A Opressão Múltipla

segue tradução de texto de uma feminista negra de barcelona, imigrante, que escreve criticando a branquitudecentrismo do feminismo.

E antes disso, um extracto de uma frase de Barbara Smith sobre “Por que racismo é uma questão feminista?’.

BAIXE O PDF> ‘a opressão múltipla.’
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Por que o Racismo é uma questão Feminista?

“A razão pela qual racismo é uma questão feminista é facilmente explicada pela inerente definição de feminismo. Feminismo é a teoria política e prática que luta para libertar TODAS mulheres: mulheres d cor, trabalhadoras, pobres, descapacitadas, lésbicas, idosa – assim como brancas, economicamente privilegiadas, heterossexuais. Qualquer coisa menos que essa visão de liberdade total não é feminismo, mas apenas auto-agrandecimento feminino.Deixe-me deixar claro que neste ponto, antes de ir mais além, algo que você têm que entender. Mulheres brancas não trabalham no racismo para fazer um favor a alguém, apenas para benefício das mulheres terceiromundistas. Você tem que compreender como racismo distorce e reduz nossas próprias vidas assim como mulheres brancas – que racismo afeta suas chances de sobrevivencia também, e que é realmente definitivamente uma questão sua também. Até que você entenda isso, nenhuma mudança fundamental vai acontecer.

Eu também sinto que o movimento de mulheres vai lidar com o racismo numa maneira que não havia sido lidado antes em qualquer outro movimento: fundamentalmente, organicamente, e não-retoricamente. Mulheres brancas têm uma relação materialmente diferente com o sistema do racismo que os homens brancos. Elas escapam menos deste e muitas vezes funcionam como seus peões, independente se reconhecem este fato ou não. Isso é algo que viver sob o reinado branco-masculino nos impôs; e derrubar o sistema do racismo é um trabalho inerente ao feminismo e, por extensão, dos estudos feministas”

Barbara Smith, “Racism and Women’s Studies”, All the Women are White, all the Blacks are Men, But Some of Us Are Brave.

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A Opressão Múltipla

“Que o discurso e a prática política feminista sirvam para a emancipação de todas as mulheres: as mulheres negras (…), ciganas, latinas, asiáticas, indígenas (…) as mulheres pobres, descapacitadas, anciãs, lesbianas… as mulheres brancas heteras economicamente privilegiadas”

(Barbara Smith).

 

Quem domina o discurso feminista? Para quem estamos falando ou escrevendo?. Quem têm o acesso ao discurso que produzimos? Que linguagem usamos?
A linguagem na qual expressamos nossas idéias não é neutro. Demonstra de onde falamos, quem somos, que classe social ocupamos, com quem nos identificamos, quais são nossas intenções e, para quem dirigimos nosso discurso.
Com este texto quero romper o silêncio e fazer visível meu rechaço ao discurso dominante que as mulheres feministas brancas, que centram seus discursos exclusivamente no gênero, como se fosse o único determinante que oprime às mulheres. Seu discurso e prática refletem preconceitos de raza* e classe. Sob a opressão de gênero se igualam todas as mulheres. O discurso e prática em que se baseia unicamente no gênero, defende os interesses de um grupo de mulheres, não ao de todas. As análises da teoria feminista são o ponto de vista das mulheres brancas de classe média alta para mulheres brancas, em seu vocabulário acadêmico, pouco acessível. Não reflete a complexidade das experiências de mulheres que vivem a opressão múltipla, por gênero, raça, classe…

Partindo de que um movimento feminista realmente transformador incluiría a todas, eu como a única mulher negra do movimento feminista de Barcelona, sinto a necessidade de desafiar às feministas brancas com quem compartilho espaços políticos, e tambiém com as que não, a analizar de que modo a raça, o gênero e a classe se estruturam mutuamente entre si; como se experimenta o gênero desde o racismo?, A questionar os efeitos de uma educação racista, pós/neocolonial. A refletir sobre seu privilégio de raça, classe, ante a maioria das mulheres, cujas vozes estão silenciadas porque vivem preocupadas pela sobrevivência econômica, a discriminação racial. E que não possuem a mesma disponibilidade de tempo, porque têm filhes; dos curros e possuem folga uma vez na semana; nem a mesma oportunidade para criar discurso e articular de forma escrita sua opressão. Porque não têm o dinheiro para acceder aos meios de produção, nem o tempo. Quem tem acesso à universidade, à informação, as meios de comunicação, a uma carreira profissional qualificada, ao dinheiro…?

As mulheres brancas, cultas, materialmente privilegiadas, com uma variedade de opções na hora de escolher a carreira e o estilo de vida.

“Os requisitos da produção das artes visuais também contribuem para determinar em termos de classe a quem pertence a forma artística. Nestes tempos nos quais os materiais possuem uns preços abusivos, quem são nossos escritores, pintores, fotógrafes? Temos que ser conscientes dos efeitos que têm as diferenças econômicas e de classe na aquisição dos meios para produzir arte”. (Audre Lorde).

E como explica Rita Mae Brow: “A classe é muito mais que a definição de Marx sobre as relações a respeito dos meios de produção. A classe inclui teu comportamento, teus pressupostos básicos acerca da vida. Tua experiência determinada por tua classe valida estes presupostos, como te ensinaram a comportar-se, que se espera de você e dos demais, tua concepção do futuro, como você se sente, pensa, atua. São esses padrões de comportamento que as mulheres brancas e de classe média se resistem a reconhecer embora queiram perfeitamente aceitar a idéia de classe em termos marxistas, um truque que lhes impede enfrentar-se de verdade com o comportamento de classe e mudar nelas mesmas este comportamento”.

Ao longo da construção da teoria feminista baseada na opressão comum, se exclui as diferenças de uma opressão em parte compartilhada. A necessidade de unidade cria uma suposta homogenidade de experiências que na realidade não existe. As mulheres compartilhamos alguns problemas e outros não. Questionemos a política homogênea que torna invisível as particularidades das opressões específicas que oprimem a muitas mulheres, como raça, classe… que silencia a diversidade de vozes; as singularidades de cada experiência; as diferenças culturais, sociais, sexuais, de idade, identidade…
Não estamos lutando em benefício de uma ou um grupo de mulheres, tratemos temas que nos afetam a todas as mulheres.

Como mulher negra lesbiana, imigrante** sem papéis, não tenho a cor, o gênero, a sexualidade e nacionalidade apropiadas. Cresci com o racismo, sexismo, classismo, não posso esquecer-lo, está aqui, a cada passo que faço, recordando a mim de onde venho e quem sou.

Como negra me atravessa a história de meus antepassados colonizados, e hoje sou marginalizada; discriminada; associada à delinquência, à ilegalidade, à periferia; considerada mão de obra barata.

Como mulher negra levo comigo a herança da violência sexista colonial contra as mulheres negras, e hoje sou o sujeito exótico no mundo dos brancos…

A política globalizadora, os discursos pós-pós modernos vieram camuflando a realidade racista na qual vivemos, colocando-as em um marco multicultural que minimiza o fator histórico de 500 anos de escravidão, e atualmente o neocolonialismo – as leis migratórias, os centros de internamento para imigrantes, o reforçamento das fronteiras, a Europa fortaleza…
Com frequência fazemos das diferenças barreiras infranqueáveis, um motivo de segregação ou fazemos que não existem. As diferenças estão. Desenhemos novos modelos de relação entre as diferenças, mas de verdade. Vamos sair do marco meramente teórico. As palavras não são suficientes. A teoria não destrói o racismo, o classismo… É necessário atos visíveis e públicos.

Comecemos por reconhecer que diferenças existem entre nosotras, mediante a comprenssão da crítica. As diferenças não são o que nos separam. O que nos separa é a renúncia a reconhecer as diferenças e a desmontrar as distorções por omitir certas diferenças.

Fazer caso omisso das diferenças que existem entre as mulheres e as implicações que têm, representa uma ameaça para a mobilização conjunta das mulheres.

Na estrutura do poder patriarcal capitalista, um dos privilégios é ter pele branca, e apesar disso vejo muitas mulheres feministas brancas ter a mesma atitude que muitos homens, quando fazemos visível seu privilégio. Negar seu privilégio, sua responsabilidade na luta contra o racismo…ter atitudes defensivas… Com essa atitude só obstaculizamos a comunicação e a ação. As atitudes defensivas são outra forma de preservar a cegueira racial e a continuidade de atitudes racistas, classistas…

“Se participas consciente ou inconscientemente na opressão de tua companheira negra e ela te critica, responder a ira dela com a tua ira só servirá para que nossa comunicação se converta em um intercâmbio de hostilidades. Será uma perda de energias, pois não permitiremos aprender umas das outras, e sim criar uma batalha entre nosotras para impôr nossa verdade”. (Audre Lorde)

Não podemos esquecer o que é evidente, embora seja difícil aceitar as críticas, mas quando estas pôem às mulheres feministas brancas no seu lugar de opressoras.
É necessário fazer visível as diferenças, mesmo quando reconhecer-las supôe perpetuar o velho esquema de relações de dominante/dominado. Por que repetir os mesmos erros se os observamos, aprendemos deles e construimos sobre eles.
Queria recordar a educação racista que herdaram. Certos valores, discursos e atitudes de superioridade racial que incorporaram, e que sem serem questionados ficam intactos. E que é evidente, basta fazer um repasso na historia das mulheres feministas brancas. O racismo ainda requer uma implicação e um compromisso analítico. Porém, a raça não figura em nosso discurso feminista.
Quando se fala do tema é para dizer que é algo a se falar algum dia.
Ou em formato pergunta “Por que as mulheres imigrantes não se acercam?”.
Ou em formato desculpa “é que nos nossos espaços políticos não há mulheres imigrantes”.

