu duvido que haja qualquer explicação única para o trashing; é mais facilmente devido a combinações variadas de circunstâncias que não são sempre aparentes mesmo para aquelas que o estão experienciando. Mas das histórias que eu escutei, e dos grupos que eu observei, o que me impressionou mais é o quão tradicional é isso. Não há nada de novo sobre desencorajar mulheres de sairem do lugar pelo uso de manipulação psicológica. Esta é uma das coisas que veio colocando mulheres para baixo por anos; é uma coisa que feminismo foi suposto nos liberar. Ainda assim, ao invés de uma cultura alternativa com valores alternativos, nós criamos meios alternativos de reforçar os valores e cultura tradicionais. Apenas o nome mudou. Os resultados são os mesmos.

Enquanto as táticas são tradicionais, a virulência não o é. Eu nunca vi mulheres ficarem tão bravas com outras mulheres como elas ficam no Movimento. Em parte isso é porque nossas expectativas de outras feministas e do Movimento em geral são muito altas, e então difíceis de alcançar. Não aprendemos ainda a sermos realistas em nossas demandas sobre nossas irmãs e com nós mesmas. Isto é também porque outras feministas estão disponíveis como alvos para a fúria.

Fúria é o resultado lógico da opressão. Demanda um escape. Devido a maior parte das mulheres serem cercadas por homens de quem elas aprenderam que não é esperto atacar, sua fúria muitas vezes retorna para dentro. O Movimento está ensinando as mulheres a pararem este processo, mas em muitas instâncias não pode prover alvos alternativos. Enquanto os homens são distantes, e o “sistema” é muito grande e vago, a ‘irmã’ de uma está perto e a mão. Atacar outras feministas é fácil e os resultados podem ser mais rapidamente vistos que atacar instituições sociais amorfas. Pessoas são machucadas; elas vão embora. Uma pode sentir uma sensação de poder que vem do ter feito ‘alguma coisa’. Tentar mudar uma sociedade inteira é algo bastante lento, um processo frustrante cujos ganhos são incrementais, as recompensas difusas, e os reveses frequentes. Não é uma coincidência que o trashing ocurra mais seguidamente e mais viciosamente por aquelas feministas que vêem pequeno valor em mudanças pequenas, impessoais e então muitas vezes se encontram a si mesmas inaptas para agir contra aquelas instituições específicas.

A ênfase do Movimento no “o pessoal é politico” tornou mais fácil para o trashing ocorrer. Começamos por derivar algumas de nossas ideias políticas de nossas análises de nossas vidas pessoais. Isto legitimou para muitas a ideia de que o Movimento poderia nos dizer que tipo de pessoa deveríamos ser, e por extensão que tipo de personalidades deveríamos ter. Enquanto nenhuma fronteira foi traçado para definir os limites de tais demandas, foi mais difícil impedir abusos. Muitos grupos procuraram remodelar as vidas e mentes de suas membras, e alguns destruíram aquelas que resistiram. Trashing é também uma maneira de atuar a competitividade que transcorre nossa sociedade, mas de uma maneira que reflete os sentimentos de incompetência que as promotoras exibem. Ao invés de tentar provar que uma é melhor que qualquer outra, uma prova que outra pessoa é pior. Isto pode providenciar o mesmo sentido de superioridade que a competição tradicional promove, mas sem os mesmos riscos envolvidos. No máximo o objeto da ira de uma é colocada para a vergonha pública, no pior dos casos a posição de uma está segura dentro das mortalhas da justa indignação. Francamente, se formos ter competição no Movimento, eu prefiro a do velho tipo. Tal competitividade tem seus custos, mas há também alguns benefícios coletivos das realizações que os competidores alcançam enquanto tentam desfazer as das demais. Com o trashing não há beneficiárias. No final tod* mund* perde.