A luta para seus protagonistas, mas nunca haverá uma mudança real e sincera se as mulheres feministas brancas não têm um papel ativo na luta contra o racismo.
Porque só a atuação coletiva gera mudanças sociais, políticas económicas…

O papel ativo das mulheres feministas brancas na luta contra o racismo não deve ser por sentimento de culpa, senão por uma necessidade de não querer formar parte de um sistema racista e lutar contra os valores racistas que foram forçadas a incorporar. E que agora que são suas, podem modificá-los.
Por último quero comentar o olhar das feministas brancas européias às mulheres do “terceiro mundo”. Muitos dos discursos feministas ocidentais referentes às mulheres do terceiro mundo, falam de nós como sei não tivessemos consciência da nossa opressão. Usam um tom vitimizador e paternalista para falar de nós.
As condições das nossas opressões não são as mesmas. São distintos os contextos em que vivem cada uma ao largo do mundo, em diferentes espaços geográficos. As diferentes realidades em que vivemos cada uma e que nos distinguem das outras mulheres não são nem inferiores nem superiores.
Ainda assim as feministas brancas nos definem, falam de e por nós, sem questionar as situações, condições e contextos de nossas vidas que nos distinguem; que nossas ferramentas de luta não são as mesmas. Tudo isso sem ter uma consciência nem fazer um trabalho real sobre o racismo e o classismo.
Quantas foram as conversas que houveram sobre gênero, violência de gênero, imigração, sexualidade, racismo… e quem tem a oportunidade para falar sobre nossa situação como mulheres, imigrantes…? As feministas brancas acadêmicas, institucionais. E por quê?
Sim sabemos onde encontrá-las. No frente contra a violência racista e classista.
Estamos invisíveis mas acessíveis.
Se faço críticas ao movimento feminista não é para minimizar a importância das lutas feministas senão com o propósito de enriquecer nosso discurso, de abrir a porta às diferenças, para crescer juntas e apoiar-nos umas às outras. Por que o que é a teoria feminista, se é racista e classista?
Proponho: trabalhar juntas tanto no comum como com a heterogeneidade das experiências; refletir sobre as diferenças e o papel que ocupamos cada uma.
Fazer oficinas sobre racismo; criticar a hegemonia racista, classista e sexista.

Carla
(feminista negra lesbiana, inmigrante sin papeles)

*Uso da palabra raça porque a partir dela se constrói o sistema racista, mas não acredito que exista raça no sentido racista da palavra.

  • Quando me refiro neste texto à imigrantes, é um termo de identificação política para diferenciar da cultura dominante.

Bibliografia:
Lorde Audre. 2003(1984). La hermana, la extranjera.2 004.
Otras inapropiables. Feminismo desde las fronteras. Traficantes de sueños.

aversão poética zine por Formiga

Descrição: Salve! O poezine Aversão Poética está sendo
desenvolvido pela necessidade criar um espaço em que minha poesia negra,lésbica e suburbana tenha visibilidade. São experiências anarquistas e feministas vivenciadas no meu cotidiano e perspectivas de próximas ação políticas pessoais, usando a arte de forma contra-culturaValeu! FORMIGA

poezine aversão poética #1
poezine aversão poética #2

projeto: violência nas relações lésbicas

‘sobre:viventes’: rompendo o silêncio sobre relações de maltrato e abuso entre lésbicas

 
A convocatória se destina a todas as lésbicas que desejem romper o silêncio ao falar, de preferência em primeira pessoa, sobre o tema e começar a pensar, discutir e visibilizar a questão da violência nas nossas comunidades e vínculos lésbicos. Esse exercício é um movimento afirmativo que pode ser recebido como o início de um processo de cura pessoal e coletiva. Ao compartilharmos, ainda que de maneira anônima e indireta, experiências pessoais, além de diminuirmos nosso isolamento, iniciamos a nossa recuperação.Utilizaremos o fanzine como espaço protegido, auto-gerido, livre de julgamento e que garante o anonimato, destinado a acolher relatos escritos (sempre que possível em primeira pessoa) sobre nossas historias focalizando as relações íntimas que tivemos nas quais vivenciamos violência sexual, maltrato emocional, físico e abuso. São encorajadas também as iniciativas que abrigam relatos de quando agimos como perpetradoras dessas dinâmicas, para que pensemos as modificações que podemos fazer sobre nossas condutas.Cuidar de nossas comunidades e curá-las da violência implica entender suas origens e relações com as heranças da cultura de abuso e almejar modificar comportamentos assumindo praticas cotidianas e intimas que desconstruam a mesma. Por isso incentivamos a todas que busquemos, na medida do possível, formas e termos não heterocentrados para nos referirmos às nossas herstórias e que tentemos preservar esse espaço como “um lugar de fora” (elsewhere), tão marginal quanto possível em relação aos aparelhos de captura do sistema heteronormativo.

Envie seu relato para: sobre.viventes@riseup.net

Aconselhamos também o uso de e-mail seguro para envio de propostas e asseguramos que será mantido o anonimato de todas as pessoas citadas nos relatos.

Prazo para envío de escritos: por hora em aberto

Porque a crítica à Marcha das Vadias não é puritanismo

Segue outro texto sobre a Marcha das Vadias. O texto trata sobre um dos argumentos usados por algumas das pessoas que não compreendem as verdadeiras razões da crítica à Marcha, ou seja é uma resposta a esta crítica.Obviamente nem todas as pessoas engajadas na Marcha usam deste argumento.

A apropriação do termo Vadia – utilizada pela Marcha das Vadias – é criticada como estratégia feminista por muitas de nós, provocando um longo debate. Eu compartilho da opinião de que a apropriação do termo não trará mudanças, que pelo contrário o termo Vadia contribui para nos objetificar e subjugar, que não ajuda como estratégia contra o estupro, e que ignora a realidade de muitas de nós, principalmente das mulheres e crianças prostituídas, embora pareça se solidarizar.

Neste debate surgiu o argumento de que seria por conservadorismo e por uma sexualidade reprimida que se critica a apropriação do termo. Em contraponto, se passou a assumir como uma espécie de “vantagem” inerente às pessoas que são a favor da apropriação da palavra vadia, como sendo bem resolvidas* e/ou sexualmente ativas.

A primeira coisa que me salta aos olhos é que sexualidade reprimida não é um defeito, é um problema, e como tal não serve como acusação nem ofensa. Dizer que as pessoas são muito reprimidas como crítica a este comportamento, é culpá-las pelo que lhes foi imposto. Já, alertar para isso e incentivar que as pessoas lutem contra esta repressão é algo construtivo. Além disso, não são todas as pessoas reprimidas que são como os estereótipos que se tem de pessoas quadradas e conservadoras. Não são também todas as pessoas que não tem sexualidade ativa que são de fato reprimidas, elas podem ter outros motivos para não serem ativas, e nem é verdade que as pessoas ativas são necessariamente felizes sexualmente.

Este tipo de afirmação parte do ponto de que sexo é algo bom sempre. Sexo nem sempre é bom, porque depende da situação, do momento, com quem, e do prazer. É uma afirmação também que ignora completamente as pessoas assexuais – que não sentem desejo sexual. Pode ser difícil da gente pensar assim num primeiro momento, já que existe uma forte repressão sexual e que somos impelidxs a pensar que a luta por uma sexualidade livre significa fazermos sexo quando bem entendermos com quem bem quisermos, quando na verdade sexualidade livre significa além disso é claro, que nossas opções sexuais não sejam motivos para sermos perseguidxs, e tampouco que as pessoas sejam perseguidas ou inferiorizadas quando não são sexualmente ativas, por opção ou não.

Apropriar-se do termo vadia não é sinônimo de uma sexualidade bem resolvida. Vai muito além da sexualidade de uma pessoa (embora possa fazer parte) as opções e táticas políticas que ela toma para si. Eu diria que optar por não usar o termo vadia tem muito mais a ver com uma preocupação quanto a sexualidade mal resolvida da sociedade e todas as implicações disso (estupro, controle, objetificação…) do que com a própria sexualidade (ainda que esta seja também mal resolvida). E embora uma mulher possa adotar o termo vadia como tática política, não significa que uma mulher que se apropria do termo vadia, se torna automaticamente politizada e liberta.

Ir para a Marcha usando “roupas de vadia” e se apropriar do termo vadia, passaram a ser considerados símbolos de autonomia e de se estar bem resolvida, naturalmente que ao criticar essas formas de ação ficamos vulneráveis para sermos consideradas mulheres fechadas, conservadoras. É bem fácil de entender o receio que muitas podem sentir em questionar a Marcha, já que nos exclui automaticamente do círculo de vanguarda.

Não podemos ignorar que existe uma pressão também na mulher para provar sua feminilidade, sexualidade e sua capacidade de fêmea. A nossa sexualidade é controlada através de repressão e também de cobranças das nossas “capacidades e poderes” sexuais. É consenso de que o termo vadia é usado quando querem nos xingar, mas não é também usado para designar mulher boa de cama no imaginário machista? Estaríamos nós inconscientemente atreladas á opinião dos outrxs quanto às nossas capacidades de sedução, porque de certa forma queremos ser aceitas, estar incluídas, mesmo que numa sociedade que nos machuca? Não estou dizendo que este sentimento é o que leva à existência da Marcha, longe disso, estou apenas colocando que este sentimento pode estar presente dificultando desassociar sexualidade com participação na Marcha (que não se trata de sexualidade mas de estupro), podendo também gerar constrangimento para quem a critica, por ter sua sexualidade questionada.

Assim as mulheres questionadoras da simbologia adotada pela Marcha das Vadias são taxadas de conservadoras e de “mal resolvidas”. Pensem bem, isso não é muito diferente de dizer que feminista é mal amada,que falta um homem no seu corpo.

*O termo bem resolvida(o) também está atrelado as especificidades no contexto patriarcal, nem sempre significa algo positivo, as vezes parece até dar uma idéia contrária, de conformidade. Ademais é bastante difícil identificar conceitos como esse, numa sociedade patriarcal onde a sexualidade é um tabu. Isso passa também pela questão do consentimento, pois uma pessoa bem resolvida pode não estar atenta aos desejos dx(s) sux(s) parceirx(s) e numa outra escala, às vontades das pessoas a quem ela tenta suas investidas.

enila dor.
Outubro 2012

http://anarcopunk.org/acaoantisexista/texto/porque-a-critica-a-marcha-das-vadias-nao-e-puritanismo/

A Prostituição é Violência: Entrevista com Sonia Sánchez

A PROSTITUIÇÃO é VIOLENCIA

entrevista a Sonia Sánchez
baixe o artigo “a prostituição é violência” em pdf

Sonia Sánchez vem da Bolivia, lá esteve dando oficinas e apresentando o livro “Ninguna Mujer Nace para Puta” (traduzivel como “Nenhuma mulher nasce para puta”) que escreveu junto a Maria Galindo de Mujeres Creando. O encontro tardou, mas quando finalmente se deu, a história de Sonia e suas reflexões surgiram com uma claridade que a cronista decidiu que falem por elas mesmas.

“Vim a Buenos Aires, desde o Chaco, para trabalhar como empregada doméstica, com quase 20 anos. Sem conhecer absolutamente nada, assim que os patrões foram me esperar em Retiro, e aí me levaram a Floresta (bairro de Buenos Aires). Estive quase 8 meses, manejava a casa, o subsolo, primeiro e segundo andar; muito grande e era eu para tudo. Me levantava às 5:30 da manhã e ia dormir às 1:30 da madrugada. Tinha que preparar o café da manhã para meus patrões, dar banho nas crianças, levar eles à escola, e depois limpar toda a casa.

A questão é que eu sempre gostei de ler, deixei de estudar para trabalhar. Nos domingos, que eram os únicos dias livres que eu tinha, eu lia o jornal. Lia tudo, até os classificados e me dei conta que não chegava a cobrar nem a quarta parte do salário que anunciavam ali. Deixei passar assim um mês. Um dia me sento com meus patrões e lhes digo ‘Olha, eu preciso que me aumentem porque estou mandando dinheiro a Chaco, e além disso eu leio e não estão me pagando o que me corresponde.’ Eles muito tranquilamente me disseram: ‘Olha, se quiser esta vai ser sua remuneração, nós não vamos aumentar’. Acreditavam que eu ia seguir aceitando porque não tinha nenhum familiar aqui, nenhum conhecido, e a onde iria. Então lhes disse que buscassem a alguém porque eu me iria. Não sabia a onde, cada vez que saía ia com uma livretinha anotando porque não conhecia nada. Logo em seguida, conseguiram outra pessoa e eu me fui. O mês inteiro de pagamento me alcançou para quinze dias em um hotel de quinta, e deixei alguma coisa de dinheiro para comprar o jornal. Aí me dei conta que não tinha nenhuma referência para conseguir trabalho. Podia falar muito bem, podia pedir que me coloquem a prova, cuidar a senhoras, cuidar crianças, limpar pratos. Mas ninguém me deu trabalho porque não tinha referências. Terminei dormindo em Praça Once. Estive uns cinco meses dormindo aí. De dia dormia no trem de Once a Moreno; e de noite, o monumento ainda não estava cercado por grades, e me acomodava em um cantinho mas passava acordada pelo medo. Toquei portas por todos lados, fui ao exército da salvação, porque queria me lavar para seguir buscando trabalho. A marginação é uma cadeia. Tinha que ter um peso, dois pesos, para tomar banho ou dormir aí. Eu lhes dizia ‘estou dormindo em Praça Once, não me podes pedir um peso porque eu nã tenho’. Recolhi a comida dos tachos de lixo, mas não dava mais. Não dava mais a fome, o medo que sentia, de não ter um teto e poder descansar bem. E além disso, a humilhação que me faziam passar as mulheres, que ainda hoje seguem limpando os banheiros da estação, porque as vezes me encostava no sofá e não me deixavam dormir. Estava muito desesperada. Nesses quase cinco meses via a essas mulheres, mas eu sempre estive na minha nuvem. Venho de uma família muito pobre, mas minha mãe sempre nos fez estudar. Ela limpava uma casa, esfregava em outra, e nós o único que faziamos era estudar. Eu estava no meu mundo de estudante, não sabia o que era a prostituição, não sabia o que era uma travesti. Não conhecia nada deste mundo. Eu o que via eram essas mulheres, aí paradas que se arrumavam, iam e vinham, mas não sabia nada.

Um dia me aproximei e disse a uma delas ‘olha, eu me chamo Sonia Sánchez, estou dormindo na praça, não posso mais’. O único que tinha era uma carteira e o único que salvei foi meu documento. Lembro de seu rosto, era uma mulher de uns quase 50 anos, e me disse ‘olha, eu faço isso, você é jovem’, claro eu tinha apenas 21 anos. ‘Ollha, eu te dou uma grana, você anda a comprar um shampoo, um creme condicionador e vem; apenas vão acercar-se a você’. E depois não lembro bem, foi minha maneira de defender-me. Sei que fui ao chuveiro, me arrumei, me banhei, me pus uma roupa bonita. E aí fui ao primeiro passo, como se diz, não lembro quanto durou, se foram quinze minutos, três horas ou dez horas. Essa foi a segunda relação que tive. Deve ser tão traumática que por isso eu não a lembro. Depois não sei quantas horas posso ter estado debaixo do chuveiro. Quando volto em mim de novo, sei que tenho que voltar a fazer isso para ter um teto no dia seguinte.

Fui prostituída cinco anos da minha vida. Nunca o vivi como um trabalho, sempre vivi como uma violência. E isso posso discutí-lo com quem seja. A prostituição não é um trabalho, é violência que se exerce contra o corpo das mulheres, além disso é violência psíquica. É terrível. O corpo pode perder a memória mas aqui na cabeça fica. Me pergunto se ser estuprada é trabalho, se ser manuseada é trabalho, se ser violentada sistematicamente é trabalho. A cada quinze minutos, a cada hora; ISSO é trabalho? Porque isso é a prostituição. Ser esfomeada é trabalho? Isso não é trabalho. É violência. A prostituição tem um único idioma: violência.”

MULHERES EM SITUAÇÃO DE PROSTITUIÇÃO

Já havia deixado a prostituição depois de quatro anos. Volto ao Chaco, me compro uma casa, ponho um negócio de roupa. Em um mês me roubam cinco vezes e não logro me reerguer. Volto à rua humano más e aí se completam cinco para poder pagar advogados e todas essas coisas. Aí é quando fico para viver em Buenos Aires. Conhecia às mulheres, aos calabouços da Comissaria 50, ou do asilo San Miguel onde estavamos 21 dias detidas. E sempre me insistiam ‘Sonia você tem que vir à organização’. Um dia fui e comecei a aprender o que era a organização, quer era AMMAR, aprendi alguns direitos, comecei a conhecer o que era a CTA1 por dentro.
E depois, foram passando coisas muito fortes, e em 2000 começaram a meter a gente nessa coisa de “trabalho sexual”.
Nós as putas somos absolutamente mentira, não há uma parte da puta que seja verdade. A puta dorme em um colchão de mentiras, todo o tempo, porque senão não poderia suportar nada. E compra todos os versos. Eu comprei o de trabalhadora sexual quando estava dentro da CTA. Me apresentava assim e nunca me pus a pensar por quê. Só que a mim me aliviava, eu estava maquiando uma realidade. Nós mesmas jamás discutimos se isso era trabalho ou não. Para as pessoas da CTA, ‘Você É TRABALHADORA, você é COMPANHEIRA’.

Quando armam uma reunião para fazer o sindicato legal, estava tudo preparado, até de Genaro2 nos estava esperando, faltava a nossa firma. E aí entramos em pânico, nunca o havíamos discutido entre as putas. Não posso discutir se a prostituição é trabalho ou não com um sindicalista, quando o cara é um prostituinte3.Começamos a ver como discutir com as mulheres da rua. E quando discute com as putas da rua, todas nos pedem trabalho. Te estão dizendo que isso não é trabalho. Quando vão buscar sus filhes na escola, não dizem ‘sou trabalhadora sexual’, dizem ‘cuido a crianças, cuido a idos*s, sou uma mulher desocupada’.

Então por quê sindicalizar? Por quê legalizar, ou branquear4 algo quando vai seguir sendo tapada? Lhes vai fazer jogo ao governo, a três ou quatro proxenetas que viajam pelo mundo com esse verso e que não param nunca em uma esquina e vivem das que siguem na rua. Isso de trabalho sexual é um discurso fracassado.

Com essa postura no ano 2002 me expulsaram da CTA. Era um lugar onde as putas não tinhamos decisão própria. Aí armamos AMMAR Capital. Começamos sozinhas a trabalhar, as reuniões as fazíamos na cozinha da minha casa, e depois a Igreja Metodista do bairro de Flores nos deu um lugar para compartir a caixa de mercadoria. Era em 2001, todas passávamos muita fome. Estavamos sentadas no solo e a pergunta era ‘Quê somos?, quem somos? A onde vamos?’. Nos acabavam de expulsar de um espaço ‘progressista’ por não querer que nos imponham uma identidade. Quê somos se não somos trabalhadoras sexuais? Não podíamos pronunciar a palavra prostituta. Nos queimava. Mas antes que isso, eu perguntava, quê somos? O já havíamos nascido prostitutas? Não. Uma dizia mãe. Não, antes que isso somos mulheres. Foi toda uma tarde até que pudemos dizer a palavra mulher”.

Então decidimos apresentar-nos como mulheres em situação de prostituição.

Em 2006 eu renunciei a AMMAR Capital. Por que temos que distribuir camisinhas? Nos vendem o discurso de que é para que as putas se cuidem. É mentira, é para que o prostituinte não se enferme, quando ele é o que infecta a você. Que passava quando dizíamos que a prostituição não é trabalho? Queremos trabalho. Não temos educação, queremos educação. Pedíamos essas duas coisas e o governo nos respondia com 7000 camisinhas e 240 cestas básicas por mês.