Para apoiar as mulheres acusadas de subverter o Movimento ou de minar seus grupos toma coragem, enquanto isso requere de nós esticar nossos pescoços pra fora dele. Mas os custos coletivos de permitir que o trashing siga assim tão longa e extensivamente como o temos hoje é enorme. Já perdemos neste momento algumas das mentes mais criativas e ativistas dedicadas no Movimento. Mais importante, desencorajamos muitas feministas de se destacarem, por medo de que o fizessem poderiam ser também destruídas. Não logramos providenciar um ambiente suportivo para que todas desenvolvessem suas potencialidades individuais, ou no qual reunir forças para as batalhas com as instituições sexistas que precisamos confrontar dia a dia. Um movimento que um dia esteve rebentando de energia, entusiasmo e criatividade terminou atolado na sobrevivência básica – sobrevivência uma das demais. Não é o momento de pararmos de buscar inimigas entre a gente e começarmos a atacar o inimigo real lá fora?

A autora gostaria de agradecer a Linda, Maxine, e Beverly por suas sugestões que ajudaram na revisão deste artigo.

Porque os Espaços de Mulheres São Críticos com Relação à Autonomia Feminista

por Patricia McFadden
traduzido por materialfeminista.milharal.org

A questão da presença masculina, em termos físicos e ideológicos, no interior do que deveriam ser espaços somente de mulheres, não é simplesmente uma questão de contestação ideológica e de preocupação no interior do movimento de mulheres globalmente; é também uma séria manifestação do backlash contra os esforços das mulheres de se tornarem autônomas dos homens em seus relacionamentos pessoais/políticos e interações. Assim que as sociedades humanas se tornaram mais públicas ao longo das lutas intensificadas pela inclusão de vários grupos de antigos círculos excluídos (o maior do qual é composto de mulheres de diferentes classes, idades, orientações sexuais, habilidades, etnicidades, nacionalidades e locais), então também a luta pela ocupação e definição de espaço tomou uma importância concomitante.
Neste curto artigo, quero explorar algumas das razões pelas quais essa contestação sobre os espaços de mulheres surgiu. Também quero tenazmente argumentar que mulheres não devem permitir homens em seus espaços porque estrategicamente isso seria um erro político grave para o futuro do movimento de mulheres, quer ele esteja localizado e engajado com a hegemonia patriarcal e exclusão. Argumentar pela inclusão dos homens em espaços estruturais e políticos de mulheres é não somente fundamentalmente heterossexista; também serve a uma velha reivindicação nacionalista de que as mulheres devem tomar conta dos homens, não importa aonde eles estejam localizados ou com o que estejam eles engajados. Essa reivindicação é inerentemente pressuposta na suposição de que as mulheres que não estão vinculadas ou associadas com um homem são perigosas, exaltadas mulheres que devem ser interrompidas. Isso é o porquê da afirmação de que as mulheres precisam “levar os homens adiante” sugere não somente uma suposição profundamente patriarcal de que a mobilidade das mulheres requer aprovação masculina: também facilita a transferência de práticas socioculturais no movimento das mulheres que alimentam o privilégio masculino e os mimam em espaços que as mulheres lutaram por séculos para assinalar como seus.
De forma a fazer meus apontamentos, quero me referir brevemente à noção conceitual de espaço e tentar mostrar como o espaço é generizado e altamente politizado como uma fonte social em todas as sociedades. Através da narrativa humana conhecida, certos espaços tem sido culturalmente, religiosamente e politicamente marcados como tanto “masculinos” como “femininos” e sabemos que, em termos dos últimos espaços, estes foram e continuam sendo amplamente relacionados às funções de reprodução e alimentação das mulheres em todas as sociedades humanas, sem exceção. Os espaços que referimos como públicos são adotados como masculinos e, por séculos, os homens excluíram as mulheres do público, onde todas as decisões-chave relacionadas ao poder são deliberadas e implementadas.
Além disso, ao longo da história humana, aqueles espaços que eram feminizados eram também considerados os menos importantes; eram e continuam sendo lugares onde as mulheres funcionavam através da benevolência dos homens, mas que nunca possuíram e com os quais ainda não têm direito sobre se vivem em relações íntimas próximas com homens adultos. Noções “da família” e “do chefe de família” permanecem fundamentalmente masculinos em termos de todas as insituições-chave de nossas sociedades, e as mulheres não podem criar uma família “real”; quando constroem lares, estes se tornam imediatamente feminizados e estigmatizados como outro (feminino-comandado/solteiro-comandado/mulher-comandado, etc.).
Portanto, quando damos uma olhada bem próxima a noções de espaço e sua ocupação em termos de gênero, percebemos o fato chocante de que é somente no século 20 que as mulheres ocuparam espaço limitado nas sociedades patriarcais em seu próprio direito como mulheres e/ou como pessoas. O espaço era e continua sendo largamente definido como uma construção masculina de todas as maneiras imagináveis e, para a maioria das sociedades do Sul, nem sequer se pode referir às mudanças que ocorreram nas sociedades do Norte em torno dessa questão para fazer qualquer generalizações. A maioria das mulheres no Sul existem fora do espaço como um recurso politicamente definido. No principal, e especialmente para mulheres pobres em um continente como a África, o espaço permanece fundamentalmente atrelado às noções arcaicas do privilégio patriarcal e da dominação das mulheres tanto privada quanto publicamente. É por isso que o Movimento das Mulheres, enquanto um espaço político, ideológico, ativista e estrutural, deve permanecer simplesmente isso: um espaço exclusivo de mulheres.
Além disso, é vital para qualquer conversa sobre a presença ou ausência de homens nos espaços de mulheres, localizar a noção de espaço em si mesmo no interior da narrativa política sobre o que o espaço significa em sociedades patriarcais generizadas. O fato que importa é o de que o espaço não é um território neutro; é altamente politizado em termos de classe e localização. Os ricos vivem em certos espaços e os pobres são sistematicamente excluídos desses espaços por arame farpado e cercas elétricas, cachorros viciosos e homens pobres de macacão carregando armas em suas mãos. O espaço é mantido sob escrutínio próximo pelos militares que declaram áreas particulares de um território nacional áreas “não permitidas” ao público, e as próprias classes dominantes constroem todos os tipos de práticas de exclusão e mecanismos que mantêm certos grupos de pessoas fora de “seus” espaços. Colonos brancos usaram o Estado para pôr em prática sistemas de vigilância que excluíam africanos de seus espaços através da institucionalização de “passes” e a extenção da licença de qualquer branco ser capaz de parar qualquer pessoa negra e demandar que eles expliquem sua presença em um lugar particular em qualquer hora do dia ou noite.
E em um daqueles raros momentos reconhecidos de conluio patriarcal entre homens negros e brancos no interior do empreendimento colonial, homens negros são permitidos parar e interrogar qualquer mulher negra que não esteve na presença de um homem adulto fora dos confinamentos das “Áreas Nativas” da África Austral colonial. A mesma prática provavelmente se aplicava em outras partes do continente e do mundo, na medida em que se concerne, em vários momentos no tempo.
No período imediatamente depois da independência nas muitas sociedades do continente, as mulheres que estavam desacompanhadas de um homem adulto e ousavam re-entrar ou permanecer no interior da arena pública depois que o dia de trabalho formal acabava, estavam e ainda estão suscetíveis à prisão e à criminalização como “putas”, que devem ser trancadas para sua própria segurança, porque “boas mulheres” estão em casa alimentando as crianças e servindo às necessidades sexuais de seus maridos depois que o sol se põe.
Esses e muitos dos discursos que definem e marcam o espaço como masculino e generizado, excludente de mulheres como pessoas e como indivíduos a que são atribuídos a mobilidade e a ocupação do espaço em seu próprio direito, devem ser trazidos em foco ao considerar a pressão que os homens e certos grupos de “boas mulheres” estão colocando no resto de nós no interior do Movimento das Mulheres de permitir os homens dentro de nossos limitados espaços políticos.
Minha retaliação é a de que aquelas mulheres que gostam tanto dos homens que não podem passar qualquer tempo durante o dia ou a noite sem a presença masculina podem construir as chamadas organizações “mistas”, que possuem o direito de existir como qualquer das outras estruturas da sociedade civil, que aumentam os desejos e interesses no bem comum; mas não como parte do Movimento das Mulheres. Portanto, insistir que nosso Movimento, que lutamos para estabelecer, frequentemente dando nossas vidas inteiras por sua criação, deva se tornar um “espaço misto de gênero” não é aceitável de forma nenhuma e deve ser vigorosamente contestado.
Basta dizer, então, que o espaço é sempre fortemente contestado e é uma questão política, e as mulheres devem entender e manter isso em mente enquanto nos perguntamos questões com relação à presença dos homens no nosso Movimento. Os espaços nunca são dados como todos os recursos nas nossas sociedades, quer sejam esses espaços materiais, estéticos ou sociais lutados, ocupados e trabalhados, marcados como pertencendo a um grupo particular através das lutas que são basicamente sobre estabelecer posse e usar essa posse para a execução de uma agenda. E o Movimento das Mulheres possui uma agenda claramente estabelecida da emancipação de todas as mulheres da sujeição patriarcal e da exploração. O patriarcado tem efetivamente usado a exclusão como um princípio central para suas alegações ideológicas à hegemonia em todas nossas sociedades, seja quando alguém está olhando para noções de identidade, de direitos e privilégio, de acesso e inclusão em instituições e posições de poder.