Queríamos micro-empreendimentos, a puta não tem a cultura do trabalho, tem a cultura da exploração. Havíam anotadas 50 e nos dava para 10. Aprendiam a fazer coisas, mas para vender onde. Se as vendiam na rua, te perseguíam como aos vendedores ambulantes. Tínhamos um espaço que se chamava ‘espaço mulher’, era todas as quartas e debatíamos sobre o tema da violência intra-familiar e institucional, chegamos a nomear ao marido como cafetão, a dizer que éramos violadas quando não tinhamos vontade de fazer sexo. Três cafetões participaram de algumas reuniões porque as mulheres os traziam para que escutassem. Foi um espaço muito forte, muito enriquecedor, que se acabou quando caíram duas de nossas companheiras, Marcela Sanagua y Carmen lfrán, presas pela legislatura.

MUJERES CREANDO

Em 2006, María Galindo faz uma mostra, “Nenhuma Mulher Nasce para Puta” (Ninguna Mujer Nace para Puta), e me convida. Trazemos essa mostra a Argentina, ao Centro Cultural Borges, e por aí passaram mais de 5000 pessoas. Aí começamos a desenhar as fronteiras do Patriarcado para que existam as boas e as más. A iniciativa nasceu desde a puta. Aí tivemos voz própria desde um lugar não permitido. Não era a rua, nem o bordel. E aí operaram os parasitas, os que vêm a ajudar mas que em realidade te expropriam a sua luta. Operaram no pior de nós, termina a mostra, e AMMAR com uma ruptura. Para mim a Organização tinha sentido para pensar-nos e pensar, correr-nos de lugar. Diga trabalho ou diga “situação de prostituição”. Eu não me organizei para seguir estando presa.

Os guetos são um fracasso. A puta tem um roteiro oficial que é o da AIDS, IPS5 e camisinha. A puta discute sobre economia, política ou educação? Está com a goela cheia de camisinhas! Seus interlocutores são outras putas e o cafetão. É um mundo muito pobre.

Em troca se você se organiza com outras mulheres teu mundo cresce, se faz muito mais rica a discussão.

Agora estou em Lavaca que é uma cooperativa de jornalistas, embora não sou jornalista me abriram esse espaço. Formamos um grupo que se chama Las Locas. É uma palavra que nos dizem às mulheres para desqualificar-nos. E desde a loucura você pode criar. Há jornalistas, há uma puta, tem profesoras, uma estudante, diversos mundos de mulheres que não temos medo de dizer o que sentimos, de fazer um escrache e de sustentar um debate político sobre nós mesmas nessa sociedade. Começamos este ano em um Congresso de HIV AIDS de America Latina e Caribe. O organizaram as trabalhadoras sexuais da CTA e vieram de Brasil e outros países, muito dinheiro. Cobravam 250 dólares para entrar.

Fizemos um panfleto que dizia “enquanto vocês falam as putas seguem se infectando”. E disso não falam. A camisinha que te dão o saca o prostituinte6 com 5 pesos mais. Te prostitui a fome por 15 pesos, o prostituinte te dá 20 mas tira a camisinha. Com a fome não há negociação possível. Devemos discutir isso, mas não entre as putas, não se pode mais meter mais culpa a essas mulheres. Essa mulher que não usou a camisinha, não vem ao outro dia dizer ‘olha eu não usei’porque lhe dá vergonha, porque no dia anterior e no anterior e no anterior te vêm escutando como ao papagaio.

Tem que discutir com o Ministério da Saúde, com as ONGs porque isso não serve.
Hoje ao SIDA custa 5 pesos para entrar na sua vida. Não se discute ao fundo o tema da prostituição. Se fala na zona vermelha, das travestis, das putas; mas nunca do prostituinte7.Ao que consome, ao homem que busca nunca se o coloca em questão. Nem sequer às organizações de putas. O cafetão, a polícia e o prostituinte estão os três no mesmo nível. É uma cadeia de exploração. Isso as organizações de putas não o questionam. E tampouco questionam o lugar das mulheres nesta sociedade, que eu não chamo de patriarcal, que eu chamo de Estado Proxeneta. O lugar sexual nosso como objetos sexuais, por isso digo todas temos cara de putas. Toquemos mais a fundo, toquemos o corpo, toquemos a tudo isso.

1 Sigla para Central de Trabalhadores Argentinos, uma central sindical (seria equivalente a CUT no Brasil, Central Única d*s
Trabalhador*s).

2 Prostituinte aqui seria a tradução feita para designar aquele que prostitui. Segundo a compreensão abolicionista, o termo ‘cliente’ é uma maneira de naturalizar essa relação social. A pessoa que se beneficia do uso do corpo de uma pessoa que é
prostituída para sua própria satisfação está prostituindo essa pessoa e não ‘consumindo’, a existência da demanda possibilita que exista a exploração sexual chamada socialmente de ‘prostituição’.

aqui se refere a ‘trabalhar em branco’, ou seja ter carteira assinada. O contrário seria na argentina, ’trabalhar em

negro’, ou seja, em situação ilegal e não reconhecida, sem direitos garantidos como seguro saúde ou desemprego.

4 O ‘cliente’, no caso.

5 Novamente, nunca custa lembrar, o tal cliente de prostituição ou explorador sexual com dinheiro

lesbianismo político & separatismo

A base do feminismo lesbiano, e também do feminismo radical, é o amor entre as mulheres. Esse é um conceito essencial dentro do feminismo. Seguindo esse conceito, pode-se afirmar que a lésbica é a mulher cuja consciência de si própria e energias (inclusive energias sexuais) são direcionadas às mulheres. Ela se identifica com mulheres, e as procura em busca de apoio emocional, físico, econômico e político. Ela se importa com mulheres, e ela se importa com ela própria. O amor e a amizade entre mulheres são vistos e tratados com hostilidade pela sociedade e cultura supremacista masculina. A amizade feminina foi transformada em um tabu, ao ponto de que há mulheres que repudiam suas semelhantes. Por esse motivo, a sobrevivência do feminismo depende da solidarização entre as mulheres. Se não nos amarmos umas às outras e a nós mesmas, não possuiremos uma base com a qual identificar e rejeitar atrocidades praticadas contra mulheres. Porém, o amor entre as mulheres é mais do que uma versão feminina de camaradagem.

A criação de laços que é o amor entre as mulheres ou ginoafeto como denominado por Janice Raymond, é muito diferente da união entre homens. Esta última tem sido o que mantém a dominação masculina, e está baseada no reconhecimento da diferença que os homens vêem entre eles próprios e as mulheres, e que se fundamenta num conjunto de comportamentos — a masculinidade — que cria e mantém o poder masculino. Mary Daly definiu a união entre mulheres que amam mulheres como sendo biofílica (amor à vida), a fim de distingui-la de outras formas de criação de laços na “sado-sociedade” supremacista masculina. Ela aponta que a camaradagem/união masculina subsiste da energia sugada das mulheres.

A lésbica do feminismo lésbico é diferente da homossexual feminina ou desviante sexual feminina ou a lésbica de movimentos assimilacionistas, e também muito diferente do homem gay da libertação gay. Embora a libertação gay tenha reconhecido que a orientação sexual é construída socialmente, em nenhum momento fazia a sugestão de que a homossexualidade poderia surgir de uma escolha voluntária, a ser feita como uma forma de resistência ao sistema político opressivo. A feminista lésbica encara seu lesbianismo como algo que pode ser escolhido, e como resistência política posta à prática. Os homens da libertação gay costumam dizer “eu tenho orgulho”, enquanto que feministas lésbicas dizem “eu escolho”. Isso não implica que a feminista lésbica tenha escolhido seu lesbianismo de forma consciente. Ela pode ter sido lésbica antes de se identificar como feminista. Mas, independente da forma que uma mulher vivencia o seu lesbianismo, ela se rebelou contra a exigência de tornar-se a mulher dependente do homem, a mulher heterossexual. Essa rebelião impõe um grande risco ao patriarcado.

A ênfase na necessidade de algum grau de separação da política, das instituições e da cultura dos homens é uma das características que distingue o feminismo lésbico de outras modalidades de política lésbica. Tal separação é necessária porque o feminismo lésbico, bem como o feminismo radical, se baseia na noção de que as mulheres vivem, como descrito por Mary Daly, num permanente “estado de atrocidade”. O estado de atrocidade é a condição na qual as mulheres têm sobrevivido às violências e torturas ao longo da história da civilização. Essas violências incluem, por exemplo, a violência doméstica que destrói as vidas das mulheres, abusos, estupros, incesto, a indústria do sexo e o tráfico internacional de mulheres. Essa condição na qual as mulheres vivem é criada e defendida por um sistema de idéias representado pelas religiões do mundo, pela psicanálise, pela pornografia, sexologia, ciência, medicina e pelas ciências sociais. Todos esses sistemas de idéias estão fundados no que Monique Wittig denomina o “pensamento hétero”, ou seja, construídos pela heterossexualidade e sua dinâmica de dominação e submissão. Aos olhos de feministas lésbicas radicais, esse pensamento hétero é universalmente difundido nos sistemas de idéias da supremacia masculina.

A criação de espaços para abrigar uma nova visão do mundo é um dos motivos essenciais para o separatismo lésbico. Lésbicas se organizam para formar seus próprios grupos, espaços, expressões artísticas, etc. Frequentemente, estes espaços são abertos para mulheres em geral, não apenas para lésbicas.