Práticas de exclusão utilizam o espaço como um elemento-chave na implementação de uma agenda específica. A alegação de que o lugar das mulheres é “na casa dele” é uma antiga estratégia que mobiliza noções da feminilidade; localiza-as no privado, e impõe uma ideologia de domesticidade através da qual as mulheres são socializadas a acreditarem e aceitarem que os espaços estreitos e com privilégio masculino chamados “casa” são os espaços mais apropriados para que elas gastem suas vidas em, procriando e trabalhando para “ele” e “a família dele”. Essa alegação é tão poderosa que milhões de mulheres continuam a acreditar nisso, mesmo quando tem sido capazes de deixar a casa e adquirir uma educação e habilidades profissionais que pudessem usar para se tornar autônomas. Ainda, elas voltam a esse espaço onde se tornam “verdadeiras” mulheres em termos patriarcais retrógrados; termos que elas às vezes escolhem definirem-se, mas que não têm que se tornar marcadores de todas as mulheres, especialmente no público que é um espaço comum que pertence a todas as mulheres de todas as cidadanias.
Acredito que ninguém pode considerar a questão da intrusão masculina nos espaços políticos de mulheres sem também considerar que esta demanda é sempre feita com o desejo consciente de empreender vigilância sobre o que as mulheres estão pensando, dizendo e fazendo. Sei que algumas de minhas irmãs dirão que eu não posso generalizar porque existem “bons” homens que se nomeiam “feministas” e que estão interessados em assegurar os direitos das mulheres contra a dominação patriarcal. Em um nível, isso pode ser verdade. Existem alguns homens que estão experienciando uma nova consciência política através da associação com as lutas das mulheres por liberdade e autonomia. Mas, em minha opinião, tais homens precisam estar em um movimento político que mobilize mais homens a mudarem a si mesmos, especialmente com relação à masculinidade e à hegemonia que a ideologia patriarcal garante a todos os homens. Neste sentido, estarão mais capazes de apoiar as demandas e os direitos das mulheres por liberdades. Porque enquanto “bons” homens sim apoiam mulheres e “permitem” suas esposas e parceiras de fazerem trabalho ativista, também influenciam as políticas das mulheres quando entram nos espaços de mulheres e interagem com as ideias e o ativismo de mulheres no interior do mesmo quadro.
As mulheres devem ser capazes de formular e expressar suas próprias ideias como mulheres individuais e como um círculo que é afetado pelas leis e práticas patriarcais de maneiras unicamente generizadas – uma experiência a que nenhum homem está aberto e a que não pode experienciar enquanto o patriarcado define relacionamentos generizados do poder e privilégio em sua forma atual. E, quando os homens estão nos espaços de mulheres, as mulheres tendem a reagir à sua presença de maneiras intelectuais e sexuais. Homens tendem a intimidar a maior parte das mulheres; mesmo o homem mais tímido possui um impacto na confiança de algumas mulheres, e isto é um custo que devemos não ter que incorrer em nossos espaços.
Os homens tendem a assumir o controle de dicursos e conduzí-los em direções particulares, frequentemente adotando atitudes defensivas sobre a consciência radical das mulheres e consequentemente neutralizando o senso das mulheres de intitulação de seus direitos. A presença dos homens em qualquer espaço de mulheres possui consequências fundamentais para o senso das mulheres de si mesmas e de suas visões do futuro. Em minha opinião, as mulheres não podem se dispor a serem boas sobre tal ameaça. Na verdade, é através de sua intrusão nos espaços de mulheres que os homens tem sido capazes de redirecionar as políticas do Movimento das Mulheres em muitos países – alterando seu caráter de uma plataforma política radical onde as mulheres experienciam a si mesmas como pessoas autônomas e intituladas, em um movimento bem-estarista que é focado nas velhas noções sexistas de reprodução e custódia cultural em nome dos homens mesmos que afirmam que estão sendo excluídos.
A vigilância da consciência política das mulheres é um objetivo-chave do backlash patriarcal, que se manifesta através das demandas masculinas por inclusão nos espaços de mulheres. Uma pessoa só precisa olhar para todas aquelas organizações que possuem homens em seu interior para ver quão conspiratórias e comprometedoras tais organizações se tornam dentro de um pequeno espaço de tempo. Frequentemente, esses homens assumem o controle sobre os elementos mais críticos no interior da organização, frequentemente o controle sobre as finanças e a seção de publicações, impondo a voz masculina sobre as visões e o conhecimento que as mulheres trazem à público. Sabemos que a voz e a visibilização das experiências de mulheres são alicerces do Movimento de Mulheres dizendo o que sabemos e o que queremos, e isto é central para nossa agenda e nossa liberdade. Por que então estão algumas organizações de mulheres entregando seus boletins de notícia e seções de documentação a homens que, com boa vontade, “falam em seu nome”? Nós não demandamos o direito de falar por nós mesmas e usamos esta facilidade para desmascarar os mitos e estereótipos que ainda caracterizam a mídia masculina? Ainda assim, algumas mulheres não veem qualquer ameaça política em ter um homem, um daqueles “bons”, ocupando o status de processador do conhecimento em suas organizações.