O separatismo lésbico pode assumir duas formas diferentes. Algumas lésbicas buscam criar uma cultura, espaço e comunidade lésbica na qual elas podem viver tão distantes do mundo dominado pelos homens quanto possível. Essa forma de separatismo pode apresentar riscos para a sua ética feminista. Ela pode culminar em uma dissociação do mundo, ao ponto de que o contexto no qual certas práticas e idéias surgiram na supremacia masculina é esquecido, e tudo que uma lésbica faz ou pensa recebe apoio. Portanto, as práticas sadomasoquistas criadas por lésbicas ou papéis sexuais butch/femme, por exemplo, podem parecer práticas lésbicas legítimas, ao invés de serem originárias da dominação masculina. Tais práticas podem aparecer em um espaço de mulheres politicamente dissociado do mundo masculino; no entanto, elas inserem essas mulheres de forma muito eficiente no mundo da sexualidade esquerdista e masculina gay, caracterizado pela erotização da dominação e submissão, da desigualdade.

A segunda forma de separatismo é aquela em que as mulheres continuam vivendo no mundo que os homens criaram ao mesmo tempo em que trabalham por modificá-lo a partir de um espaço construído pela amizade e cultura femininas. Nessa forma de separatismo, ou “separatismo tático”, feministas lésbicas podem desenvolver idéias e práticas mantendo em vista a realidade das vidas da maioria das mulheres. Dessa forma, o sadomasoquismo, por exemplo, deve ser avaliado quanto a suas origens na cultura supremacista masculina, suas implicações na vida das mulheres e se é adequado para a sobrevivência coletiva das mesmas. A base do feminismo lésbico sempre foi uma cultura e instituições feministas lésbicas separatistas.

O feminismo lésbico adotou do feminismo radical o conceito de que “o pessoal é político”, o qual aponta que a hierarquia deve ser eliminada da esfera privada se desejamos que a vida pública mude. Dessa forma, feministas lésbicas rejeitam papéis sexuais e qualquer manifestação de desigualdade em relacionamentos lésbicos. Compreendemos que lésbicas que adotam papéis sexuais estão reproduzindo os padrões nocivos da heterossexualidade que constituem obstáculos para a libertação lésbica.

A concepção do futuro pelo feminismo lésbico não consiste em um mundo público de oportunidades oficialmente iguais construído sobre um mundo privado no qual a desigualdade pode ser erotizada e utilizada para a excitação sexual. As esferas pública e privada devem ser parte de um todo comum, moldado para representar uma nova ética.

O feminismo lésbico desenvolveu a noção de que o pessoal é político em uma análise crítica não apenas de alguns aspectos da heterossexualidade, mas da heterossexualidade em si. Nessa análise, a heterossexualidade é vista como uma instituição política e não o resultado da biologia ou da preferência individual. A heterossexualidade deve ser analisada como um sistema político que possui tanta influência e implicações quanto o capitalismo e o sistema de castas. No sistema de castas da heterossexualidade, as mulheres são coagidas a servir aos homens de forma sexual, material e emocional. O seu trabalho é explorado através da sua posição subordinada e justificado pelo amor romântico ou por prerrogativas sociais. O sistema é reforçado pelo que Adrienne Rich chama “invisibilidade lésbica”, violência masculina, pressões familiares, restrições econômicas, o desejo de se adequar e de evitar exclusão e discriminação. Sheila Jeffreys sugeriu que o termo “heterossexual” seja utilizado para denominar práticas sexuais que surgem do poder masculino e da submissão feminina e erotizam diferenças de poder, e que o termo “homossexual” seja utilizado para definir o desejo que erotiza a igualdade.

A criação de uma sexualidade da igualdade em oposição à sexualidade da supremacia masculina, que erotiza a dominância e a subordinação, é crucial dentro do feminismo lésbico. A sexualidade na supremacia masculina é construída por via da opressão de mulheres e possui a função essencial mantê-la. A sexualidade é socialmente construída para homens a partir de sua posição de dominação, e para mulheres a partir de sua posição de subordinação. Dessa forma, a desigualdade erotizada das mulheres é o que constitui a excitação do sexo na supremacia masculina. Consequentemente, a sexualidade masculina comumente assume a forma de agressão, dominação, objetificação, a separação do ato sexual e emoção e o foco do sexo inteiramente direcionado ao intercurso e à penetração do pênis no corpo da mulher.

A sexualidade feminina assume a forma de prazer na sua posição subordinada, e a erotização da dominação do homem. Esse sistema não se demonstra eficiente. Por este motivo, uma legião de sexólogos e colunistas de dicas sexuais buscam incentivar, treinar e chantagear mulheres para que tenham orgasmos, ou ao menos entusiasmo sexual, no intercurso com homens. Feministas lésbicas identificaram o fracasso das mulheres em obter esse prazer (menos de 30% das mulheres heterossexuais relatam ter orgasmos freqüentes durante o coito) como resistência política, o que pode ser interpretado por “autoridades do sexo” como uma “ameaça à civilização”.

A construção da sexualidade ao redor da erotização da subordinação das mulheres e da dominação dos homens é problemática por outras razões, visto que ela sustenta a violência sexual masculina em suas diversas formas e cria a prerrogativa sexual dos homens de utilizar as mulheres, que se dissociam para sobreviver, na indústria do sexo, da prostituição e da pornografia. Por isso, feministas lésbicas e radicais compreendem que a sexualidade deve mudar. A sexualidade que torna excitante a opressão das mulheres é radicalmente contrária a qualquer movimento de mulheres em busca de libertação. Somente uma sexualidade igualitária é condizente com a ética feminista e a liberdade das mulheres.

Sexo e Consentimento

SEXO E CONSENTIMENTO SEGUNDO SHEILA JEFFREYS

texto apresentado em jornada da campanha abolicionista “Ni una mujer mas victima de las redes de prostitucion” em La Plata, Argentina, 2012, problematiza o conceito de consentimento.

Refletimos sobre a noção de sexo e consentimento expressada por Sheila Jeffreys em “La herejía Lesbiana” (The Lesbian Heresy).
No sistema de supremacia masculina a construção do sexo implica a conotação erótica da subordinação das mulheres e do domínio dos homens, o que Sheila Jeffreys denomina “desejo heterossexual”. As consequências desta construção da sexualidade incluem a violação e o assassinato de mulheres e criaturas, assim como restrições a sua mobilidade, vestimenta, profissões.
A conotação erótica da desigualdade é fundamental para o sistema de supremacia masculina, como diz em Anticlímax é “o azeite que lubrifica a máquina da Supremacia Masculina”.

A ideologia patriarcal tenta convencer as mulheres de que o fato de que os homens as desejem as fazem poderosas, apesar das suas desvantagens sociais. Cicely Hamilton, feminista britanica, acusou aos homens de ter feito hincapie na capacidade sexual da mulher com o fim de satisfazer seu próprio desejo. O sexo proporcionou às mulheres “os meios de sustento”. A teórica lesbiana Monique Wittig demonstrou como a redução das mulheres à categoria de sexo contribuiu na sua opressão:

“A categoria de sexo é o produto da sociedade heterossexual que converte a metade da população em seres sexuais, as mulheres, embora extremadamente visíveis como seres sexuais, permanecem invisíveis como seres sociais”.

Consentimento, coartada e invisibilização da violência sexual. Quem são os beneficiários?

Um modelo de sexualidade baseado na idéia de consentimento parte da supremacia masculina. Segundo este modelo, uma pessoa, habitualmente um homem, utiliza sexualmente o corpo de outra pessoa, é um modelo baseado na dominação e na submissão, na atividade e na passividade. Não é mútuo. Não descansa na participação social de ambas as partes, não implica igualdade, nem reciprocidade.

O conceito de consentimento é um instrumento que serve para ocultar a desigualdade existente nas relações heterossexuais. A idéia de consentimento logra que a utilização e o abuso sexual das mulheres não se considerem dano nem infração dos direitos humanos. O consentimento das mulheres que pode obrigá-las a sofrer um coito indesejado ou a aceitar sua função como ajuda masturbatória, está construído atravé das pressões às quais se encontram submetidas: a dependência econômica, o abuso sexual, os maus-tratos, a propaganda acerca da função das mulheres.

Pode haver livre escolha neste contexto?

O problema que supôe considerar irrevogável o consentimento dado ao princípio em uma cena de S/M é comparável com a situação das mulheres que sofrem violações dentro do matrimônio ou em sua relação de pareja.

Caso Operação Spánner, Consentimento das Vítimas

Este caso de sadomasoquismo consensuado, em Gran Bretaña, 1992, foi célebre. A sentença considerou que o consentimento não é motivo de absolvição em um caso de danos corporais sem motivo suficiente quando se infligiam danos ou feridas que atentan contra a saúde e o bem-estar da parte contrária. Princípio irrevogável do consentimento que se chama “não-consentimento consensuado” e sua definição é a seguinte:

O princípio irrevogável de consentimento se chama “não-consentimento consensuado” e sua definição é a seguinte:

“Conscientes en estar aí, conscientes em deixar-lhes fazer o que queiram, segue seeno tua decisão inicial”.

O consentimento se converte em algo que só ao despertar d dia seguinte se pode calibrar, segundo a sensação de incômodo que se tem. Muitas vezes ocorre no SM que não se há dado consentimento ao que mais excita, nem se daria nunca se o pedissem, e apesar de tudo, o fazem. Se fazes coisas que a ambas partes lhes parece bem ao dia seguinte, é bom, se te sentís fodida, não o é.

As que professam o não-consentimento consensuado demonstram uma nada surpreendente falta de solidariedade, de signo anti-feminista, com as mulheres que resultam gravemente feridas na prática SM. Segundo Alix, “qualquer pessoa que seja tão estúpida que não sabe com quem se vai, se merece tudo o que lhe ocurra”. Essa é a teoria da evolução posta na prática.

A perspectiva feminista mantém que as mulheres não são merecedoras de abusos, independente de seu comportamento e de que # responsável de abuso é sempre # abusador#.

Quando a construção do sexo significa a conotação erótica da desigualdade, a idéia de consentimento pode incitar a violência masculina e ao sadomasoquismo. A idéia de consentimento se erige então em um tabu que deve ser transgredido.

A nova indústria do sexo lésbico institucionaliza e mercantiliza a conotação erótica da subordinação das mulheres, revendendo-a como prazerosa e revolucionária.

A pornografia e sexologia masculina entenderam ao lesbianismo como uma mera prática sexual.
Agora que a revolução sexual chegou às lesbianas, contamos com os problemas relacionados com a prática da desigualdade eroticamente conotada ou o desejo heterossexual, as consequencias da opressão das mulheres, o dano provocado pelo abuso sexual, a utilização das mulheres na indústria do sexo e a lesbofobia, facilitaram a matéria prima: as lesbianas autoras e modelos da indústria do sexo, que sofrem maltrato nas festas SM e que atuam diretamente em espetáculo público.

Pornografia e prostituição

A prostituição não é um trabalho como qualquer outro, obedece especificamente à opressão das mulheres. Só pode existir porque uma classe dirigente é capaz de converter em objetos a um grupo de pessoas obrigadas a satisfazer suas necessidades – sem esta necessidade, sem seus privilégios sexuais, sem pobreza, nem exploração, não existiria a prostituição. O estigma que portam as mulheres em situação de prostituição está vinculado ao abuso real que resulta da utilização das mulheres por meio da prostituição. Para poder infrigir um trato infra-humano a um determinado grupo de pessoas faz falta classificá-las de inferiores e justificar deste modo o abuso das mesmas. As lesbianas que desejam usar a outras mulheres mediante a prostituição dispôem de uma reserva de outras mulheres curtidas por homens.

As lesbianas consumidoras de material pornográfico estão utilizando a outras mulheres da indústria sexual, aspiram em última instância ao que elas entendem como privilégio dos homens. Isso inclui a utilização das mulheres mediante a prostituição. A erótica e a pornografia requerem a utilização das mulheres na indústria sexual, é pouco provável que estejam fazendo amor, senão que ganhando seu sustento.

MacKinnon explica que na dinâmica da pornografia tudo aquilo que excita aos homens se considera sexo. Na pornografia, a violência mesma é sexo, a desigualdade é sexo. Sem hierarquia a pornografia não funciona. Sem domínio, sem violência não pode haver excitação sexual. Longe de construir uma nova sexualidade, estão reutilizando a velha, se encontram confinadas aos clises patriarcais.

Gênero desde as teóricas radicais e Gênero desde as teorias lésbicas e gays

Algumas teóricas feministas radicais assinalam que a idéia de gênero tende a ocultar as relações de poder do sistema de supremacia masculina como algo que pode ser superado. A idéia do caráter inevitável do gênero e do falogocentrismo parece a Sheila Jeffreys uma visão pessimista e determinista, concordante com a tendência do pós-modernismo de considerar a militância política e a fé na viabilidade de uma mudança política como uma atitude suspeita.

Em um dos primeiros manifestos feministas lésbicos, “uma lesbiana é a fúria de todas as mulheres condensada até o ponto da explosão”. Se lutava contra o patriarcado, se buscava destruí-lo, sair dos estereotipos de gênero, criar outro tipo de sociedade.

A versão de gênero introduzida pela teoria lesbiana e gay é distinta das teóricas feministas. Se trata de um gênero despolitizado, não associado à violência sexual, à desigualdade econômica, não nomeia aos homens como historicamente perpretadores e beneficiados pela opressão. Reproduzem a categoria binária feminino-masculino, passivo-ativo. Excluem aos homens de análise, o poder se converte em um sentido foucaultiano, em algo que navega por aí em perpétua reconstituição, sem conexão com as pessoas reais.

Cabe perguntar em interesse de quem ou quens se constitui esses regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo.

Nos interpelam que se há consentimento, se é uma escolha a prostituição, não há violência, nos acusam de vitimizar. E Sheila Jeffreys nos permite responder: na conotação erótica da desigualdade. Na supremacia masculina, no prostituinte, aí está a violência.

Redescubrindo o gênero como jogo, apresentando como diversão, subjetivo, essa teoria serve de sustento, é funcional ao sistema patriarcal capitalista, propagandizando a prostituição como escolha e o S/M como jogo. Apresentando como revolucionárias as historicas opressões. A transformação politica se sustitui pela satisfação sexual pessoal mediante a prática S/M. Os artigos periodísticos anunciam e promocionam brinquedos sexuais, vídeos pornográficos, serviço de prostituição… Tudo o que possa dar dinheiro por meio de comercialização e a mercantilização do sexo. Com a cumplicidade da indústria farmacológica, incentivando o uso de estimulantes e hormonios, estimulando os estereotipos, o consumismo, copiando o que se vê na pornografia, provocando excitação, auto-lesões, doenças e condutas criminais.

A sexualidade da crueldade S/M, segundo Sheila Jeffreys, não é inata, nem inevitável: “A experiência da opressão prejudicou nossa capacidade de amar-nos umas a outres com dignidade e amor próprio, e não somente com um intenso sentimento de prazer. Podemos enfrentar a todas as pressões que nos querem fazer amar a bota que nos golpeia enviando-nos de volta à submissão. Podemos optar por não manter uma relação amorosa com nossos opressores. Podemos escolher uma sexualidade que não participa da nossa opressão, senão da nossa politica de resistência”.

O S/M, o sistema prostituinte, os violadores, para justificar-se manipulam politicamente a noção de consentimento. A idéia de que alguém possa buscar deliberadamente o abuso e a degradação é muito facilmente extrapolável à justificação dos sistemas políticos opressivos. Por consiguinte, o princípio político básico do S/M e da prostituição como escolha contradiz nossas lutas abolicionista do sistema prostituinte e de erradicação do abuso sexual infantil.
Lutamos por uma sociedade baseada no direito de todas as pessoas à dignidade, a igualdade, o amor próprio e à autonomia.

Raquel Disenfeld

pequena nota sobre a glorificação e hierarquização machista da violência no anarquismo

tradução de comentário retirado da revista Homnicidium Ediciones Nihilistas y Antipatriarcales, mais comentários próprios.

Uma explosão material pode não implicar nenhuma explosão de Si mesme

Este número foi aberto com a seguinte frase da CCF1“A aposta é não deixar que esta versão alienada e patriarcal da violência anarquista se estabeleça em nosso interior e, a cada dia dar nossas próprias batalhas pessoais para não nos tornar-nos catives das imitações pálidas do Poder”.

“O materialismo manifesto que se aprecia no texto primeiro, é muito similar em tal aspecto a muitas das reivindicações da FAI/FRI2 e a outros textos como o recente “As malignas gargalhadas de uns espíritos muito livres ou Não nos defendas compadre que a Anarquia sabe defender-se sozinha!”, que não contém mais que “críticas” repetidas até sua vacuidade voltados à impossibilidade de avançar aprofundando que concluem sempre na (exclusiva) exortação à ação netamente material de incendiar, explodir, matar, etc.

Com isso, e me remetendo à frase que escolhi para abrir este número, quero – embora de maneira nada exaustiva desta vez – evidenciar em tal materialismo uma sobrevaloração da violência, que identifico como valor patriarcal.

Dita sobrevaloração ocorre dentro do paradigma masculino bélico no qual a violência (e a guerra) é uma gesta heróica, glorificada e sacralizada que desvalorizando, anula os campos de experimentação criativos, emocionais, intelectuais, energéticos, e outros.

É tão universal a aceitação desta violência, que inclusive es mais “revolucionaries” e “nihilistas” assumem o uso da violência em uma lógica que não se posiciona FORA das realidades a se atacar, senão dentro destas mesmas e seus sistemas dicotômicos de referência e identificação:

Unes têm razões altruístas ou a propriedade da “verdade” para fazer uso da violência e, a violência do “inimigo” satanizado e vilanizado porta a pior ameaça para a “liberdade”. 3

Unes são os boms e outres os maus.

“Quem não está comigo está contra mim”. (…)

Esboçando brevemente algumas características desta sobrevaloração materialista, observo também a consequente supressão de expressões que não sejam as de vingança, ódio, desprezo ou outras emoções “duras” ou “masculinas” que ademais, funcionam como uma corda que ata ae Individue a um mundo que, se supôe, lhe resulta alheio.

Adverto aqui também a jaula de expressividade que em outro momento falei.

O modelo bélico enraizou tão profundamente na mente das pessoas que inclusive as relações de Afinidade sucumbiram a estas lógicas. Basta com pensar no uso do termo “guerrilha urbana” para identificar-se como grupo ou individualmente, em prol do puro interesse pessoal ou da experimentação da Afinidade como caudal de paixões, potenciamento, calor, intro-destruição, e mais.. – devenindo ocasionalmente explosiva. 4

Não há possível Afirmação como Individue quando se permanece dentro dos sistemas de referência valorizados neste mundo.” 5


1 Conspiração Células de Fogo, grupe de guerrilha urbana informal que atua no território grego.

2 Federação Anarquista Informal, criada na Itália, um grupo informal insurrecional.

3 Me incomoda MUITO essa linguagem maniqueísta no anarquismo, me parece inclusive infantil. É tanta construção com base numa antítese em relação a um outro demonizado, tanta excisão de aspectos do próprio eu que se desprezam, que os anarquistas acabam se tornando a mais pura expressão do autoritarismo e todas coisas detestáveis do sistema que tanto afirmam opôr-se e definir-se em negatividade. (Nota da Tradutora)

4 Esse masculinismo que parece com a medição e exibição de falos entre a camaradagem masculina, inclusive é um dos grandes entraves no estabelecimento de uma cultura de segurança, não sendo muitos os que colocam em risco pessoas por gabar-se de atos criminais e ilegais. Acabam também lamentávelmente não pondo em risco somente a eles mesmos, mas também às idéias (N.T.).