No interior da linguagem do comprometimento, tais organizações estão em conformidade com a “integração de gênero” que basicamente reinforça as tendências bem-estaristas dentro do ativismo das mulheres através da despolitização da agência das mulheres no público.
O gênero se torna uma noção vazia, sem qualquer relação com o poder e a contestação, e as mulheres são ditas a considerarem os interesses de meninos e homens na mesma medida em que se esforçam por colmatar a escancarada lacuna entre si mesmas e os homens através do tempo e espaço. A despolitização das lutas das mulheres reside no coração da demanda por incluir homens nos espaços políticos de mulheres, porque é claro aos homens (assim como às mulheres conservadoras, a maioria da qual predomina no Movimento das Mulheres pelo mundo) que, ao ocupar um espaço político no público no qual as mulheres trabalharam e marcaram como seus, as mulheres se tornam radicais e desenvolvem uma consciência de si mesmas e de seus direitos. Esta é uma ameaça aos privilégios e interesses de homens em todas as sociedades patriarcais.
Para mim, este é o cerne da questão. Quando mulheres ocupam espaços públicos como pessoas que compreendem que por milênios foram negados seus direitos inalienáveis enquanto seres humanos, elas começam a demandar a restituição desses direitos através da criação de estruturas no interior do qual elas situam recursos financeiros, técnicos e intelectuais.
Quando uma mulher se torna articulada sobre quem são sexualmente e rejeitam os velhos mitos patriarcais sobre o que uma mulher pode ser e o que ela não é permitida se tornar, as mulheres se tornam poderosas e adquirem a habilidade de dizer não à violência, não ao trabalho não pago, não à exploração e discriminação em nome da preservação cultural. As mulheres se tornam pessoas que se relacionam com o Estado de maneiras novas e desafiadoras, não mais esperando dos homens no Estado para que distribuam alguns “favores” em nome de uma ditadura benevolente.
Tais mulheres se tornam autônomas e seu Movimento se torna a força para a transformação das relações opressivas de poder tanto na esfera pública quanto privada.
Tais mulheres são um perigo para todos os homens, independentemente de como os homens definem a si mesmos. Por esse motivo, os espaços de mulheres enquanto espaços politizados devem ser ocupados sob o aspecto de “inclusão” e aquelas mulheres que resistem tal vigilância são acusadas de serem odiadoras de homens e de agirem de formas “excludentes”; a mesma velha história que nós ouvimos durante séculos. Quando as mulheres primeiramente demandaram o direito de serem livres, de terem acesso à educação (nem mesmo acessos iguais, somente acesso ao conhecimento coletivo de suas respectivas sociedades), foram acusadas de odiarem os homens. Aquelas de nós que se recusaram a serem ritualizadas e pertencidas por homens através do casamento heterossexual, e que às vezes passaram a amar outras mulheres, foram marcadas como “hereges” e odiadoras de homens. O asfaltamento das mulheres com a escova de vitríolo heterossexista é bastante conhecido e a maioria das mulheres o temem porque esta é uma escova dura e cruel que marca as mulheres pelo resto de suas vidas como as Outras e Perigosas.
Mas nós aprendemos ao longo do extenso caminho de nossa luta pela liberdade que o comprometimento somente nos retrocede ainda mais do que onde iniciamos. Então, devemos nos manter em nossos espaços porque eles são os únicos espaços existentes que temos e podemos ter enquanto mulheres nessas sociedades profundamente odiadoras de mulheres e patriarcais em que continuamos vivendo no tempo presente.
Se os homens querem se engajar em políticas de gênero, deixem que eles formem suas próprias estruturas e criem um novo discurso político sobre a democracia e a igualdade com aqueles que vivem em suas sociedades. Enquanto mulheres politicamente conscientes, bem sabemos que os homens tem muito trabalho a fazer sobre si mesmo. Enquanto uma mãozinha é sempre útil, o antigo provérbio de que “a caridade começa em casa” se aplica ainda mais hoje em dia aos homens do que nunca antes. Os homens devem limpar suas casas patriarcais enquanto homens, primeiro, e obterem-se uma nova identidade que não dependa de possuir mulheres, de comprar e vender mulheres, de estuprar, forçosamente ocupar e pilhar os corpos de mulheres ou de expoliar as mentes das mulheres de modo que possam provar uns aos outros que são homens de verdade. Os homens precisam desenvolver uma ideologia política que não requeira que os homens excluam as mulheres de suas instituições que nós também construímos e que pertence a nós tanto quanto pertencem a todos que vivem em nossas sociedades.
Isso é onde eu me coloco enquanto uma feminista africana radical sobre os espaços sagrados que construímos, frequentemente com nossas vidas mesmas, e não estou preparada para compartilhar com qualquer homem, contanto que os homens continuem a serem privilegiados pelo patriarcado.