5 Numa sociedade patriarcal, onde o valor é o homem, não é a toa que aquilo que se identifica com a masculinidade seja mais valorado, como é o caso da ação violenta em contraposição a outras ações anti-sistêmicas, com tanto ou mais potencial de destruição que uma ação direta física. Afinal pra acabar com esse mundo se levará mais que bombas, e o ato de construir (novas relações, novos valores, etc), que é talvez mais trabalhoso, lento e exigente, é também um ato de destruição mais radical.

Também acho que a identificação com masculino, na velha análise feminista, é identificar-se com o Poder, no caso o poder masculino, é recuperar um ‘falo’ que a mulher não possuiria segundo o discurso patriarcal. Quando temos internalizado o colonizador e seus valores, querer se parecer com ele também passa por querer se tornar mais ‘masculina’, e portanto, virulenta, diferenciar-se das demais mulheres e não querer ser uma, querer identificar-se com a potência, com a agressão, com a masculinidade como mecanismo de falsa solução a baixa-auto-estima de gênero. No sistema simbólico patriarcal, as mulheres estão relacionadas com o pacifismo. Mulheres pedem a paz, homens querem fazer mais guerras. Mulheres participam em revoluções de garotos onde eles trocam de lugar entre si. Ainda creio na necessidade de redefinir violência em contextos de auto-defesa e ataque ao Capital e ao Patriarcado, em contextos insurrecionais e de protestos e repressão estatal, mas também de uma recuperação não-reacionária de valores não-violentos para opor-se a esse sistema de valores masculinos que só dá giros por si mesmo sem mudar substancialmente (N.T.).

***

O tema da fúria é super importante no feminismo radical.
Audre fala sobre os ‘usos da raiva’.
E não descartamos a ação violenta e tampouco a Auto-defesa. Somos feministas radicais, não queremos e muitas vezes nem podemos terceirizar nossas necessidades de defender-mos e de ‘justiça’.
Mas é distinto do que se quer criticar aqui, pois dentro do anarquismo masculinista somente é válida a ação violenta e inclusive se criam ícones em cima de ações (veneração de presos políticos, pessoas que fizeram ações ilegais) e mártires da causa (Mauricio Morales por exemplo, anarquista chileno que morreu ao transportar artefato explosivo). Frente a isso outros trabalhos ativistas são depreciados, até mesmo reprimidos, chamados de ‘reformismo’ pelo simples fato de que não é tão visível e heróico, glorioso quanto explodir um banco.
Dizem que aquel*s que resgatan animais ou os castram, os ‘proteccionistas’, são assistencialistas, até mesmo de cristianos nos acusam, mas não oferecem nada mais que mais negligência aos mesmos, e ainda te criticarão por não ser radical o suficiente, dirão que apenas está perpetuando a escravização de animais ao abrigar um e retirá-lo da situação de rua e risco em que se encontra. Por meio de retórica primitivista (uma teoria inclusive, extremamente anti-feminista, advogando idéias essencialistas e uma construção evolucionista, racista, romanticista sobre a natureza ou sobre uma tal ‘primitividade’) advogam atitudes abandônicas em relação a animais, dizendo que voltarão a ser selvagens caso você não intervenha proporcionando abrigo, afeto e condições de vida. Como se isso pudesse ocorrer num contexto de cidades!
Como também se não soubessemos que é uma merda o mero fato de que hajam animais domesticados, e que essa é a mesma raíz do problema,  somos os que melhor sabem isso senão não os castraríamos.

Isso pra não comentar muitas outras coisas. O Feminismo para esses anarquistas é também, arrogantemente dizem, uma causa reformista. (O anarquismo não é né? Acaso não passa de uma mera perpetuação e regurjitação de ideologia Masculina e instituições masculinas. O separatismo é mais radical que essa merda).

Sobre a romantização da morte. Ainda digo que é muito diferente o morrer para mulheres, lésbicas, travestis, pessoas de cor, indígenas.
A morte numa ação, o ‘morrer lutando’ deles, tem haver com a economia de subjetivação masculina. Os homens são construídos para serem guerreiros, ou melhor, agentes do Estado, policiais encarnados na corporalidade masculina, é a polícia mais primitiva. Ser homem é ser policial de uma forma muito radical, é a subjetivação e preparação para serem sujeites que garantem o Estado, a Nação, por meio da violência, são criados e são um projeto de subjetividade tão caro ao sistema porque é o mesmo que o mantém, são o Estado entre nós, e com ele se identificam em seu âmago, mesmo os Anarquistas. Porque matarão as suas companheiras se puderem, porque se matam entre eles provando quem tem a maior pica, porque são um braço do sistema, treinam seu corpo e se vigorexixam por uma demanda internalizada do Estado e do Sistema de que vajam para o fronte da batalha defender a nação, consomem pornografia para aprender a estuprar porque é outra arma de guerra e de conquista, dominação.

Para eles pode ser uma ‘escolha’ morrer, e a dignidade pode estar definida somente como sendo o não morrer humilhado, mas morrer no ‘combate’, ‘honrosamente’.

Para nós mulheres, lésbicas, travestis, pessoas de cor, originárias… que somos dizimadas diariamente, nossa batalha é constante. É sobreviver, e estarmos vivas é um signo de vitória. Somos alvo de genocídio, estamos sendo assassinades, jovens negres são assassinados nas periferias por policiais e são assassinados pelas drogas e trafico feitos para dizimar população negra, travestis são mortas por policias e subjetividades masculinas por sua disconformidade de gênero, lésbicas são assassinadas e alvo de estupro corretivo, sendo desaparecidas também simbolicamente dos registros para que impere a heterossexualidade compulsória, que apareça como única verdade e possibilidade e coagindo mulheres dentro do contrato heterossexual que mantém a sociedade. Para que sejam violadas nesse contrato que naturaliza o fato de que são violadas, que naturaliza o intercurso sexual que não passa de uma invasão corpórea como guerra biológica contra mulheres. Se cria a ginecologia para conter os efeitos da heterossexualidade na morte de mulheres que podem ser reprodutoras úteis ao Patriarcado. Mulheres são mortas por feminicídio, por aborto inseguro, desaparecidas nas redes de prostituição, o sistema da camaradagem e construção da identidade masculina mais antigo (e não a profissão mais antiga, senão que a opressão mais antiga).

Mulheres e lésbicas e travestis e pessoas negras, originárias, querem viver. ISSO É RADICAL, É UM ATO FUNDAMENTALMENTE RADICAL, DECIDIR E ESCOLHER PELA VIDA.
Construir comunicação, valores, ferramentas, espaço, educação não patriarcal leva tempo e trabalho por outro lado. O que é portanto, feminista, até mesmo num senso epistemológico que é oposto a este masculinista e mais visível e legitimado, é relegado à esfera do ‘doméstico’, micropolitico. Afinal, o trabalho doméstico e feminino é invisível, portanto o trabalho ativista é invisível, e é mais minucioso, mais micro e mais difícil, é também o trabalho mais pesado e não reconhecido. Ele não é tão visível como explodir um banco. Ele é menos personificado e mais anônimo, ele envolve mais gente, ele é menos individual e mais comunitário.

Assim que não vejo tanta diferença entre socialistas, que falam que somente o que é válido é a mudança ‘estrutural’ ou uma ‘revolução social’, e os anarquistas insurreccionais que falam que o mais prioritário e verdadeiro é socar um policial…

Algumas anarcafeministas fizeram piadas com os anarquistas estes e como o fetichismo da violência chega a ser patético.

Levo o que ouvi de uma lesbofeminista, comentando sobre as brigas e disputas entre feministas sobre “quem é mais radical que quem” (coisa muito patriarcal e nada solidária entre mulheres e lésbicas):

“Construir lleva mucho tiempo y esfuerzo. Destruír vos lo hacés en un instante”.
(Construir leva muito tempo e esforço. Destruir leva um instante)

(embora pense que esse insurreccionalismo de fetiche não representa uma verdadeira ação destruidora, se é destruidora de verdade não reproduz o patriarcado. A construção eu também considero um ato de destruição. Há muitas formas de destruir-se esse mundo que estamos por descobrir, e se o ataque não é permanente e cotidiano, o mesmo se reconfigura, se regenera e se reconstrói a todo momento, assimilando até mesmo as nossas próprias linguagens).

Não existe anarquia possível se não se destrói e aniquila e se exclui ao Macho. Minha Anarquia será separatista ou não será.
Vulva la Anarquia!
Saparquia!

DENÚNCIA agressão sexista: casa mafalda

Difundimos a carta aberta denunciando agressão sexista. A carta foi difundida em forma de panfleto na feira do livro anarquista que ocorreu 3 e 4 de novembro de 2012 em São Paulo-SP:

 

Cuidado ao se relacionar com Autônomos e Autônomas F.C. e Casa Mafalda:

Não são espaços seguros, sobretudo para mulheres. Por conta de uma violência pessoal via e-mail de que uma companheira foi alvo, soltamos este alerta. A violência verbal e psicológica foi causada por membros do time Autônomos F.C. e foi apoiada por diversos outros membros e membras do time e da Casa Mafalda. A desmoralização da companheira e de seu ativismo, bem como dúvida da veracidade do seu relato, ocorreu logo após sua denúncia pública e a preocupação geral interna dos coletivos citados foi em “explicar melhor” o que o agressor tinha feito por meio do descrédito, e não amparar e compreender a companheira que foi agredida. A violência verbal, aquela em que são usadas palavras para ofender moralmente alguém, muitas vezes é desconsiderada, levada como “brincadeira”, etc, mas deixa cicatrizes como qualquer outro ataque físico. Nos meios libertários, nos últimos anos, ocorrem muitas outras violências contra mulheres que resultam geralmente em auto-exclusão das agredidas e sem o suporte desse movimento. Vemos como uma obrigação tornar isso público pois sabemos que o anarquismo, se não levado à prática do dia-a-dia, é uma teoria que fica presa nas páginas dos livros. Enquanto anarca-feministas, não iremos tolerar a morte política de nenhuma companheira como preço da reparação de agressores. Repudiamos e nos retiramos dos espaços do Autônomos e Autônomas F.C. e Casa Mafalda pois não iremos pagar para ver outras violências e não iremos gastar nossa energia política em um espaço que não consegue ao menos manter respeito interno na convivência entre ativistas.

“Aquelxs que despertam são o pesadelo daquelxs que ainda dormem.” Tiqqun.

Repúdio a agressão machista no Autônomos e Autônomas FC

Na lista de troca de e-mails do autônomos, uma companheira foi agredida e ameaçada diversas vezes por parte dos integrantes Jacob Garraway e Raphael Sanz (Clashr), recebendo respaldo aberto ou conivência silenciosa pelos demais integrantes do time. Consideramos agressão machista os termos referidos à companheira, como: “Feminazi” e “misógino é o meu pau preto! Nazi do caralho”. Consideramos ameaça a segurança e integridade física da companheira falas como: “acha que eu te ofendi? Agora sim que eu tava na pilha de te ofender. / Isso pode ficar ainda muito pior.”

Claramente ameaçada, a companheira redigiu uma carta aberta explicando sua retirada do espaço. Imediatamente foi-se articulada uma rede masculinista de apoio aos agressores por meio de uma carta-resposta, que em momento algum, apresentava uma auto-crítica consistente e reflexiva diante do ocorrido. Em vez de questionar a postura machista e a incoerência política dos agressores, o discurso foi todo direcionado a atacar a companheira e questionar sua legitimidade. Na mesma carta foram veiculados o nome e sobrenome da companheira e de sua irmã, que foi compartilhada e repassada em blogs, sites e eventos com 2 mil pessoas no facebook. Essas ações tiveram o claro intuito de expor a companheira e deixá-la vulnerável a qualquer tipo de ataque, desde a morte política à morte física.

Reproduzindo o sexismo presente na nossa sociedade, o Autônomos e Autônomas FC e a Casa Mafalda partilharam da lógica de que as mulheres devem se manter afastadas dos espaços políticos, e se inserida neles, é preciso participar como figurante agindo sempre de forma que não retire os homens de sua zona de conforto, que tem como sustentáculo o nosso silêncio frente a opressão machista. É daí que surge o termo “feminazi” criado e utilizado pela reação machista que visa domesticar e submeter nossa vontade aos seus desejos e tiranias patriarcais, a fim de que exerçamos nosso feminismo e nossa voz nos limites impostos pelos homens. Em todo momento, o intuito dos agressores, dos coniventes silenciosos e dos apoiadores foi fazer a companheira se calar e temer. Temer por ter usado sua voz, por ter sido protagonista em um espaço de dominância masculina.

As inaceitáveis atitudes tomadas pelos membros do autônomos e apoiadores transmitem uma mensagem misógina muito clara a todas mulheres: quem resistir a tirania machista será ameaçada, exposta e agredida.

De tal forma, que o Autônomos e Autônomas FC e Casa Mafalda serão agora considerados por todxs que assinam essa carta, como um espaço inseguro e ameaçador para mulheres.

Este caso não é pontual, articula-se com um processo mais amplo na relação de machismo dentro dos espaços ativistas e meios libertários. Cada vez mais mulheres têm rompido o silêncio e denunciado agressores nesses espaços: como Xavier (Rafael Muniz Pacchiega) do MPL, Rádio Várzea e PassaPalavra.org, o anarcopunk Fefê e o Gustavo Oliveira da Okupa J13 e da banda Nieu Dieu Nieu Maitre.

É sabido que a reação normativa a essas denúncias é encabeçada por uma rede corporativista machista que tentam acobertar esses casos, isolando politicamente a mulher alvo de opressão, deslocando o debate para o método utilizado na resistência; e não no machismo do agressor, enquanto paralelamente o defende. A reação às denúncias visam sempre restabelecer a ordem hetero-patriarcal.

O argumento mais utilizado é que tais denúncias enfraquecem a luta em questão. Colocamo-nos inteiramente contra esse pensamento maniqueísta e manipulador, que posiciona de forma hierárquica e excludente as relações de opressão. O feminismo não é apêndice e não vem a reboque de nenhum outro movimento, apesar de estar relacionado intrinsecamente a todos eles.

Quem afirma que a denúncia anti-sexista enfraquece um movimento, está afirmando que o mesmo tem como coesão e base a violência contra as próprias ativistas. Está afirmando que o movimento precisa do machismo e da misoginia para existir. “Enfraquecer” o movimento é um argumento oportunista que visa à manutenção da dominação masculina nesses espaços.

Na medida em que são agentes ativos de opressão, indivíduos que lutam veementemente para a manutenção de seus privilégios enquanto machos de uma sociedade hetero-patriarcal capitalista, jamais poderão ser agentes válidos para a libertação de nada.

Repudiamos as agressões machistas infligidas contra a companheira pelos Autônomos e Autônomas FC e Casa Mafalda, assim como toda a rede de solidariedade que foi articulada em apoio aos agressores Jacob e Raphael. Exigimos retratação pública imediata da Casa Mafalda e do Autônomos e Autônomas FC, não só pela carta-resposta como pela conivência sexista na época do ocorrido.

MEXEU COM UMA MEXEU COM TODAS!

NENHUMA AGRESSÃO FICARÁ SEM RESPOSTA!

Assinam:

Rede de Feministas Autônomas

Coletiva AnarcaFeminista Marana

Coletivo Minas Terrestres

Razões pelas quais eu não vou na Marcha das Vadias

por Rebecca Mott, escritora, feminista radical e sobrevivente de prostituição. Site pessoal: rmott62.wordpress.com

A Marcha das Vadias pode parecer uma forte ação feminista, mas para mim, como ex prostituta, parace uma forma negativa de lidar com a violência masculina contra todas as mulheres e meninas.

Não acredito que se apropriar da palavra “vadia” faça com que os homens agressores percebam algo de errado em seu comportamento, pelo contrário, se encaixa no jogo deles. Usar o termo vadia é se enquadrar naquilo que homens abusivos querem que as mulheres sejam. Chamar uma mulher ou menina de vadia é comumente usado para mantê-la como objeto sexual dos homens. Chamar uma mulher ou menina de vadia é usado para mantê-la heterosexual e não liberada, e que ela existe para agradar os homens.

Se apropriar da palavra vadia não faz com que a história simplesmente desapareça.

Mas pra mim como ex prostituta, duvido muito que as razões por trás da Marcha das Vadias – que foi tão rapidamente adotada por liberais e muitas vezes por feministas pró trabalho sexual – sejam em função de que ser vadia é considerado “trabalho” dentro do mercado do sexo.

Maravilha, outro truque para fazer desaperacer a violencia contra as mulheres que estão no mercado sexual, já que esse é o trabalho delas, e portanto não pode ser considerado violencia masculina, mas sim o papel da prostituta.

A Marcha das Vadias está nos interesses das mulheres privilegiadas que podem brincar com o papel de vadia, se vestir como uma puta, exibir cartazes com dizeres como “Vadias Dizem Sim”, que imaginam que as mulheres no mercado do sexo são empoderadas quando elas nos chamam de irmãs.

A Marcha das Vadias diz que o estupro é ruim quando feito contra mulheres e meninas”de verdade” independente do que elas vestem e onde vão. Mas ignora fortemente o estupro e a tortura sexual que acontecem diariamente contra as mulheres e meninas que estão no mercado do sexo.

Isto é ignorado – pois na visão da Marcha das Vadias isso é só trabalho – então não devemos julgar e nem mesmo nos aprofundarmos.

Algumas mulheres na Marcha das Vadias pensam que é radical se vestir com o estereótipo que elas tem da Vadia, ou com a versão cartunizada de uma puta. Elas podem chamar isso de burlesco, mas para as ex prostitutas isso é um insulto.

Se vestir como puta pra noite é frequentemente feito de uma posição de alto privilégio. Você se veste assim porque acredita estar segura, e se você for estuprada isso será um ultraje.

Fazer de conta que é uma puta não é ser uma puta.

A maioria das mulheres e meninas prostituídas não estão protegidas do estupro, não é um ultraje quando isso acontece – suas roupas e por onde andam são problemas menores comparados a viver numa sociedade que ignora seus sofrimentos, e usa sua imagem somente para fazer festa.

Além do que, como você ousa vestir-se com os estereótipos de puta que a maioria das prostitutas estão tentando se livrar. Na verdade você está mostrando seu privilégio.

Claro que eu acredito que nenhuma mulher ou menina deva ser estuprada em nenhuma situação, não importa o que ela esteja vestindo.

Mas a Marcha das Vadias está evitando o problema de que os homens que decidem estuprar irão estuprar mulheres e meninas não importando o que ela usa ou a situação que ela se encontra.

É o direito masculino de acreditar que todas mulheres e meninas não são nada além de objeto sexual que é a questão – é o ponto de vista do homem que mulheres e meninas podem ser pegas e estupradas sem sérias consequências pra ele, que é a questão.

Não é sobre as mulheres tentarem dar um jeito de se conformarem o suficiente para que homens agressores possam mudar seu comportamento – é sobre lutar por justiça e castigos severos que acabem com a violência cometida pelos homens.

Eu irei para o Reclaim the Night* – mas a Marcha das Vadias não faz nada por mim nem justiça para as prostituídas.

Rebecca Mott, 1º de Maio, 2011tradução por ação anti sexista, Porto Alegre.

*“Retome as noites” é um ato organizado por feministas que existe desde os 70 nos países de língua inglesa e que começou com protestar contra a cultura de estupro. Feministas marchavam a noite por causa da idéia comum de que ‘não ande em uma rua escura a noite pois poderá ser estuprada’. As marchas continuam sendo realizadas até hoje em muitos países. No Brasil houveram alguns em Brasília, Florianópolis e Curitiba, consistindo em intervenções urbanas. (nota da difusora).