Solidariedade e Cuidado em Espaços Feministas

reflexão para termos em mente buscarmos adotar formas de apoio, confiança e conforto em espaços feministas.

 

Espaços feministas existem pela necessidade de criarmos esses espaços de luta e resistência. Espaços feministas são para nos fortalecermos, objetivando construirmos novas realidades individuais e coletivas, para nos apoiarmos e sermos solidárias umas com as outras, para identificarmos padrões que nos ajudam a perceber o inimigo, a causa, e para buscarmos soluções ou apenas resistirmos – buscas que temos por existir uma identificação: temos tratamento e oportunidades diferenciados devido ao machismo, a misoginia e as normas do patriarcado. Ainda que mulheres, lésbicas e outras identidades tenham suas especificidades e com isso opressões específicas, todas estas opressões são fruto de misoginia e crença na inferioridade de “ser mulher”, ou ainda, que mulher se deveria ser aos olhos da sociedade patriarcal.

Em espaços feministas você vai encontrar mulheres com traumas, mulheres ditas fortes e mulheres ditas fracas, mulheres em diferentes momentos de suas vidas, insubmissas, submissas ou com diferentes graus de submissão, adesão ao patriarcado ou a padrões estipulados pela sociedade, e mulheres sobreviventes.

Nós então não vamos encontrar mulheres iguais a nós, vamos lidar com diferenças, com ideias e objetivos nem sempre iguais.
É importante partindo disso, sabermos que o debate está aberto, de que temos diferenças. Ok.
Mas é interessante termos como princípios pelo menos duas coisas: a solidariedade e o cuidado com nossas companheiras e amigas. Obviamente não temos que ser solidárias com atos autoritários por exemplo, ou com qualquer atitude que qualquer mulher tenha só pelo fato de ela ser mulher. Seria mais um ponto de partida na nossa interação com as outras, mais uma maneira de encarar a si mesma e a outra, e uma tentativa de se opor à competitividade estimulada entre mulheres.

As vezes podemos estar muito focadas num problema específico em determinado momento para percebermos o nosso entorno – como a vida está para essas mulheres que estão aqui comigo agora -, e como está também para outras mulheres mais distantes. Mas é importante adotarmos a prática de prestarmos atenção no que outras estão trazendo e passando, e até, porque não, fazermos um esforço em compreender através do silêncio, que pode bem ser um indício de desconforto e medo, e de dinâmicas hierárquicas num espaço que precisa não gerar mais medos e domínio.
Eu tenho vivenciado que em alguns espaços, algumas atitudes e conceitos contrapõem a esta solidariedade e este cuidado fundamentais para o bem-estar de todas.

Por mais que estejamos abertas as discussões, não podemos descartar que esta “abertura” pode ser traumática, e nem todas as teses podem ser abertamente discutidas sem que se tenha cuidado, para evitarmos de machucar outras mulheres. Por exemplo, algumas teorias sobre o patriarcado, sobre o estupro, submissão e vitimização me parecem bem conflituosas para que se exponham desconsiderando que naquele espaço existem pessoas que foram estupradas, foram ou ainda são submissas, para citar algumas realidades. Geralmente com relação a submissão podemos ter uma opinião muito formada e acreditar que só a outra está sendo submissa e desta forma não enxergar nossas próprias atitudes ou situações. Eu percebi muitas vezes que o descuido, acaba por culpabilizar a vítima. E apesar de que o feminismo tem como fundamento nunca culpabilizar nenhuma vítima de estupro, quero dizer, a gente pensa que isso é consenso básico no “mundo” feminista, algumas teorias compartilhadas acabam por culpabilizar. O próprio termo estupro vem sendo desconstruído e banalizado, e tem pessoas que falam em estupro verbal por exemplo, que tentam comparar situações totalmente diferentes de estupros com o estupro. Não é solidário colocar tudo no mesmo saco, e pode ser altamente ofensivo, além de desconsiderar sofrimentos e traumas profundos. E por que haveríamos de ignorar que estes espaços agregam mulheres com traumas e dificuldades? Obviamente que não estou sugerindo que não devemos debater questões que se apresentam, mas que estejamos atentas para não machucarmos umas às outras.
Desde as formas como nos organizarmos, é fundamental que não exerçamos controle e centralidade, mas isso eu percebo estar mais em andamento, mesmo que na prática nem sempre funcione muito bem. O que nos mostra que temos muito por fazer, lembrando que para nossa autonomia é importante que geremos nossas próprias propostas, procurando criar as realidades que queremos para todas nós.

Outra coisa importante de se considerar, é que não podemos também exigir umas das outras, que sejam tomadas atitudes que julgamos mais importantes, sem levar em conta que a outra pode não estar preparada para tomar tais atitudes. O que podemos fazer é contribuir mutuamente nesta “preparação”, para que cada uma se desvincule o máximo que conseguir de suas dificuldades, daquilo que cada uma quer se desvincular. A interação entre nós tem que ser no sentido de nos libertar e de apoio mutuo, e não de reproduzirmos a opressão. Muitas vezes podemos não perceber o que estamos fazendo e estar “contribuindo” para silenciarmos a outra e deixá-la ainda mais insegura.

Penso que uma tentativa de solucionarmos problemas como estes, é de buscarmos desenvolver práticas de apoio quando nos propormos a construir e nos envolvermos em um espaço feminista. Não este cuidado paternalista atrelado ao conceito de fraqueza das mulheres, mas o cuidado para não causarmos mais danos. É essencial que espaços feministas sejam também espaços de apoio e confiança, além de serem de luta e resistência.

Pensemos enquanto feministas nas consequências de que nossas palavras e atos tenham em outras mulheres. Pensemos enquanto feministas em nos colocarmos no lugar da outra com solidariedade, não caridade.

 

enila dor